Complicações de cateteres totalmente implantáveis: a propósito de um caso
clínico
Introdução
Os sistemas de acessos venosos totalmente implantáveis foram introduzidos em
1980, e são rotineiramente utilizados em Oncologia, sendo especialmente úteis
para administrar fármacos. No entanto, estes são também de relevo noutras
áreas, sendo utilizados, por exemplo, para nutrição parentérica,
administração de antibióticos e para ï¬uidoterapia1.
Os locais normalmente utilizados para a punção variam conforme a situação.
Os mais comuns são a veia jugular interna, a subclávia, e a cefálica, mas
também existem casos, menos frequentes, em que é utilizada a veia femoral.
A punção é normalmente realizada utilizando a técnica de Seldinger, embora
também possa ser realizada através da abordagem cirúrgica.
Esta técnica pode originar várias complicações, que se podem dividir em
complicações do local de punção (hematomas locais, inï¬amação,
infeção, deiscência da ferida, dor), complicações associadas ao material/
dispositivo (rutura do cateter, exteriorização do dispositivo, migração do
cateter) e complicações locais (punção arterial, trombose, extravasão do
produto injetado, hemotórax e pneumotórax)1.
Relativamente aos vários locais onde se aplica a punção, e sua relação com
as complicações, vários estudos mostram que não existe diferença se
utilizada a veia subclávia, jugular ou a cefálica, sendo as taxas segundo
Wolosker et al. 17,7%; Leinung et al., 15,4% e de Narducci et tal. 16,1%1.
No nosso caso clÃnico vamos rever uma destas complicações, a lesão
arterial, e qual a melhor forma de a abordar.
Caso clÃnico
Apresenta-se uma doente do sexo feminino, de 42 anos, muito emagrecida e com
massa mediastÃnica, tendo-lhe sido diagnosticado um linfoma. Para a
realização de quimioterapia, a doente foi proposta para a colocação de um
cateter venoso totalmente implantável, do tipo Implantoï¬x.
Para a colocação deste, e utilizando anestesia local, foi feita uma tentativa
de colocação na veia subclávia, e posteriormente na veia jugular à direita,
mas estas não tiveram sucesso, uma vez que o ï¬o guia não progrediu. A
razão mais provável para tal deverá ter sido o efeito de massa criado pela
tumefação mediastÃnica. Por essa razão, optou-se por abordar a veia femoral
direita.
Nesta, a punção venosa foi feita sem diï¬culdades, assim como a progressão
do ï¬o guia e respetiva colocação do cateter, que decorreu sem incidentes.
No entanto, logo após o cateter estar colocado, e antes da adaptação do
reservatório, veriï¬cou-se uma hemorragia de sangue arterial em redor do
cateter, que se manteve mesmo aplicando compressão local. No entanto, a
aspiração do cateter revelou sangue venoso, e não havendo resistência Ã
injeção de soro, os achados descritos levaram a que se suspeitasse de
possÃvel lesão arterial.
Decidiu-se, no mesmo tempo cirúrgico efetuar uma abordagem imediata dos vasos
inguinais, tendo-se veriï¬cado que o cateter atravessava, de forma
transï¬xiva, a artéria femoral superï¬cial (ï¬g._1).
Procedeu-se ao isolamento e referenciação da artéria femoral comum, da
artéria superï¬cial, e da profunda. Removeu-se o cateter, sob clampagem
arterial e realizou-se venorraï¬a direta com prolene® 6/0 e procedeu-se Ã
transeção arterial com regularização dos bordos, que tinham ï¬cado
traumatizados pelo introdutor.
Finalmente, após conï¬rmação à inspeção da integridade do endotélio,
procedeu-se à anastomose termino-terminal da artéria femoral superï¬cial,
com sutura de Prolene® 6/0.
Depois de feita a desclampagem, veriï¬cou-se a hemostase da anastomose, assim
como a permeabilidade artérial. Colocou-se então o cateter na veia femoral
sob visualização direta.
Discussão
O prolongamento da sobrevida dos doentes, e as múltiplas terapias a que estes
são submetidos, levam a procedimentos cada vez mais complicados, para aceder
ao seu património venoso.
No entanto, na maioria dos casos, a colocação de acessos venosos continua a
ser efetuada de uma forma cega, sendo utilizadas as referências anatómicas,
obtendo-se taxas de sucesso entre os 75 e os 99%1. Embora a colocaçãode
cateteres guiada por ecógrafo continue a ser pouco utilizada, esta tem uma
taxa de complicações inferior a 1%2.
Quando utilizadas exclusivamente referências anatómicas, o risco de
ocorrência de punção arterial inadvertida é de 8,4%. No entanto, o risco de
punção arterial é de 6% se for utilizada a veia jugular interna, e de 0,5-4%
se utilizada a veia subclávia.2
Os mecanismos para este tipo de lesão incluem, desde o simples orifÃcio de
punção, à laceração ou disseção.3,4
Fatores como o morfotipo (obesidade, pescoço curto), hipotensão e
hipovolémia, assim como a hipoxémia (pela diï¬culdade em distinguir o ï¬uxo
arterial do venoso), são de risco à lesão arterial. Também a existência de
cicatrizes, ou de múltiplas utilizações prévias (como, por exemplo, na
insuï¬ciência renal crónica), pode conduzir à distorção da anatomia
normal.
Durante a colocação do cateter, existem alguns sinais de alarme que devem
levar à suspeita de lesão arterial. Estes incluem a constatação de ï¬uxo
retrógrado pulsátil de sangue bem oxigenado, e a hemorragia persistente em
redor da inserção do cateter3.
Após a colocação, as manifestações clÃnicas de punção arterial são
normalmente autolimitadas, mas em cerca de 30% dos casos tornam-se
sintomáticas, com consequente desenvolvimento de hemorragias/hematoma em
expansão, hemotórax, deï¬citsneurológicos (AVC por trombose arterial ou
embolia cerebral) ou sintomas isquémicos, revestindo-se por vezes de grande
gravidade.
Como situações de apresentação mais tardia, podemos referir os falsos
aneurismas e as fÃstulas arteriovenosas, que estão associados a punções
arteriais que não foram diagnosticadas, ou foram tratados por compressão de
forma «aparentemente» eï¬caz. 3,4
Menos frequentemente, podem apresentar-se como uma obstrução da via aérea
devido a hematomas cervicais, e como paralisia parcial do membro superior,
secundário a falsos aneurismas da artéria subclávia3,4.
Voltando ao nosso caso clÃnico, neste o cateter encontrava-se devidamente
colocado na veia, mas como atravessou a artéria, a suspeita assentou na
hemorragia persistente de sangue arterializado à volta do cateter.
As várias técnicas para conï¬rmação clÃnica da lesão arterial passam
pela realizaçãodeum ecodoppler(operador experiente), pela tomograï¬a axial
computorizada, e pela angiograï¬a com injeção de contraste, via lúmen do
cateter. Também o trajeto do cateter na radiograï¬a de controlo pode fazer
suspeitar da sua localização na árvore arterial, principalmente se colocado
nos vasos cervicais3.
As modalidades terapêuticas que podem ser utilizadas variam desde a
compressão local, a reparação cirúrgica convencional, ou procedimentos
percutâneos endovasculares2-5.
O tratamento adequado vai depender do tipo e localização da lesão arterial,
do tamanho do cateter, da estabilidade hemodinâmica do doente, da
disponibilidade das diferentes técnicas, e da experiência do cirurgião2.
Também são importantes os fatores inerentes ao doente, como o seu estado
geral, a tolerância à anestesia local, fatores de risco para anestesia geral
e anti coagulação.
Se ocorrer uma lesão punctiforme, que geralmente é secundária à punção
sem dilatação em locais acessÃveis, como na artéria carótida ou na
femoral, esta pode ser tratada por compressão.
No nosso caso clÃnico, a compressão poderia ter resolvido a hemorragia no
imediato, mas, no entanto, a lesão foi provocada não só pela punção
arterial, como também pela introdução do dilatador e do cateter. Assim, uma
das formas de apresentação tardia, poderia ter sido um quadro de falso
aneurisma, ou uma fÃstula arteriovenosa.
Quando se conï¬rma que existe, de facto, cateterização arterial, deve-se
remover logo que possÃvel o cateter, em ambiente cirúrgico (uma vez que este
serve de tampão) e com controlo dos vasos. Se o tempo de espera for
signiï¬cativo, devemos considerar a heparinização do cateter para a
proï¬laxia da trombose arterial com posterior isquemia, sendo que esta última
necessitaria de um alto Ãndice de suspeição para uma solução precoce 5.
Noutros casos, a suspeita de lesão arterial é feita com base em sintomas
subtis, como a hipotensão relativa, a taquicardia (que responde
transitoriamente à ï¬uidoterapia), a queda persistente da hemoglobina, ou o
baixo rendimento transfusional. Esta situação é caraterÃstica dos hematomas
retroperitoneais, associados a punções femorais acima do ligamento inguinal5.
Nestes casos, a tomograï¬a computorizada conï¬rma-nos o diagnóstico, e antes
de qualquer procedimento cirúrgico, devem ser instituÃdas medidas de suporte
como a correção de coagulopatia, devendo também ser feita a revisão dos
medicamentos pro-hemorrágicos5.
Fazendo uma referência ao falso aneurisma, temos como alternativas
terapêuticas a injeção eco-guiada de trombina (1000 UI), com uma taxa de
sucesso próxima dos 99%5. A cirurgia convencional, com excisão do aneurisma e
ponto hemostático na artéria, é também uma solução simples e com
excelentes resultados nas artérias acessÃveis5.
Uma outra forma de abordar a lesão arterial pode passar pelo tratamento
endovascular. Este inclui a correção com stents cobertos, a utilização de
dispositivos de encerramento do orifÃcio, e a insuï¬ação com balão de
angioplastia, sendo que esta última não pode ser utilizada como procedimento
isolado, mas sim como procedimento adjuvante da reparação cirúrgica ou
endovascular.
A correção com stents cobertos pode ser particularmente útil nas lesões de
difÃcil acesso, nomeadamente na subclávia.
Também podem ser utilizados dispositivos percutâneos de encerramento, cujo
objetivo é adquirir a hemóstase imediata. Alguns exemplos incluem o Vaso-
seal®, o Angio-seal® e o Perclose®5. Estes, apresentam taxas de sucesso
próximas dos 99% na reparação da artéria femoral3.
Além do custo adicional, a sua colocação está reservada a operadores
experientes, a um diagnóstico correto e ao uso de aparelhos de imagiologia.
Alguns destes dispositivos irão impedir o uso deste vaso durante largo tempo.
Embora não existam guidelinessobre a abordagem da cateterização arterial,
queria terminar relembrando um algoritmo proposto por Guilbert et al. (ï¬g.
2).
Conclusão
A colocação de cateteres totalmente implantáveis é uma técnica em
crescente utilização, sendo importante conhecer e diagnosticar as suas
complicações.
Os fatores de risco para a lesão arterial incluem, morfotipos particulares,
hipotensão severa, baixa saturação da hemoglobina e procedimentos prévios
no mesmo local.
O risco pode ser minimizado, se a técnica for realizada através de controlo
ecográï¬co e eventual controlo angiográï¬co posterior.
Os sinais de alerta são o ï¬uxo retrógrado excessivo e pulsátil, hematoma
local expansivo ou hemorragia persistente pelo orifÃcio de punção.
Uma vez que se suspeite de lesão arterial, deve ser realizado um estudo
imagiológico, se o doente estiver hemodinamicamente estável.
O objetivo do tratamento destas lesões é adquirir a hemóstase através da
compressão, da abordagem percutânea, ou pelo tratamento cirúrgico
convencional.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta
investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Conï¬dencialidade dos dados.Os autores declaram ter seguido os protocolos do
seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escrito.Os auto-res declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conï¬ito de interesses
Os autores declaram não haver conï¬ito de interesses.
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*Autor_para_correspondência:
Correio eletrónico:catarinagois@hotmail.com (C. Góis Macedo).
Recebido a 18 de setembro de 2014;
Aceite a 6 de dezembro de 2014
DisponÃvel na Interneta 9 de janeiro de 2015