Estudos ASTRAL e CORAL: fim da revascularização endoluminal na estenose
ateroesclerótica da artéria renal ou um novo princípio?
A doença oclusiva das artérias renais de etiologia aterosclerótica pode ser uma
causa de hipertensão arterial em cerca de 1-4% da população de doentes
hipertensos. No entanto, esta prevalência parece ser substancialmente mais
elevada em alguns subgrupos como os doentes com hipertensão resistente à
terapêutica farmacológica ou maligna ou em portadores de doença coronária ou
aneurismática da aorta, onde a prevalência de doença oclusiva das artérias
renais parece atingir os 20-30%1,2.
À semelhança dos outros territórios envolvidos pela aterosclerose, existe
evidência de que as lesões são progressivas e vários estudos retrospectivos
baseados em arteriografia ou avaliação não invasiva por Eco-Doppler puderam
consubstanciar este conceito, demonstrando agravamento do grau de estenose em
36-71% e progressão para a oclusão arterial, com perda ou diminuição
significativa da função renal global, em 16%3-6. Estes dados levaram alguns
autores a sugerir que a doença renovascular pudesse ser causa determinante de
necessidade de hemodiálise. Todavia, desconhece-se o impacto que a moderna
terapêutica médica da doença aterosclerótica poderá ter na história natural das
lesões das artérias renais e na eventual redução das respectivas taxas de
progressão e de perda de massa renal funcionante.
A doença renovascular aterosclerótica é mais comum a partir dos 50 anos, mais
frequente nos homens e envolve a origem e/ou o 1/3 proximal da artéria. A lesão
oclusiva da artéria renal corresponde geralmente a extensão da lesão de ateroma
da parede da aorta que se estende ao ostium e segmento inicial daquela artéria.
A apresentação clínica é diversificada desde hipertensão arterial de difícil
controlo, a nefropatia isquémica (com insuficiência renal) e a atrofia renal.
Porém, nalguns doentes, as lesões da artéria renal são assintomáticas e o seu
diagnóstico resulta dum exame fortuito, constituindo um achado de significado
controverso mas que em regra traduz formas de aterosclerose mais avançadas,
pluri-focais e com prognóstico clínico mais grave, nomedamente diminuição da
sobrevivência7.
A terapêutica actual tem sido baseada em dois pilares: o tratamento médico, com
o objectivo de procurar controlo adequado da hipertensão arterial, dos factores
de risco cardiovascular, bem como modulação da progressão da doença
aterosclerótica com o recurso a estatinas e anti-agregação plaquetária (AAP); e
revascularização renal, por cirurgia aberta convencional ou por intervenção
endovascular.
A cirurgia aberta tem como objectivo a revascularização das artérias renais
através de técnicas como a endarterectomia, o bypass, a re-implantação arterial
e/ou a transposição de outras artérias (como a esplénica, hepática ou
hipogástrica) para as artérias renais, cujas indicações e soluções técnicas
variam de acordo com situações específicas dos doentes, como idade,
disponibilidade de conduto arterial autólogo e extensão da doença8,9. Trata-se
em regra de procedimentos invasivos, efectuados mediante laparotomia e
dissecção mais ou menos extensa e associados a mortalidade de 1-9%, conforme é
referido em séries provenientes de centros de referência para a
revascularização renal10. No momento presente continua a ter um papel essencial
na doença ateroesclerótica em casos selecionados, em especial quando há
necessidade de cirurgia aórtica ou de revascularização visceral concomitante,
em lesões muito distais da artéria renal ou dos seus ramos, na presença de
calcificação extensa, quando a cirurgia endovascular não foi conseguida ou nas
suas complicações e finalmente nalguns casos de lesões complexas de estenose
renal em rim transplantado.
A angioplastia percutânea com balão foi introduzida neste território nos anos
1980 e desde então assistiu-se a importante evolução técnica pelo que a moderna
cirurgia endovascular renal para lesões ateroscleróticas inclui a utilização de
introdutores, catéteres-guia e fios-guia de baixo perfil, a colocação
sistemática de stent primário expansível por balão e alguns autores propõem
também o uso de sistemas de protecção embólica. Preconiza-se ainda o uso
sistemático de catéteres-guia no sentido de minimizar o contacto com a parede
aórtica e o risco de embolização o que ficou conhecido por no-touch technique.
Esta abordagem, bem como o uso das plataformas de baixo perfil, mostraram menor
risco de complicações do acesso e de ateroembolismo renal.
A moderna cirurgia endovascular das artérias renais é efectuada nos centros de
excelência com sucesso técnico superior a 95%, morbilidade major inferior a 5%
e mortalidade inferior a 1%11-13.
A re-estenose constitui o seu calcanhar de Aquiles e pode atingir 10-20% dos
doentes o que implica maior necessidade de seguimento e re-intervenção
endovascular eventual, o que está associado a melhoria do outcome com
incremento da permeabilidade (primária) aos 5 anos de 75-82% para 90-95%
(permeabilidade primária assistida).
De uma forma geral, é expectável a melhoria da hipertensão arterial em 50-80%
dos casos e a melhoria ou estabilização da função renal em 70-85%. No entanto,
15-25% dos doentes podem sofrer uma deterioração da função renal, facto que
pode ter etiologia multifactorial, desde nefropatia do contraste a
ateroembolização com compromisso da circulação intra-renal. Contudo, os seus
resultados tardios são sobreponíveis aos descritos em séries de cirurgia
aberta10 e demonstram que nestes doentes a disfunção renal ou a hipertensão não
têm apenas relação com a doença arterial troncular e são determinados também
por mecanismos multifactoriais onde se incluem alterações degenerativas do
parênquima renal, fenómenos de vasomotricidade anómala da circulação intra-
renal e activação de mediadores pró-trombóticos que podem comprometer a
eficácia de revascularização troncular.
Um outro facto relevante foi a discrepância entre os excelentes resultados de
séries institucionais e os obtidos em estudos prospectivos multicêntricos
nomeadamente os estudos EMMA14, DRASTIC15 e STAR16, os quais incluíram poucos
doentes14-16, privilegiaram o tratamento endovascular só por angioplastia (sem
stent)14,15, tiveram elevado número de crossoversentre os dois braços
terapêuticos14,15 e a selecção terá sido menos rigorosa com um número
substancial de doentes com grau de estenose moderado14-16.
Face à metodologia questionável destes estudos e ao facto de a terapêutica
endovascular não corresponder ao state of the art foram organizados estudos
randomizados de maior dimensão (ASTRAL17 e CORAL18) com o objectivo de comparar
a eficácia da terapêutica endovascular em relação à terapêutica farmacológica e
que foram publicados respectivamente em 2009 e em 2013.
O estudo ASTRAL incluiu 806 doentes, randomizados entre tratamento endovascular
e terapêutica médica e o endpoint principal foi o impacto na função renal.
Incluiu 41% de casos com lesão inferior a 70%, o grau de estenose médio foi de
76%, a pressão arterial sistólica média foi de 152 mmHg, o número médio de
fármacos anti-hipertensores que os doentes tomavam previamente foi de 2.8 e a
frequência de complicações major no braço endovascular do estudo foi 8%. Mas o
mais relevante é que só foram incluídos doentes nos quais os médicos
assistentes tivessem dúvidas sobre o benefício da revascularização, tendo sido
excluídos os doentes nos quais havia convicção do benefício da revascularização
o que constitui uma limitação muito importante na apreciação dos seus
resultados. Contrariamente às expectativas, algumas destas limitações foram
também apontadas ao ensaio CORAL o qual incluiu 931 doentes, também não
consecutivos, com grau de estenose médio de 67%, pressão arterial sistólica
média de 150 mmHg e número médio de fármacos anti-hipertensores de 2.1. A taxa
de complicações major no braço endovascular foi 5.2%.
A análise do conjunto de ambos os estudos mostrou um claro viés de selecção
(não inclusão de doentes consecutivos e exclusão dos grupos de maior benefício
potencial), tratamento de lesões menos graves (grau de estenose médio moderado
e muitos doentes com estenose <70%), tratamento de doentes menos graves
(pressão arterial sistólica média e número médio de fármacos anti-hipertensores
moderados) e acima de tudo a ausência de qualquer método de avaliação do
significado hemodinâmico das lesões tratadas. Estes factos limitam a validade
das conclusões apresentadas, nomeadamente pela exclusão dos doentes com lesões
mais graves e pela contaminação, nos grupos tratados, por doentes com lesões
moderadas, sem repercussão hemodinâmica significativa.
A demonstração da repercussão hemodinâmica das lesões é crucial uma vez que
apenas as lesões com impacto sobre a pressão arterial distal são susceptíveis
de desencadearem os mecanismos fisiopatológicos de activação do sistema renina-
angiotensina conducentes à hipertensão arterial. Ou seja, não é de esperar que
lesões moderadas, sem impacto hemodinâmico, sejam a causa das manifestações
clínicas e como tal não é espectável que o seu tratamento tenha um grande
benefício clínico.
Neste sentido, entendemos que as conclusões apresentadas nos estudos ASTRAL e
CORAL devem ser apreciadas com precaução e criticismo e que elas não invalidam
a importância da revascularização renal por angioplastia com stent em doentes
correctamente seleccionados. No entanto, torna-se imperioso reapreciar o
problema, melhorar e clarificar a selecção dos doentes e das lesões e analisar
com rigor e objectividade séries institucionais provenientes de centros com
expertise neste tipo de tratamento.
A nossa experiência nos últimos 14 anos é consistente com elevado sucesso
terapêutico a longo prazo. Com efeito foram tratados 101 doentes, portadores de
123 lesões de estenose ateroesclerótica da artéria renal com um grau de
estenose médio de 83%, dos quais 21.7% tinham doença bilateral e seguidos
durante um período médio de 76 meses. A hipertensão arterial estava presente em
98% dos casos, na sua maioria era de difícil controle farmacológico, e 18%
apresentava disfunção renal definida por creatinémia >1.5 mg/dl. Todas estas
lesões tinham comprovadamente repercussão hemodinâmica na avaliação com Eco-
Doppler, tendo a arteriografia confirmado a gravidade da estenose. O sucesso
técnico foi de 98%, a morbilidade major foi 1.9% e não houve mortalidade. A
longo prazo observou-se melhor controle da hipertensão com redução
significativa do número de fármacos (p<0.0001), melhoria da função renal nos
doentes com disfunção prévia (p=0.008) e uma frequência de restenose tardia de
7%19-21.
Estudos futuros deverão privilegiar grupos de doentes mais graves cujas
características clínicas têm sido relacionadas com os mecanismos da hipertensão
renovascular e onde se incluem o declínio rápido recente da função renal22,23,
a hipertensão acelerada, maligna ou resistente (>4 fármacos?)24,25 e os casos
de flush pulmonary edema. Outros autores sugerem maior benefício da
revascularização quando a taxa de filtração glomerular se mantém acima de 40
ml/min26 e os doseamentos de Péptido Natriurético-b mostram valores superiores
a 50 pg/ml27.
Por outro lado, necessitam de maior clarificação os doentes com lesões
bilaterais graves, estenoses unilaterais em rim único ou no rim transpantado. É
indispensável apreciação objectiva da repercussão hemodinâmica efectiva da
lesão proposta para tratamento, obtida quer por métodos pré-operatórios (como a
demonstração da aceleração do fluxo no Eco-Doppler28) e/ou intra-operatórios
(como a medição do gradiente de pressão trans-estenótico29). Finalmente, é
necessário clarificar a real importância dos chamados factores negativos os
quais parecem ser marcadores de pior resposta à revascularização por
significarem doença parenquimatosa avançada e onde se incluem a proteinúria e o
aumento do Índice de Resistência na artéria renal28.
Na actualidade, e apesar da publicação dos estudos mencionados, não há
evidência clara que sugira que a revascularização renal não é benéfica nos
doentes apropriados.
Assim, na nossa opinião e fundamentada na nossa experiência, deve manter-se a
indicação para revascularização renal nos seguintes casos:
• Lesões graves bilaterais ou em rim único.
• Lesões graves uni ou bilaterais em doentes com hipertensão maligna,
acelerada, resistente ou de difícil controlo (necessidade de > 4 fármacos),
atrofia renal homolateral (mas com diâmetro renal > 6 cm) ou insuficiência
renal em doentes medicados com fármacos inibidores da enzima de conversão da
angiotensina (IECA's) ou antagonistas dos receptores da angiotensina (ARA's).
• Lesões graves bilaterais ou em rim único em doentes com insuficiência renal
progressiva ou associados a flash pulmonary edema.
O stenting renal deverá constituir a técnica de primeira opção na maioria das
lesões e a cirurgia aberta deverá ser reservada para o pequeno grupo de
indicações que foram previamente mencionadas.