Os transtornos típicos de cultura e a enfermagem transcultural: running amok
Os transtornos típicos de cultura e a enfermagem transcultural: running amok
Introdução
A Etnopsiquiatria surge, na actualidade, como um importante componente da
Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria, considerando o mundo global em que se
desenvolvem as práticas de prestação de cuidados de saúde. Nesse contexto,
surge a necessidade, por parte dos enfermeiros, de dominar cada vez melhor as
competências relacionadas com a Enfermagem Transcultural.
A Running Amok, ou simplesmente Amok, é um dos Transtornos Típicos de Culturas
(CBS) mais frequentes na actualidade, sobretudo em países como a Malásia,
estando classificada na revisão da quarta edição do Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders® (DSM-IV-TR®) (American Psychiatric Association,
2002).
O presente artigo visa analisar algumas questões ligadas à Psiquiatria Cultural
e à Etnopsiquiatria, e em particular à Running Amok. Nesse sentido, serão
abordados os seguintes aspectos: definição, etiopatogenia, incidência e
prevalência, critérios de diagnóstico, sintomatologia, tratamento, prognóstico
e intervenções de Enfermagem associadas à Running Amok. Por fim, será realizada
uma análise critico- reflexiva sobre o trabalho desenvolvido.
Metodologia
O artigo a elaborar será construído, sob o ponto de vista metodológico, com
base na revisão bibliográfica realizada, predominantemente, a partir de livros
presentes na biblioteca da Escola Superior de Enfermagem do Porto, de artigos
indexados na base de dados EBSCOhost®, PubMed®, MEDLINE® e de outros artigos
presentes em sítios da Internet dedicados à divulgação de trabalhos
científicos.
Psiquiatria Cultural e Etnopsiquiatria
A cultura influencia aspectos fundamentais da identidade e funcionamento social
do Homem, afectando a forma como este expressa o seu sofrimento e experiencia a
patologia. A cultura, define ainda o que é normal e desviante. A Psiquiatria
Cultural incentiva o profissional de saúde a compreender o cliente segundo uma
perspectiva cultural, e não numa perspectiva meramente biomédica (Bhugra,
Kalra, 2010). Ao longo dos sub-capítulos seguintes serão explorados os
conceitos de Psiquiatria Cultural e de Etnopsiquiatria, bem como os seus
desafios futuros, sendo ainda realizada uma abordagem à Enfermagem
Transcultural.
Conceitos e desafios
A doença mental manifesta-se de formas diferentes nas sociedades sendo que
estas, por sua vez, têm também formas distintas de lidar com ela. Nas
sociedades mais ocidentais, prevalece o controlo institucional da doença, bem
como a atribuição da responsabilidade para resolver o problema ao profissional
de saúde. No entanto, existem sociedades que não fazem uso das instituições
para controlar a doença, nem atribuem demasiada responsabilidade aos
profissionais. Nessas mesmas sociedades, não são utilizados os argumentos
científicos para trabalhar com o doente, dando-se preferência ao conhecimento
tradicional, que é compartilhado por todos. Assim, o "psiquiatra tradicional"
faz uso desse mesmo conhecimento e do apoio de toda a comunidade para exercer a
sua função (Noronha, 2004).
No que concerne à Psiquiatria Cultural, este termo foi introduzido por Kraeplin
em dois artigos de reflexão acerca das suas experiências com doentes mentais,
em Java, no início do Século XX (Kraeplin, 1904, cit. por Stompe, Wintrob,
2007). Durante as décadas que se seguiram aos relatos pioneiros de Kraeplin, o
papel emergente da Psiquiatria Cultural foi fortalecido por um crescente corpo
de investigação sistemática que conduziu à percepção mais profunda das
características colectivas e individuais dos seres humanos. Na actualidade, é
comum a partilha de conhecimento específico de cada sociedade relativamente a
questões como a religião, política, educação ou economia, mas também acerca de
sistemas simbólicos e semânticas que apresentam influências directas ou
indirectas na fenomenologia e nos aspectos relatados acerca de perturbações
psiquiátricas (Stompe, Wintrob, 2007).
Os rápidos progressos científicos da Psiquiatria Cultural no Século XX foram,
em grande parte, despoletados pelos enormes desafios sócio-políticos e éticos
que surgiram na sequência das guerras, resultando em fortes vagas de migração,
forçada e voluntária, com a consequente readaptação aos novos ambientes. Essa
readaptação levou, necessariamente, a um crescendo de situações de stress por
aculturação, conflitos intergeracionais de valores, distress psíquico e
sintomatologia psiquiátrica (Stompe, Wintrob, 2007).
Todos esses momentos de desenvolvimento histórico do século passado levaram à
promoção da diferenciação da Psiquiatria Cultural em três áreas importantes: a
Psiquiatria Transcultural/Comparativa; a Etnopsiquiatria; e a Psiquiatria de
Migração. (Stompe, Wintrob, 2007).
A Etnopsiquiatria é, assim, o ramo da Psiquiatria Cultural mais próximo da
etnologia e da ciência etnográfica, descrevendo a formação de perturbações
mentais específicas de culturas. Constituem um exemplo, as CBS ou o impacto
específico de padrões sócio-culturais e religiosos, bem como as atitudes
terapêuticas a adoptar perante o doente mental. (Kleinman, 1988, cit. por
Stompe, Wintrob, 2007).
O propósito da Etnopsiquiatria é o de estabelecer uma linguagem que possa ser
compreendida por todos, valorizar o meio onde reside a pessoa doente, e
utilizar-se esse mesmo meio como factor de recuperação. Assim, no trabalho
etnopsiquiátrico, a participação do doente e dos familiares no tratamento é
activa, com o objectivo último de entender a etiologia do problema e de
procurar soluções para o caso (Noronha, 1986, cit. por Noronha, 2004). Neste
sentido, a Etnopsiquiatria não pretende ser mais do que uma subdivisão de uma
especialidade, mas com a função particular de chamar a atenção para os
componentes socioculturais em torno do doente mental que, ao longo dos tempos,
tem vindo a ser subjugado por uma visão redutora do seu problema sofrendo, por
isso, sérias consequências (Collomb, 1975, cit. por Noronha, 2004).
A Etnopsiquiatria foi construída a partir de um princípio metodológico
extremamente relevante neste contexto: a complementaridade não é uma teoria,
mas antes uma generalização metodológica; a complementaridade não exclui nenhum
método, todos os métodos são considerados válidos (Devereux, 1972, cit. por
Baubet, Moro, 2000). É no âmbito da ligação verificada entre a fragilidade e o
contexto, que a Etnopsiquiatria adquiriu a razão da sua existência. Por entre
as suas diversas redes e filiações, esta apresenta um triplo sentido no centro
dos seus discursos e práticas: primeiramente, enfatiza a dignidade de todas as
culturas como uma plataforma a partir da qual os diagnósticos podem ser
realizados; em segundo lugar, traz ao de cima o facto de o encarceramento não
ser a melhor terapia para as perturbações mentais; finalmente, tem em linha de
conta o contexto e o ambiente como aspectos proeminentes de qualquer narrativa
realizada pelo doente acerca de si mesmo, e pelo terapeuta acerca da doença
(Bidima, 2000).
As culturas e a prática de enfermagem
A Enfermagem Transcultural nasceu na década de 1950 com o objectivo de promover
uma prestação de cuidados congruente com as culturas, proporcionando assim um
cuidar em Enfermagem mais humanístico, seguro e significativo para as pessoas
de diversas culturas em todo o Mundo. Assim, a Enfermagem Transcultural defende
que todas as culturas têm o direito de ter os seus valores, crenças e formas de
vida reconhecidas, respeitadas e suportadas pela sua saúde e bem-estar
(Leininger, 1997, Leininger, 2008). No mesmo sentido, tem vindo a ser defendida
a importância da competência cultural na prestação de cuidados de saúde, na
medida em que muitos erros de diagnóstico e de tratamento se relacionam
directamente com factores como o desconhecimento cultural ou o défice ao nível
da comunicação (Campinha-Bacote, Campinha-Bacote, 2009). A comunicação
transcultural inclui factores que devem ser tidos em consideração quando os
enfermeiros interagem com os clientes e com os membros da família de contextos
culturais que diferem do seu (Andrews, 2003, cit. por Maier- Lorentz, 2008).
Assim, questões simples, como o contacto
ocular, devem ser extremamente cuidados, já que os enfermeiros portugueses são
ensinados a manter o contacto ocular com o cliente quando, por exemplo, na
cultura árabe, o contacto ocular directo é considerado indelicado, e até mesmo
agressivo. Da mesma forma, os nativos norte- americanos consideram o contacto
ocular directo como sendo algo impróprio; na sua cultura, sentar-se no chão
durante o diálogo é sinónimo de estar a escutar atentamente a pessoa com quem
se está a falar (Maier-Lorentz, 2008).
Nos países ocidentais os enfermeiros são ensinados a usar o toque como forma de
comunicação terapêutica com os clientes (Understanding Transcultural Nursing,
2005, cit. por Maier-Lorentz, 2008), no entanto, algumas culturas proíbem ou
restringem o toque a outras pessoas. Assim, é frequente, clientes que provêm de
contextos árabes ou hispânicos não permitirem que os prestadores de cuidados do
sexo masculino toquem algumas partes do corpo feminino. Para além disso, as
mulheres de ambas as culturas podem também ser impedidas de cuidar de clientes
do sexo masculino. Os asiáticos não aprovam o toque na cabeça porque acreditam
que aí reside a fonte da força da pessoa (Maier-Lorentz, 2008).
O silêncio, nos países ocidentais, é vulgarmente interpretado de forma
negativa, podendo os enfermeiros sentir-se desconfortáveis quando existe um
período de silêncio durante o diálogo com o cliente. Porém, em algumas culturas
o silêncio apresenta uma conotação extremamente positiva. Por exemplo, é comum
nos nativos norte-americanos o uso do silêncio como forma de mostrar respeito
pela pessoa que está a falar. O silêncio também é obrigatório quando se fala
com os idosos de culturas asiáticas, já que é um sinal de grande respeito pelas
pessoas mais velhas. Mesmo em populações próximas de Portugal, como na França e
Espanha, as pessoas demonstram concordância com o uso do silêncio (Maier-
Lorentz, 2008).
Existem ainda algumas particularidades ao nível do espaço e distância, bem como
no que concerne às crenças em saúde. Assim, por exemplo, as pessoas de
descendência norte-americana, geralmente, sentem-se mais confortáveis quando
não estão em contacto próximo com outras pessoas. Por outro lado, os hispânicos
e asiáticos tendem a sentir-se muito confortáveis quando estão próximos de
outrem (Andrews, 2003, cit. por Maier-Lorentz, 2008). As pessoas que acreditam
que têm controlo sobre os seus eventos de vida crêem ter controlo sobre o seu
estado de saúde (exemplo dos asiáticos e americanos). Por outro lado, de um
modo geral, os hispânicos sentem que têm menos controlo sobre as suas vidas e
tendem a ser mais fatalistas na sua visão acerca da saúde, acabando por ser
menos colaborantes no cumprimento de uma dieta prescrita ou regime
medicamentoso (Maier-Lorentz, 2008).
A Enfermagem Transcultural é essencial na prática diária de Enfermagem. O
crescente número de clientes de variados contextos culturais faz com que os
enfermeiros tenham que adquirir conhecimentos transculturais, como forma de
estarem mais sensibilizados para as necessidades dos clientes das mais diversas
culturas, na medida em que as sociedades se têm vindo a tornar cada vez mais
globais e complexas (Maier-Lorentz, 2008).
CBS ' Transtornos Típicos de Culturas
No século XIX houve um aumento circunstancial de explorações médicas por todo o
mundo e começaram a surgir diversos relatos médicos de transtornos que até
então eram desconhecidos para os investigadores. Com o estudo destas patologias
começou a inferir-se que os factores culturais representavam um papel
fundamental no seu desenvolvimento. A primeira classificação destes fenómenos
deve-se a Yap, em 1951, após a qual surgiram novas propostas de classificação
que iremos abordar de seguida (Tseng, 2006).
Conceito e breve historial
Segundo Tseng (2006, p. 554), Transtornos Típicos de Culturas (CBS) são
"condições mentais ou síndromes psiquiátricas cuja manifestação ou ocorrência
estão relacionadas intimamente com factores culturais, garantindo- se assim que
a sua avaliação e tratamento é feito segundo uma perspectiva cultural".
Com o aumento das viagens pelo mundo, os relatos de distúrbios psiquiátricos
associados a factores culturais foi aumentando (Gaw, Bernstein, 1992) e a
classificação destes fenómenos teve vários estádios, de acordo com a própria
evolução histórica da psiquiatria cultural (Tseng, 2006).
Numa fase inicial Yap (1951, cit. por Tseng, 2006) classificou estes fenómenos
como "distúrbios psiquiátricos peculiares" que mais tarde vieram a apelidar-se
de CBS (Yap, 1967, cit. por Tseng, 2006), classificação que se mantém até hoje.
No entanto, têm vindo a surgir novas sugestões para a sua classificação,
nomeadamente "culture-related specific conditions" (Tseng, McDermott, 1981,
cit. por Tseng, 2006) e mais recentemente "culture-related specific syndromes"
(Tseng, 2001, cit. por Tseng, 2006). Estas propostas surgem com o objectivo de
haver uma maior precisão na definição destes fenómenos (Tseng, 2006).
O número de propostas que surgiram para a classificação destes fenómenos, é, na
opinião de Hughes (1996, cit. por Pussetti, 2006) um indício de que a sua
classificação sempre foi problemática, uma vez que foi criada para abranger
fenómenos que por si só também eram difíceis de classificar.
Amok
Uma das CBS mais comummente referenciadas na literatura (sobretudo
internacional) é a Running Amok, um distúrbio presente na Malásia, que iremos
explanar, seguidamente, de forma mais aprofundada. Assim, nos sub-capítulos
seguintes serão abordadas, inicialmente, a definição e a etiopatogenia da
Running Amok, os critérios de diagnóstico e sintomatologia da patologia e,
finalmente, o tratamento e prognóstico da mesma.
Definição e etiopatogenia
Amok, também conhecida como running amok ou amuk, é um termo de origem malaia
que significa "louco com uma raiva incontrolável", que acontece quase
exclusivamente nos homens (Schmidt, Hill, Guthrie, 1977). Foi inicialmente
identificada na Malásia, muito embora também tenham sido reportados episódios
de amok noutras regiões do Sudeste Asiático, incluindo a Sumatra, a Papua Nova
Guiné, Singapura, Indonésia, Filipinas e Laos (Gaw, Bernstein, 1992). Segundo
Metzger (1887, cit. por Schmidt et al., 1977) os nativos da Malásia
apresentavam uma predisposição para o assassínio colectivo, uma vez que,
estavam sempre armados com um kris ou uma faca (a arma habitual dos episódios
de amok), iniciando o ataque tendo por base algumas situações como ciúmes por
uma mulher ou humilhação de algum género. Outras armas utilizadas nestes
ataques eram a parang, machados, bastões, facas e armas (Schmidt et al., 1977).
Embora a expressão amok seja usada comummente, a sua principal utilização está
ligada a um Transtorno Típico de Cultura, na cultura malaia. Segundo Martin
(1999, p. 66) "este termo descreve um comportamento homicida e consequentemente
suicida de indivíduos instáveis mentalmente que resulta em múltiplas lesões e
mortes para os outros". Na linguagem malaia, mengamok refere-se ao acto de
"ficar louco de raiva" (running amok) e o pengamok é a pessoa que protagoniza o
acto (Gaw, Bernstein, 1992). Os indivíduos corriam selvaticamente, apresentando
uma força e persistência extraordinárias, sendo normalmente assassinados ou
contidos, mas quando tal não se verificava, o indivíduo apresentava um colapso
abrupto sem razão aparente e já durante a recuperação afirmava que tinha estado
mata gelap (com os olhos escurecidos), era então capturado e tornava-se escravo
do rajah (Metzger, 1887, cit. por Schmidt et al., 1977).
Carr e Tan (1976, cit. por Gaw, Bernstein, 1992, p. 790) descreviam o amok na
cultura malaia, como um "canal para expressar uns impulsos agressivos nas
pessoas que normalmente estavam condicionadas a reprimir a sua raiva".
O amok foi evoluindo ao longo dos séculos: originalmente era o grito de guerra
dos piratas malaios que tinham como objectivo saquear outros barcos e esta
acção era bem aceite socialmente e considerada honrosa; do século XVI ao século
XVIII o pengamok iniciava as suas acções de uma forma consciente e deliberada,
como terrorismo político, mas evitando prejudicar outras pessoas que não os
alvos seleccionados inicialmente; devido ao aumento da incidência destes casos,
o governo colonial britânico, definiu, em 1893, que estes casos deveriam ser
julgados em tribunal, tendo-se verificado um decréscimo significativo na sua
incidência; no século XIX a natureza do comportamento sofreu uma alteração
drástica, uma vez que os episódios de amok deixaram de ser premeditados e os
homicídios em massa ocorriam num estado dissociativo e com amnésia posterior;
já na segunda metade do século XIX a frequência de casos de amok diminuiu
drasticamente e os indivíduos apresentavam um longo historial de distúrbios
psicóticos, em vez de reacções dissociativas (Tseng, 2006).
A sua classificação enquanto CBS deve-se à descoberta desta patologia, há dois
séculos atrás, em "tribos primitivas", acreditando-se que os factores culturais
desempenhavam um papel predominante na sua patogenia, devido ao seu isolamento
geográfico e crenças religiosas que levavam ao aparecimento de uma perturbação
mental que não era observada no resto do mundo (Martin, 1999). No século XIX
este síndrome era relatado com alguma frequência em alguns grupos étnicos da
Malásia, nomeadamente os Bugis, os Javanese e os Malays (Gaw, Bernstein, 1992).
Westermeyer (1973, cit. por Gaw, Bernstein, 1992), um psiquiatra do Minnesota
que se dedicou ao estudo dos episódios de amok, verificou a possível existência
de um padrão epidémico nos casos de amok que avaliou na Malásia, na Tailândia,
em Laos e nas Filipinas, acreditando que existia uma maior predisposição para
este tipo de comportamento após a exposição a episódios de amok. A sua teoria
apoiava-se em situações como o caso do "grenade-amok" que ocorreu em 1959
durante um festival religioso em Laos, após o qual se verificou um aumento
gradual da incidência de casos de amok, atingindo 20 casos reportados em 1966.
Também Schmidt et al. (1977) estudaram os casos de amok no Este da Malásia,
sendo que dos 24 casos analisados, apenas um era referente a uma mulher, pelo
que podemos inferir que é mais prevalente no sexo masculino.
Desde o aparecimento dos primeiros casos de amok que se tem vindo a especular
sobre as causas deste transtorno (Gaw, Bernstein, 1992). Diversos autores
apontaram como causas orgânicas a epilepsia (Zaquirre, 1957, cit. por Gaw,
Bernstein, 1992, Kraepelin, 1904, cit. por Schmidt et al., 1977), infecções
como a malária ou a sífilis (Kraepelin, 1904, cit. por Schmidt et al., 1977,
Van Loon, 1928, cit. por Gaw, Bernstein, 1992), esquizofrenia (Kraepelin, 1904,
cit. por Schmidt et al., 1977, Zaquirre, 1957, cit. por Gaw, Bernstein, 1992),
depressão (Ellis, 1901, cit. por Gaw, Bernstein, 1992), psicoses (Weidman,
1971, cit. por Gaw, Bernstein, 1992) e reacções dissociativas (Esser, 1961,
cit. por Gaw, Bernstein, 1992). Segundo os dados recolhidos no estudo de
Schmidt et al. (1977), os autores acreditam que a amok pode aparecer associada
a uma extensa variedade de distúrbios psicopatológicos.
No entanto, e uma vez que, a maioria dos casos observados não revelaram
qualquer uma destas patologias, os investigadores têm enfatizado o papel da
cultura na génese deste problema (Gaw, Bernstein, 1992). Westermeyer (1973,
cit. por Gaw, Bernstein, 1992) definiu três variáveis culturais que estariam
envolvidas no desenvolvimento deste fenómeno, entre elas: a susceptibilidade
individual, uma experiência cultural que incluía uma consciencialização sobre a
violência de amok e, por fim, rápidas alterações socioculturais.
Mais recentemente, Martin (1999, pp. 68-69) afirma que, tendo em conta a
escassa literatura sobre amok, pode concluir-se que condições psiquiátricas, a
personalidade, a patologia, e/ou perdas recentes, são factores importantes na
sua patogénese, definindo como factores de risco:
"história de comportamento violento e/ou ameaças; tentativas de suicídio
anteriores; stress interpessoal significativo; transtornos paranóides, anti-
sociais, narcisistas, ou traços de personalidade borderline; história de
psicose ou comportamento violento durante uma alteração de humor; distúrbios
psicóticos com delírios persecutórios; distúrbios psicóticos com alucinações
que incentivavam a violência; actividade delirante; problemas com o emprego".
Segundo Schmidt et al. (1977) podem classificar-se quatro fases da doença: a
primeira fase é caracterizada por um período de depressão e irritabilidade com
respostas agressivas do indivíduo quando alguém tenta penetrar no seu espaço de
segurança; na segunda fase o indivíduo manifesta um impulso agressivo
incontrolável; na terceira fase o indivíduo apresenta um comportamento homicida
que se mantém até que o pengamok seja contido, morto ou entre num estado de
exaustão e estupor; na quarta e última fase, os indivíduos experienciam um
período de amnésia parcial, isto se, sobreviverem ao estádio anterior.
Nos dois últimos séculos tem-se verificado um decréscimo na incidência dos
episódios de amok, acreditando-se que as influências da civilização ocidental e
os intercâmbios culturais foram eliminando os factores culturais que se
acreditava serem os principais responsáveis por este comportamento violento na
Malásia e noutras cultura asiáticas (Martin, 1999). No entanto, tem-se
verificado um aumento de ocorrência de casos semelhantes nas sociedades
industrializadas, nomeadamente um caso reportado em 1987 na Grã-Bretanha (Kon,
1994), mas, uma vez que se acreditava profundamente que os factores culturais
induziam o aparecimento de amok, não foi feita uma ligação com estes casos de
violência em massa (Martin, 1999). Os media, as testemunhas e os relatórios
policiais descrevem os atacantes como pessoas estranhas ou irritadas e
impulsivas, sugerindo distúrbios da personalidade, distúrbios paranóides, ou
ainda síndromes depressivos resultante de uma perda severa (Martin, 1999).
Outra das semelhanças com os episódios de amok, é o número de vítimas
resultantes, muito embora as armas utilizadas actualmente, como os revólveres e
as espingardas, sejam bastante distintas das espadas malaias utilizadas há dois
séculos atrás (Martin, 1999).
São conhecidas duas formas de amok, sendo que a forma mais comum, beramok,
encontra-se associada a uma perda pessoal e é precedida por um período de humor
depressivo; por seu lado, a amok, foi associada a um ataque a outrem,
despoletado por raiva, insultos ou vingança. Assim sendo, e tendo por base os
mais recentes casos de amok reportados, acredita-se que a beramok está
relacionada com perturbações depressivas, enquanto que o amok parece estar
associada a psicoses, distúrbios da personalidade ou delírios (Martin, 1999).
Diagnóstico e sintomatologia
Devido ao reporte, cada vez mais frequente, de distúrbios relacionados com
factores culturais, como o koro, amok e pibloktoq, que chegaram a atingir as
centenas em todo o mundo (Gaw, Bernstein, 1992), começou a inferir-se que
alguns sistemas de valores, estruturas sociais e crenças partilhadas podiam
despoletar formas psicopatológicas específicas restritas a determinadas áreas
geográficas (Yap, 1969, cit. por Gaw, Bernstein, 1992). Assim sendo, o
desenvolvimento na década de 90, da décima edição da Internacional
Classification of Disease (ICD) e da quarta edição do Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) acabou por se tornar a
oportunidade ideal "para uma análise e classificação mais sofisticada destes
distúrbios e para realizar estudos comparativos em várias culturas" (Gaw,
Bernstein, 1992, p. 789).
Com o aumento das viagens pelo mundo e da emigração, podia verificar-se um
aumento da ocorrência destes fenómenos nos países industrializados, pelo que se
tornava pertinente dar uma maior atenção aos distúrbios relacionados com os
factores culturais na DSM, muito embora a sua terceira edição fosse utilizada
essencialmente nas culturas ocidentais (Gaw, Bernstein, 1992).
O processo de introdução do amok no DSM-IV passou por diversas fases, entre
elas: a análise do amok e a discussão dos seus factores culturais específicos;
a estipulação de critérios que definissem um distúrbio como "especificamente
relacionado com os factores culturais" tendo por base um paradigma proposto
previamente para a classificação destes distúrbios; e por último, a
argumentação para que seja feita a classificação do amok no DSM-IV (Gaw,
Bernstein, 1992).
"Um acto de amok é a combinação de um distúrbio do humor, do comportamento e da
cognição" (Gaw, Bernstein, 1992, p. 791). O distúrbio de humor não é específico
e normalmente só se verifica em retrospectiva, a amnésia posterior também
demonstra alguma inconsistência, até porque alguns dos observadores eram da
opinião de que os indivíduos simulavam a amnésia para saírem impunes, pelo que
o aspecto mais importante a considerar seria a alteração dos comportamentos
verificada ao cometer os homicídios (Gaw, Bernstein, 1992). Estas conclusões
levaram a que os autores sugerissem, numa fase inicial, que o amok fosse
classificado como um distúrbio de controlo de impulsos, mas, segundo Simons e
Hughes (1992, cit. por Gaw, Bernstein, 1992) deveria ser classificada como um
distúrbio explosivo isolado, uma vez que este se caracteriza por um único
episódio de perda do controlo de impulsos que conduz a um acto violento, com
impacto catastrófico noutros indivíduos, e cuja informação disponível, não
justifica o diagnóstico de esquizofrenia.
Alguns investigadores propuseram a criação de um apêndice que incluísse os
distúrbios relacionados com os factores culturais, no entanto Gaw e Bernstein
(1992), refutaram esta opção, uma vez que acreditavam que esta estratégia
levaria a que se inferisse que a cultura era o componente mais importante
destas síndromes; no entanto, muitos destes "distúrbios culturais" apresentam
características semelhantes aos distúrbios ocidentais. Assim sendo, a resolução
deste dilema, passou pela revisão da categoria de "distúrbios explosivos
intermitentes" que era contemplada no DSM-III-R, passando a existir no DSM-IV,
a categoria de "distúrbios comportamentais explosivos" e criada uma árvore de
decisão (Figura 1) (Gaw, Bernstein, 1992).
FIGURA 1 ' Árvore de Decisão para "Distúrbios Comportamentais Explosivos"
Tratamento e prognóstico
Martin (1999), afirma que o amok deverá ser considerado como um possível
resultado de uma psicose ou de uma severa perturbação da personalidade que
esteja sub- diagnosticada ou não tratada e, uma vez que é praticamente
impossível parar um ataque de amok, torna-se imperioso prevenir que este
aconteça.
A primeira abordagem de intervenção passa pela identificação de indivíduos que
apresentem condições psiquiátricas ou stressores psicossociais que predisponham
para a ocorrência de casos de running amok (Martin, 1999). O autor identifica
várias características comuns aos indivíduos que desenvolveram este distúrbio,
que poderão contribuir para a identificação dos indivíduos predispostos, sendo
elas:
"distúrbios depressivos psicóticos, ou distúrbios de humor, especialmente
distúrbios bipolares; distúrbios da personalidade, com surtos de violência
assim como distúrbios antissociais e personalidades borderline; distúrbios de
personalidade paranóide e/ou alucinações com temas persecutórios e
comportamentos agressivos como defesa a ameaças identificadas; perdas pessoais
significativas e stressores psicossociais; comportamento suicida e homicida e
pensamentos agressivos, sem esperança e vingativos; distúrbios psicóticos com
delírios persecutórios sobre o próprio; esquizofrenia paranóide com alucinações
de comando ou de actos violentos, que o individuo tende a obedecer." (Martin,
1999, p. 68).
A segunda abordagem de intervenção passa pela identificação das situações
clínicas sub-diagnosticadas e subsequente tratamento farmacológico e não
farmacológico das mesmas, para que não se venha a verificar um episódio de amok
(Martin, 1999).
A intervenção de Enfermagem deve ocorrer numa perspectiva de prevenção
(sobretudo primária) da ocorrência de episódios de amok, em indivíduos que
apresentem um dos distúrbios mentais prévios que, aparentemente, conferem uma
maior predisposição para desenvolver este tipo de patologia, bem como uma
herança cultural que se coaduna com a mesma. Assim sendo, a intervenção deve
compreender, essencialmente, dois níveis: o coping, na medida em que é
importante que o doente seja capaz de desenvolver mecanismos de adaptação a
situações limite que poderão despoletar o episódio de amok; e na gestão de
comportamentos, e de controlo de agressividade (Dochterman, Bulechek, 2008).
Estas abordagens, que visam o controlo de eventos que se pensam favorecer um
episódio de amok, como os sentimentos de raiva, a resposta face a insultos ou
vingança que referimos anteriormente, podem então diminuir a probabilidade da
sua ocorrência. Assim, a intervenção ao nível dos comportamentos deve ser mais
dirigida aos indivíduos que, ainda antes de desenvolverem qualquer episódio de
running amok, já apresentam sinais evidentes de dificuldades ao nível da
assertividade e do controlo dos impulsos e da agressividade.
Mediante a perturbação de base, e sobretudo no caso de o indivíduo apresentar
pensamentos disfuncionais, crenças erróneas ou erros cognitivos, deve recorrer-
se à reestruturação cognitiva, ou seja, intervir no âmbito da terapia
cognitiva. No caso de a pessoa apresentar problemas ao nível cognitivo e
comportamental deve, preferencialmente, intervir-se aos dois níveis, em
simultâneo. Porém, no caso de tal não
ser possível, deve dar-se preferência, numa fase inicial, à abordagem
cognitiva, passando-se então para a abordagem comportamental. Apenas no caso de
o indivíduo apresentar comportamentos que, dada a sua gravidade, coloquem em
risco a sua própria vida ou a vida de outrem, deve optar-se, primeiramente, por
uma abordagem comportamental, dada a necessidade imperiosa de modificar o
comportamento, mesmo antes de trabalhar com o utente no sentido de implementar
um plano de cuidados que se centre no ponto de vista cognitivo.
Considerações Finais
Em suma, é importante que o enfermeiro tenha em conta a herança cultural do
doente a quem está a prestar cuidados, de forma a não desvalorizar os valores e
crenças da sua cultura, e, desta forma, poder demonstrar respeito pela pessoa e
prestar cuidados de saúde diferenciados e mais humanizados.
No que diz respeito ao Amok, consegue perceber-se que existem algumas
incongruências, nomeadamente no que concerne aos factores de risco, uma vez que
englobam os distúrbios psiquiátricos mais comuns nas culturas ocidentais, o que
dificulta a possibilidade de prevenção da ocorrência de um episódio de Amok, já
que este poderia ocorrer na grande maioria dos doentes; por outro lado, a
inclusão dos factores culturais como uma das causas precipitantes destes
episódios restritos a determinadas áreas geográficas, acaba por não explicar o
porquê da ocorrência de casos de Running Amok na actualidade, em sociedades
ocidentais, como por exemplo o caso identificado na Grã-Bretanha em 1987,
anteriormente referido, no qual não se verificavam características culturais
semelhantes às existentes nas tribos malaias e os diversos casos de violência
em massa reportados todos os anos, que, muito embora apresentem características
muito semelhantes às encontradas aos casos de Amok, não tiveram a mesma
classificação devido à inexistência de factores culturais evidentes que
pudessem ter despoletado o episódio.
A inclusão desta patologia no DSM-IV acaba por ser um avanço significativo, na
medida em que a existência de uma árvore de decisão fornece critérios
específicos para o seu diagnóstico. No entanto a inclusão dos factores
culturais como um dos critérios para o seu diagnóstico exclui uma grande parte
dos possíveis casos relatados nas últimas décadas.
Assim sendo, seria pertinente uma avaliação mais aprofundada dos factores de
risco de Amok, para ser possível estabelecer correctamente um plano de cuidados
diferenciado e que fosse eficaz na prevenção deste distúrbio.