Traumatismo penetrante dos vasos subclávios: revisão da literatura a propósito
de um caso clínico
INTRODUÇÃO
A lesão dos vasos subclávios constitui um desafio diagnóstico e terapêutico. O
seu difícil acesso anatómico e a sua baixa incidência contribuem para a pouca
experiência da maioria dos cirurgiões no seu tratamento e abordagem [1,2,3].
Em 3% dos traumatismos penetrantes do pescoço e tórax há lesão dos vasos
subclávios e em 20% dos casos, o envolvimento é arterial e venoso [2,4]. O
indivíduos mais frequentemente afetados são jovens do sexo masculino (20-40
anos)[3].
A mortalidade do traumatismo penetrante com lesão dos vasos subclávios atinge
os 60% em contexto pré-hospitalar e 5-30% de mortalidade cirúrgica [1,2].
São fatores determinantes de sobrevivência o mecanismo de lesão, a rapidez de
acesso ao centro de trauma e o tipo de estruturas lesadas. A mortalidade
associada às lesões venosas é superior à das lesões arteriais (82 vs 60%),
devido à maior perda de volume sanguíneo e à embolização gasosa que lhe estão
associadas [1].
A eficiente exposição dos vasos subclávios é um fator determinante na adequada
e atempada reparação da lesão [1]. A abordagem transclavicular constitui uma
alternativa mais rápida de acesso aos vasos subclávios por comparação com as
toracotomias clássicas.
A propósito de um caso clínico de traumatismo penetrante da região
supraclavicular direita abordado por via transclavicular, os autores fazem uma
revisão bibliográfica sobre a abordagem cirúrgica das lesões penetrantes dos
vasos subclávios.
CASO CLÍNICO
Homem de 19 anos, vítima de agressão por arma branca que à entrada no Serviço
de Urgência apresentava 2 feridas: uma supraclavicular direita (Figura_1A) e
outra na face lateral do hemitórax direito. Encontrava-se normotenso,
taquicárdico e eupneico. Sem sinais de isquemia do membro superior, com pulso
radial palpável. Efetuou radiografia de tórax com evidência de pneumotórax.
Dada a presença de hemorragia ativa com ponto de partida na ferida
supraclavicular o doente foi transferido para o bloco operatório. Após indução
anestésica foi submetido a toracostomia, tendo-se feito drenagem de pneumotórax
e hemotórax de pequeno volume (cerca de 100 cc de sangue). Optou-se por uma
abordagem transclavicular direita, com desarticulação esternoclavicular, secção
da inserção clavicular dos músculos esternocleidomastóideo e grande peitoral e
luxação inferior da clavícula (Figura_1B/C). Esta manobra permitiu a exposição
dos vasos subclávios na sua origem, constatando-se lesão da veia subclávia
proximal à confluência com a jugular interna (Figura_1D). Efectuou-se rafia
primária sob clampe de Satinsky com Prolene 6 0' (Figura_2A/B).
O encerramento da ferida operatória foi efetuado após fixação da articulação
esternoclavicular com ponto transfixivo de Nylon 0 e sutura do grande peitoral
e esternocleidomastoideu ao periósteo da clavícula. Foi deixado um dreno de
silastic ao contacto com a reparação vascular. No total, foram efetuadas no
intra-operatório 3 unidades de concentrado eritrocitário e 2 unidades de
plasma.
No 2º dia de pós-operatório verificou-se a presença de edema generalizado do
membro superior direito sem compromisso vascular, neurológico ou funcional,
apesar da instituição de enoxaparina em dose profilática. Eco-Doppler excluiu
trombose venosa. O doente teve alta ao 6º dia de pós-operatório, tendo-se
verificado uma melhoria progressiva do edema que já não se encontrava presente
ao fim de um mês.
Como morbilidade pós-operatória há a referir infeção da ferida operatória que
foi tratada em ambulatório com antibioterapia de largo espectro (amoxicilina e
ácido clavulânico).
DISCUSSÃO
A abordagem cirúrgica clássica dos vasos subclávios (Zona I cervical) defendida
por Schaff faz depender a incisão do lado onde se verifica a lesão: à direita
defende a abordagem por esternotomia associada a incisão supraclavicular; à
esquerda por toracotomia anterior associada a incisão supraclavicular ou, nas
situações menos urgentes em que o tempo despendido no posicionamento do doente
não é determinante, por toracotomia posterolateral (Figura_3) [5]. Esta via de
abordagem encontra-se associada com maior tempo operatório, maior volume de
perdas hemáticas, dor e insuficiência respiratória pós-operatórias [1,2].
A primeira referência a uma abordagem dirigida aos vasos subclávios data de
1818 em que V. Mott descreve a incisão cervical em V. O primeiro relato de
excisão clavicular surge posteriormente em 1859 com Cooper. Várias técnicas de
exposição dos vasos subclávios e inominados emergiram ao longo dos anos, tendo
em 1929 Greenough publicado um artigo que relata 17 técnicas para esse efeito
[6].
Para o adequado controlo de um foco hemorrágico existem 2 princípios cirúrgicos
básicos a cumprir, o controle proximal à lesão e sua adequada exposição [7]. A
via transclavicular permite abordar os dois terços distais dos vasos subclávios
cumprindo estes princípios [7].
Esta abordagem consiste numa incisão supra-clavicular com prolongamento para o
sulco deltopeitoral (Figuras_2A,2C) associada a ressecção parcial do terço
médio da clavícula ou desarticulação esternoclavicular, que é independente do
lado da lesão (Figura_4). Segundo os autores esta via permite o controle dos
dois terços distais dos vasos subclávios, podendo no entanto necessitar de uma
esternotomia acessória nos casos de lesão vascular mais proximal ao confluente
arteriovenoso [1,2,4]. A grande vantagem desta abordagem é o rápido acesso ao
foco hemorrágico, limitando assim a mortalidade associada à hipovolémia [1].
O traumatismo penetrante na imediação de estruturas vasculares centrais resulta
habitualmente na lesão das mesmas [3]. A região periclavicular é rica em
estruturas neurovasculares, pelo que o traumatismo penetrante desta região deve
fazer suspeitar de lesão destas estruturas [3].
A abordagem inicial do doente com traumatismo penetrante nesta localização vai
depender da sua estabilidade hemodinâmica e dos sinais clínicos de isquemia do
membro [1,2,4] (Figura_5).
Os doentes em paragem cardiorrespiratória têm indicação para toracotomia
emergente, apesar de esta associar a uma taxa de mortalidade que se aproxima
dos 100% [1].
Os doentes hemodinamicamente instáveis têm indicação cirúrgica emergente, sendo
preconizada a abordagem clássica: esternotomia mediana com extensão
supraclavicular em lesões localizadas à direita e toracotomia anterolateral
esquerda transclavicular em lesões à esquerda [1-4,8,11].
Os doentes hemodinamicamente estáveis devem ser avaliados clinicamente tendo em
atenção à presença de de pulso, sopros, hematoma em expansão, atraso no
esvaziamento capilar e défices neurológicos [1-4,8]. É importante ter em conta
que em 40-50% dos casos de lesão da artéria subclávia o pulso periférico
mantém-se palpável à custa de circulação arterial colateral proximal (artérias
supraescapular e escapular dorsal) e distal (artérias subescapular e
circunflexa escapular) à lesão [3]. Sendo assim, os que apresentam sinais de
alto risco para lesão vascular (hemorragia arterial, ausência de pulso,
hematoma em expansão, presença de frémito à palpação ou sopro à auscultação e
sinais de isquemia do membro) devem ser ser abordados por via clássica ou,
quando se suspeite de lesão distal dos vasos subclávios, por via
transclavicular. Na ausência de sinais de alto risco, mas com sinais suspeitos
para lesão vascular, deverão ser submetidos a avaliação imagiológica. Este
estudo poderá ser feito por angiografia, eco-Doppler ou angio-CT [1,8]. A
angiografia é considerada o exame gold-standardpara a avaliação de lesões
vasculares, permitindo o diagnóstico e, em alguns casos, uma atitude
terapêutica [1]. No entanto, trata-se de um exame invasivo, pouco disponível,
apenas indicado em doentes hemodinamicamente estáveis e que está associado a
complicações em 1% dos casos (hematoma no local de punção arterial, espasmo
vascular, reações alérgicas ao contraste, lesões da íntima, embolização de
placas de ateroma e sépsis) e a falsos negativos e positivos em 3% dos casos
[9]. O eco-Doppler e angio-CT apresentam como vantagens serem menos invasivos,
encontrarem-se amplamente disponíveis, permitindo ainda a sua realização à
cabeceira do doente, no caso do eco-Doppler, e a exclusão de outras lesões, no
caso da angio-CT [1,3]. Atualmente, uma das principais vantagens do uso da
angiografia no contexto do traumatismo penetrante dos vasos subclávios é a
abordagem endovascular de complicações como a fístula arteriovenosa ou o falso
aneurisma [1,2,10].
Quanto ao tipo de reparação vascular a efetuar, esta vai depender da etiologia
da lesão (arterial, venosa ou mista) [1,2].
Se a lesão for arterial, na maioria dos casos é possível efetuar a reparação
primária através rafia lateral ou anastomose termino-terminal (Figura_6). Em
lesões arteriais mais extensas, poderá ser necessária a interposição de um
enxerto vascular protésico ou autólogo (veia safena) [1,2]. Os defensores da
utilização de enxertos protésicos referem como vantagem o menor tempo
operatório [1], enquanto a utilização do enxerto de veia safena está associada
a um menor risco de infeção, complicação frequente no pós-operatório destes
doentes (21% dos casos) [2].
Se a lesão for venosa, está indicada a sua reparação primária desde que esta
não condicione estenose ou necessidade de enxerto. Quando estas condições não
estão garantidas dever-se-á proceder à laqueação [1,2,7].
As lesões venosas associam-se a uma maior mortalidade devido à maior perda de
volémia e propensão à embolização gasosa [1], pelo que o fator tempo na
reparação da lesão é determinante. Por outro lado, verifica-se que 50% dos
doentes submetidos a reparação venosa apresentam trombose venosa a curto/ médio
prazo [1]. Sendo assim, em lesões venosas de difícil reparação primária ou nos
casos de lesão arterial associada está preconizada a laqueação venosa. A
morbilidade associada a este procedimento é o edema do membro, que
habitualmente não compromete a sua função e é transitória [1,2,7].
Apesar da elevada mortalidade inicial, 80% dos doentes apresentam as
reparações/reconstruções vasculares patentes a longo prazo. A principal causa
de morbilidade tardia são as lesões neurológicas e de partes moles que
condicionam perda de função e amputação do membro em 33% dos casos [2,3,4].
No caso apresentado, a presença de sinais de alto risco para lesão vascular
(hemorragia ativa) em doente com traumatismo penetrante da região
supraclavicular determinou a necessidade de intervenção cirúrgica emergente. A
opção pela via de acesso transclavicular foi determinada pela localização e
mecanismo da lesão (arma branca de pequenas dimensões), sugerindo lesão
limitada aos vasos retroclaviculares distais. Optou-se pela desarticulação
esternoclavicular com luxação inferior da clavícula por ser mais rápida e estar
associada a menor compromisso funcional do que a secção clavicular. Esta via
permitiu um rápido acesso ao foco hemorrágico com adequada exposição e controlo
da veia subclávia que se encontrava lesada junto à sua origem, sem necessidade
de esternotomia acessória. A opção pela reparação primária da lesão venosa
prendeu-se com o tipo de lesão encontrada e idade do doente, uma vez que se
tratava de uma lesão lateral de pequenas dimensões da veia subclávia direita a
nível da confluência com a jugular interna, em que a rafia da veia permitiu
evitar o edema do membro num indivíduo jovem, sem condicionar aparente estenose
do lúmen venoso ou prolongar tempo operatório. Em termos funcionais, a
reparação efetuada não comprometeu a mobilidade do membro superior mantendo o
doente toda a função da cintura escapular e o edema verificado no pós-
operatório imediato resolveu espontaneamente, encontrando-se a reconstrução
patente como verificado por eco-Doppler. A única morbilidade pós-operatória a
assinalar foi a infeção da ferida operatória, frequente neste contexto,
passível de tratamento em ambulatório.
CONCLUSÃO
O traumatismo penetrante dos vasos subclávios é pouco frequente e o sucesso do
seu tratamento depende do rápido diagnóstico e acesso aos vasos lesados.
O diagnóstico depende de um elevado grau de suspeição face a lesão penetrante
da região periclavicular. A abordagem cirúrgica está indicada na maioria dos
casos, sendo determinada pela instabilidade hemodinâmica ou pela presença de
sinais de alto risco para lesão vascular. Os restantes casos deverão ser
mantidos em vigilância, obrigando no entanto a um estudo imagiológico adequado.
Nos doentes em que há suspeita de lesão limitada aos vasos subclávios distais,
a via transclavicular pode ser uma alternativa à abordagem clássica das lesões
da zona I cerviucal já que permite uma rápida e adequada exposição vaso lesado.
Apesar de em 50% dos casos poder necessitar de uma esternotomia acessória para
exposição vascular proximal, esta é efetuada com maior tranquilidade já com o
foco hemorrágico adequadamente controlado.