Insuficiência renal induzida por contraste: estudo prospectivo
Introdução
O tratamento da patologia vascular por via endovascular tem tido um crescimento
exponencial nos últimos anos, sendo em muitos centros a principal forma de
abordagem desta patologia. Nesse sentido, e dado que nos procedimentos
angiográficos é utilizado contraste, que em maior ou menor grau tem
nefrotoxicidade, propusemo-nos fazer um estudo sobre a incidência de
insuficiência renal aguda induzida pelo contraste.
A nefropatia por contraste é a terceira causa de insuficiência renal aguda
(IRA) hospitalar13, podendo corresponder a 11% desses casos1. Esta complicação
aumenta a morbilidade, mortalidade, tempos de internamento hospitalar e os
custos4.
A maioria dos artigos publicados são de estudos realizados em contexto de
angioplastia coronária, tendo-se verificado que nos doentes que desenvolveram
nefropatia por contraste, menos de 1% necessita de diálise5. No entanto, a
mortalidade durante o internamento em indivíduos que vêm a necessitar de
diálise pode atingir os 36% e a sobrevida a 2 anos ser de apenas 19%5.
Considerase IRA induzida pelo contraste um aumento de 0,5 mg/dl na creatinina
sérica (CrS) ou um aumento de pelo menos 25% em relação ao valor basal num
período até 72 horas após o procedimento13,6. Os estudos demonstram que a
creatinina começa a aumentar às 48-72 h e atinge o pico ao terceiro a quinto
dia. Verificase o retorno ao valor basal, três a cinco dias após ter atingido
o valor máximo1,7.
Existem vários tipos de contraste, sendo que na actualidade os contrastes não
iónicos são os mais utilizados, e entre estes, os de baixa osmolaridade ou os
iso-osmolares (menor toxicidade renal).
Nos doentes sem factores de risco para a nefropatia por contraste, esta ocorre
em menos de 2% dos casos, sendo que em doentes com insuficiência renal crónica
(IRC) e diabetes mellitus (DM) a nefropatia pode atingir valores de 50%7,8. A
idade avançada (> 75 anos), a hipotensão, anemia, desidratação, cirrose
hepática, estados hiperosmolares (ex: mieloma múltiplo) e toma recente de anti-
inflamatórios não esteróides são outros factores que podem aumentar o risco1,9.
A fisiopatologia da IRA induzida pelo contraste é multifactorial. Pensase
estar relacionada com os efeitos osmóticos (aumento da osmolaridade urinária
que diminui a filtração glomerular), hemodinâmicos (libertação de endotelina,
adenosina e outros vasoconstritores que levam à hipóxia medular e necrose das
células tubulares renais) e a toxicidade química directa sobre as células
renais desencadeada pelo contraste1,4,9.
Com este trabalho pretendese determinar a incidência de IRA induzida por
contraste durante os procedimentos angiográficos, bem como identificar factores
de risco para a sua ocorrência.
Materiais e métodos
Realizou-se um estudo prospectivo dos doentes submetidos a procedimentos
angiográficos de diagnóstico e/ou terapêutica, não dializados, internados no
serviço de Cirurgia Vascular do Centro Hospitalar e Universiário de Coimbra
HUC num período de 9 meses.
Em todos os doentes (n = 54) o meio de contraste utilizado foi o Ultravist 370®
(iopramida) e foram submetidos a profilaxia da nefropatia com Bicarbonato de
Sódio 1,4% (500 ml), a iniciar duas horas antes do procedimento e a continuar
após o procedimento (velocidade de perfusão 1 ml/kg/h), e Furosemida 20 mg
endovenosa. Realizou-se pelo menos um controlo analítico no dia anterior
(previamente a iniciarem expansão do volume) e no dia seguinte ao procedimento.
Em 38 doentes foi possível ter mais que um controlo analítico após o
procedimento.
Considerouse IRA induzida pelo contraste um aumento da Creatinina sérica em
pelo menos 0,5 mg/dl ou 25% do valor basal, ou uma diminuição da Taxa de
Filtração Glomerular (TFG) em pelo menos 25%. Para o cálculo da TFG utilizou-se
a fórmula de Cockcroft-Gault. Considerou-se ainda Doença Renal Crónica (DRC) e
Insuficiência Renal Crónica (IRC) como TFG < 90 ml/min e < 60ml/min,
respectivamente.
Para o estudo estatístico dos possíveis factores com influência no
desenvolvimento da IRA por contraste (DM, HTA, DRC, IRC, volume crítico de
contraste) aplicou-se o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis, e considerou-
se como significância estatística p < 0,05. A análise de curvas ROC foi
utilizada para tentar identificar um valor crítico de volume de contraste para
indução de IRA Utilizouse o programa R: An environment for statistical
computing10.
Resultados
No estudo foram incluídos 54 indivíduos, 47 do sexo masculino (87%) e 7 do sexo
feminino (13%), com idade média de 62,5 ± 13,4 anos (tabela_1). Os doentes
apresentavam peso médio de 74,2 ± 15,9 kg, altura média de 166,6 ± 7,9 cm e
índice de massa corporal de 26,6 ± 5,08. Nestes últimos parâmetros, os
indivíduos do sexo masculino apresentaram valores bastante superiores aos
indivíduos do sexo feminino. A HTA estava presente em 46 doentes (85,2%), a DM
em 13 (24,1%), DRC em 23 (43%) e a IRC em 10 (18,5%) (tabela_2). Globalmente, o
volume de contraste utilizado foi de 234,8 ± 83,2 ml, sendo de 209,7 ± 56,8 ml
e de 345,5 ± 93,1 ml nos doentes submetidos a procedimentos de diagnóstico e de
terapêutica, respectivamente.
A variação absoluta da creatinina às 24 horas após o procedimento foi superior
nos indivíduos do sexo masculino (0,11 ± 0,17 mg/dl), enquanto a variação
relativa da creatinina (14,4 ± 16,4%) e da TFG (-11,1 ± 12,2%) foram superiores
nos do sexo feminino (tabela_3).
tabela_3
A incidência de IRA induzida por contraste às 24h após o procedimento foi de
24,1% (13 doentes) quando se utilizou o critério de variação da creatinina
sérica, e de 9,3% (5 doentes) quando se utilizou a variação da TFG. A
incidência de IRA foi superior no sexo feminino com valores de 28,6% e 14,3%,
respectivamente (tabela_4).
tabela_4
A Diabetes Mellitus (p = 0,049) e IRC (p = 0,013) tiveram significado
estatístico na indução de IRA, não sendo possível identificar um valor crítico
do volume para a indução de IRA (tabela_5). Também não se verificou nenhum
valor crítico ao utilizar as curvas ROC para a relação entre o volume de
contraste utilizado e o IMC, no que respeita à variação da TFG ou variação da
CrS.
Nos doentes em que foi possível fazer uma reavaliação analítica posterior (38),
a variação média da CrS relativamente ao valor inicial foi de 8,71% ± 13,49%,
enquanto para a TFG foi de -6,2% ± 10,9%. Observou-se a irreversibilidade da
insuficiência renal em 2 casos (5,2%) utilizando os dois critérios acima
referidos (tabela_6). Em ambos os casos os indivíduos eram do sexo masculino,
com HTA e sem DRC prévia ou DM. Nenhum doente necessitou de fazer diálise.
tabela_6
Discussão
Os resultados do estudo demonstram que a população alvo dos procedimentos
angiográficos são indivíduos, na maioria dos casos, com um ou mais factores de
risco para a indução de nefropatia por contraste, pelo que os cuidados devem
ser redobrados quanto ao volume de contraste utilizado. Verificámos uma dose
elevada de contraste nos procedimentos, principalmente nos de diagnóstico, o
que deverá ser uma situação a rever.
Tal como na maioria dos estudos publicados, a DM e a IRC foram os factores de
risco que tiveram significado estatístico na indução de nefropatia por
contraste. Nestas duas situações consideramos que deverá ser obrigatória a
realização de profilaxia da nefropatia, uma vez que ficou demonstrado neste
estudo, que mesmo utilizando o bicarbonato de sódio, a nefropatia por contraste
ocorre com maior frequência nestes doentes. Poder-se-á questionar a necessidade
de profilaxia nos doentes sem esses factores de risco, mas consideramos que em
indivíduos do sexo feminino também deverá ser utilizado, dado que se observou o
desenvolvimento de IRA às 24 h em cerca de metade dos casos.
Apesar de não ter sido contemplado no estudo a utilização de diferentes tipos
de contraste, baseandonos nos resultados da literatura que demonstram uma
menor inicidência de nefropatia com a utilização de contrastes iso-osmolares,
nos doentes com DM e IRC, estes deverão ser de utilização obrigatória, dado o
risco acrescido de IRA.
A literatura mostra que a elevação da CrS ocorre até às 72 h após a
administração do contraste. Neste estudo os resultados só foram recolhidos às
24 h, pois a maioria dos doentes tiveram alta no dia seguinte à realização do
procedimento. Mesmo assim, verificou-se uma incidência de nefropatia de 38,5% e
40% nos doentes com DM e IRC, respectivamente, pelo que somos da opinião que
todos os doentes com estes factores de risco deverão fazer um controlo
analítico às 72 h, mesmo que em ambulatório, dado o risco acrescido destes
doentes virem a desenvolver IRA.
Relativamente aos doentes em que foi possível fazer um controlo analítico após
uma semana, verificou-se a reversibilidade da insuficiência renal na grande
maioria dos doentes. Curiosamente, e ao contrário do que seria de esperar, os
dois casos em que isso não se verificou, foram em indivíduos do sexo masculino
que não apresentavam DM ou IRC. Esta situação poderá estar relacionada com o
número baixo de mulheres no estudo.
O estudo possui algumas limitações relacionadas com o baixo número de
indivíduos do sexo feminino, a colheita analítica ter sido efectuada às 24 h e
não às 72 h, o que pode ter originado uma subdimensionamento dos casos de IRA,
e a ausência de grupo de controlo, o que permitiria retirar outras conclusões,
nomedamente a verdadeira incidência da insuficiência renal sem a utilização de
profilaxia.
Conclusões
A incidência de nefropatia por contraste foi elevada apesar da profilaxia
utilizada. A DM e a IRC foram os factores de risco com significado estatístico
para o desenvolvimento de nefropatia. Mesmo assim, também é de salientar a
maior incidência desta complicação em indivíduos do sexo feminino, o que nos
leva a propor a utilização de profilaxia da nefropatia, pelo menos, nos doentes
com estes factores de risco. A utilização de contraste iso-osmolar e em menor
quantidade, poderá melhorar os resultados, assim como a utilização do dióxido
de carbono como meio de contraste nos doentes com função renal comprometida.
Com este estudo verificámos que a maioria dos casos de IRA pós-administração de
contraste parece reversível.