Angiossomas do pé e do tornozelo: implicações no tratamento da isquémia crítica
dos membros inferiores
Angiossomas do pé e do tornozelo ' implicações no tratamento da isquémia
crítica dos membros inferiores
Emanuel Dias*
Hospital do Divino Espírito Santo, EPE
Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular
(Directora: Dra. Isabel Cássio)
* 6º Ano do Internato Médico de Angiologia e Cirurgia Vascular
|RESUMO|
A revascularização, por cirurgia convencional ou por procedimentos
endovasculares, nos doentes com isquémia crítica dos membros inferiores tem um
papel importante na prevenção da perda de membro, na melhoria da qualidade de
vida e sobrevida destes doentes.
No entanto, até 15% das revascularizações de úlceras isquémicas do pé, apesar
do sucesso técnico, podem falhar a cicatrização e conduzir o doente a uma
amputação major[1-3]. Isto poderá acontecer por uma revascularização local
inadequada, com conexões vasculares inadequadas entre a artéria revascularizada
e a área isquémica local.
O conhecimento e aplicação do conceito dos angiossomas do pé e tornozelo
permitem ao cirurgião vascular um melhor planeamento, adequação de meios
terapêuticos e tratamento da isquémia crítica dos membros inferiores.
Palavras-chave: isquemia crítica, revascularização do membro inferior,
angiossomas do pé e tornozelo
Angiosomes of the foot and ankle and its importance in the treatment of
critical limb ischaemia of the lower limb
|ABSTRACT|
Revascularization by conventional surgery or endovascular procedures in
patients with critical lower limb ischaemia plays an important role in
preventing the loss of limb, in improving the quality of life and survival of
these patients. However, up to 15% of the revascularization of ischemic ulcers
of the foot, despite the technical success, may fail to heal and lead to a
major amputation. This may be due to an inadequate local revascularization,
with inadequate vascular connections between the revascularized artery and the
ischemic site. The knowledge and application of the concept of the foot and
ankle angiossomes allow the vascular surgeon to better plan, adequate
therapeutic means and treat critical lower limb ischaemia.
Key words: critical limb ischaemia, revascularizacion lower limb, angiossomes
of the foot and ankle
ANGIOSSOMAS DO PÉ E TORNOZELO
Um angiossoma é definido como uma unidade anatómica de tecido (constituído por
pele, tecido subcutâneo, fascia, músculo e osso) nutrido por uma artéria.
Taylor[4] descreveu 40 angiossomas no corpo humano. Destes, seis estão
localizados no pé e tornozelo | FIGURA 1 | e adstritos às 3 principais artérias
da perna: a artéria tibial posterior, a artéria tibial anterior e a artéria
peroneal.
| FIGURA 1 | Angiosossomos do pé e tornozelo
A artéria tibial posterior supre três territórios/angiossomas:
> o calcanhar medial e plantar via seu ramo calcâneo;
> a parte medial da região plantar via artéria plantar medial:
> a parte plantar lateral do pé e plantar distal pela artéria plantar lateral.
A artéria peroneal supre 2 angiossomas:
> parte anterior e superior do tornozelo lateral pelo seu ramo perfurante
anterior;
> zona do calcanhar plantar e lateral via ramo para o calcâneo.
A artéria tibial anterior supre o tornozelo anterior e depois torna-se na
artéria pediosa que nutre o angiossoma do dorso do pé[5].
AVALIAÇÃO CLÍNICA DAS CONEXÕES ARTERIO-ARTERIAL
A vascularização do pé e do tornozelo pode ser encarada como uma de um órgão de
circulação terminal, tendo as suas 3 artérias principais numerosas conexões
directas arterio-arterial, que permitem o desenvolvimento de rotas alternativas
de fluxo sanguíneo, se as rotas directas (i.e. angiossoma) estiverem
comprometidas.
O uso do doppler de onda contínua nas localizações específicas onde estas
conexões ocorrem permite a avaliação precisa do fluxo sanguíneo através do pé,
interpretando o som da sonda doppler (monotonal, bitonal e tritonal) e a
direcção do fluxo sanguíneo (anterógado ou retrógado), pela aplicação da
oclusão selectiva com o indicador do operador proximal ou distalmente à área a
ser investigada | FIGURA 2 |. Dessa maneira, pode-se seleccionar a artéria a
ser revascularizada (com o melhor outflow para o pé). Incisões, desbridamentos,
amputações e encerramentos de feridas podem ser feitos sem comprometer o fluxo
sanguíneo de um pé em risco[6].
| FIGURA 2 | Conexões arterio-arterial por doppler: ocluindo as artérias
proximal ou distalmente ao sinal arterial, é possível perceber a direcção do
fluxo arterial.
AVALIAÇÃO DA ÚLCERA ISQUÉMICA
A avaliação clínica actual da necessidade de revascularização de uma ferida ou
úlcera do pé e tornozelo (Rutherford V e VI), principalmente em doentes
diabéticos, deve ser sempre iniciada com a avaliação da própria ferida e do
status vascular da extremidade em questão, incluindo a examinação dos pulsos e
estudos do laboratório vascular para tentar perceber do potencial de
cicatrização da úlcera. Se esta avaliação indicar um baixo potencial de
cicatrização que se manifesta por uma ausência de pulsos distais, índice
tornozelo braço inferior a 0.3, ondas doppler segmentares monofásicas, tensão
de oxigénio transcutânea (Tco2) inferior a 25 mmHg de valor absoluto ou o
índice de Tco2 inferior a 0.4, então a revascularização deve ser executada[7].
Evidências recentes, mostram que a pressão de perfusão cutânea (SPP) à volta da
ferida isquémica como sendo o método com melhor predição de cicatrização,
principalmente em doentes hemodialisados[8].
As únicas feridas a serem desbridadas antes de uma revascularização são aquelas
com gangrena húmida ou com fasceíte necrotizante. Isto porque foi demonstrado
que a Tco2 ao redor da úlcera isquémica aumenta muito lentamente após um bypass
vascular e atinge o máximo apenas 2 a 4 semanas após a revascularização. Assim,
uma tentativa de encerrar prematuramente uma ferida ou executar uma amputação
definitiva pode ter consequências desastrosas.
Após a revascularização a úlcera deve ser tratada com o ambiente tópico
apropriado e a reconstrução dos tecidos moles deve ser adiada até não existirem
mais sinais de infecção e a ferida exibir sinais de cicatrização (tecido de
granulação). Este hiato temporal (habitualmente 2-4 semanas) permitirá, como
anteriormente dito, a optimização do ganho local da revascularização.
Posteriormente o doente deve voltar ao hospital para um desbridamento final e
um encerramento apropriado da úlcera, que pode tomar a forma de um encerramento
secundário após desbridamento adicional, enxerto cutâneo, cobertura da ferida
com rotação de flap muscular ou amputação minor definitiva.
USANDO O CONCEITO DE ANGIOSSOMAS PARA FAZER INCISÕES E AMPUTAÇÕES
Existem 4 factores gerais a ter em conta aquando da realização de uma incisão
no pé/tornozelo: exposição adequada, fluxo sanguíneo adequado em ambos os lados
da incisão para optimização da cicatrização, preservação de nervos sensitivos e
motores, e não optar por uma incisão perpendicular a uma articulação (risco de
contractura cicatricial).
Se existe um bom fluxo da artéria (presença de pulso ou fluxo trifásico) que
supre cada angiossoma, a incisão mais segura a fazer é ao longo do bordo entre
dois angiossomas, porque cada lado da incisão tem o máximo de fluxo sanguíneo.
No entanto, quando o sinal da artéria de um de dois angiossomas adjacentes está
ausente, o angiossoma isquémico afectado depende dos angiossomas limítrofes
para fluxo sanguíneo via vasos colaterais. Estes, podem levar cerca de 2 a 4
semanas a se desenvolverem depois de um dado angiossoma ficar isquémico. Assim,
incisões realizadas demasiado cedo, antes do desenvolvimento de vias
alternativas, podem levar a fraca cicatrização, necrose e gangrena.
Quando existe compromisso de sangue e está a ser planeada uma amputação do
antepé ou de Lisfranc, é importante ter em conta qual o fluxo sanguíneo
restante e mapear completamente todas as conexões arterio-arteriais. Se a
circulação dorsal do pé depende da circulação plantar ou vice-versa, as
conexões entre elas não podem ser perturbadas, ou seja, a conexão entre a
artéria pediosa e a artéria plantar lateral no 1º espaço inter metacárpico
proximal deve ser mantida. Assim, para preservar esta conexão durante uma
amputação transmetatársica ou de Lisfranc, os 4 metatarsos laterais são
removidos lateralmente e o 1º metatarso removido medialmente[5].
ANGIOSSOMAS E TRATAMENTO ENDOVASCULAR DA ISQUÉMIA CRÍTICA DOS MEMBROS
INFERIORES
Com o seu recente desenvolvimento técnico, o tratamento endovascular da
isquémia crítica dos membros inferiores tem passado a ser o de primeira linha
nestes doentes, pelos seus resultados favoráveis, com excelente taxa de sucesso
inicial, baixa incidência de complicações e alta taxa de salvamento de membro
[9].
O tratamento actual da isquémia crítica dos membros inferiores deve ir mais
além, com integração do conceito dos angiossomas do pé e tornozelo[10-12]. Será
uma oportunidade para uma terapêutica dirigida, revascularizando a artéria
relacionada com a úlcera isquémica.
Compete ao cirurgião vascular atual adquirir competências nesta área da
revascularização endovascular infra-poplitea. Mas, ao mesmo tempo, compreender
a necessidade de optimização do tratamento local da ferida adquirindo
competências na área de cuidados tópicos da ferida, enxertos cutâneos ou
musculares, amputações funcionais que preservem a biomecânica do pé; ou
integrar grupos multidisciplinares de tratamento de isquémia crítica e/ou pé
diabético com cirurgiões plásticos e ortopedistas dedicados ao pé e tornozelo.
Só neste contexto abrangente de cuidados é que parece fadado o sucesso global
do tratamento da isquémia crítica dos membros inferiores.