Domínio Relações Sociais da Qualidade de Vida: Um Foco de Intervenção em
Pessoas com Doenças do Humor
Domínio Relações Sociais da Qualidade de Vida: Um Foco de Intervenção em
Pessoas com Doenças do Humor
Introdução
Estamos num momento de grande viragem na forma como se equacionam as práticas
em saúde mental e psiquiatria. Não existem dúvidas que a pessoa com doença
mental foi muitas vezes e, por muitos de nós, esquecida e negligenciada e que
não havia o devido interesse na investigação que envolvesse doenças mentais e
pessoas com doença mental. Nos últimos anos a investigação tem crescido nesta
área e a preocupação com a qualidade de cuidados prestados tem-se sedimentado
sendo transversal a todas as áreas do conhecimento que intervêm na saúde mental
e psiquiatria.
As doenças do humor, especialmente a depressão, revelam-se um problema grave,
não apenas devido à sua alta prevalência (Diário de Notícias, 2010 - dados
preliminares do Primeiro Estudo Epidemiológico Português apresentados em Março
de 2010), mas principalmente às suas características clínicas incapacitantes
(Gusmão, Xavier, Heitor, Bento, Caldas de Almeida, 2005). Por esta razão,
facilmente se encara a necessidade de investigar o impacto dessas doenças na
qualidade de vida relacionada com a saúde (QVRS) e consequentemente na
qualidade de vida geral (QDV) dos indivíduos.
Qualidade de vida e doenças do humor
No que respeita ao conhecimento sobre a QDV e doenças do humor, mais
concretamente a depressão, parece haver consenso quanto à evidência de pior QDV
de pessoas com doenças do humor quando comparadas com pessoas da população
geral/grupos de controlo. Um estudo recente que procurou comparar a QDV entre
sujeitos com depressão major, sujeitos utentes de serviços de cuidados de saúde
primários e sujeitos da população geral, revela que os primeiros apresentam
pior QDV em todos os domínios e faceta geral da QDV do WHOQOL-Bref (Gameiro,
Carona, Silva, & Canavarro, 2010).
Ainda com o objectivo de avaliar ao impacto da sintomatologia depressiva na QDV
dos indivíduos da população geral, Gameiro et al. (2008) concluíram que,
conforme aumentam os níveis de sintomas depressivos, pior se revela a QDV,
sendo o domínio relações sociais um dos três domínios que mais se mostraram
afectados.
Numa revisão da literatura efectuada por Michalak, Yatham, & Lam (2005) que
aborda a avaliação da QDV em sujeitos com doença bipolar, conclui-se que a QDV
é marcadamente prejudicada em sujeitos com doença bipolar mesmo quando são
considerados eutímicos.
Quando comparados sujeitos com doenças do humor e ansiedade, verifica-se que os
sujeitos com doenças do humor são os que apresentam pior QDV (Rapaport, Clary,
Fayyad, & Endicott, 2005).
Fleck et al. (2002) concluíram que ao associarem sintomas depressivos ao
funcionamento social e à QDV, o funcionamento social é pior nas pessoas com
sintomatologia depressiva do que nas pessoas sem essa sintomatologia.
Domínios e facetas da qualidade de vida
A QDV é um conceito muito amplo que envolve múltiplas dimensões. Tendo em conta
a perspectiva da Organização Mundial de Saúde e os instrumentos de medida
genéricos que propõe (WHOQOL-100 e WHOQOL-Bref), a QDV é avaliada atendendo a
vários domínios: domínio físico, psicológico, nível de independência, relações
sociais, ambiente e espiritualidade/religião/crenças pessoais. Considerando que
as doenças do humor têm repercussões em diferentes domínios da QDV e que cada
domínio é composto por várias facetas, torna-se também importante perceber como
variam essas facetas entre sujeitos com doenças do humor e sujeitos da
população geral. O domínio em análise neste artigo é o Domínio Relações Sociais
do Health Organization Quality of Life (WHOQOL-Bref) composto pelas facetas
Relações Pessoais, Actividade Sexual e Apoio Social. Inicialmente pretende-se
fazer uma abordagem à relação entre o apoio social, relações pessoais,
actividade sexual e a doença mental e, num segundo momento, apresentar-se-á a
metodologia, os resultados e sua discussão e as conclusões.
Apoio social, relações pessoais e doença mental
Diversas definições de apoio social têm sido descritas, contudo, na sua
maioria, realçam diferentes aspectos funcionais e estruturais (Stroebe &
Stroebe, 1995). Segundo Cobb (1976), o apoio social é definido como o conjunto
de informações que leva o sujeito a acreditar que é tratado, amado e estimado e
um membro de uma rede de mútuas obrigações. Na perspectiva deste autor, o apoio
social facilita o enfrentamento às crises e mudanças existentes na vida e ajuda
na adaptação. Parece haver relação entre o apoio social e os comportamentos que
promovem a saúde e as relações sociais podem também desempenhar um papel
fundamental para a auto-estima do sujeito (Stroebe & Stroebe, 1995). Ainda,
para os mesmos autores, um dos mais fortes recursos de coping externos à pessoa
é o apoio social. É também através do apoio social que as pessoas beneficiam no
que diz respeito à saúde física e saúde mental (Lavall, Olschowsky, &
Kantorski, L., 2009) e que reduzem sintomas psiquiátricos e hospitalizações
(Huang, Sousa, Tsai, & Hwang, 2008).
A análise de estudos com animais diz-nos que a simples presença e o contacto
físico afectivo com outro semelhante podem reduzir significativamente a
reactividade cardiovascular (Lynch, 1970 in Stroebe & Stroebe, 1995). O
Modelo dos Zeitgebers Sociais (Ehlers, Frank, & Krupfer, 1988) sugere que
acontecimentos de vida podem ter o poder de desencadear um estado depressivo
grave através das alterações dos ritmos biológicos, nomeadamente o sono, para
além do próprio significado do acontecimento. No entanto, a instabilidade e o
aparecimento de sintomas podem ser mediados e/ou influenciados por variáveis de
natureza psicossocial e psicobiológica, entre elas o apoio social.
Actividade sexual e doença mental
A literatura tem sido unânime relativamente ao impacto negativo da
sintomatologia depressiva na actividade sexual. Quando comparados indivíduos
(homens e mulheres) com depressão verifica-se que os mais deprimidos funcionam
pior em termos de actividade sexual que os não deprimidos e à medida que
aumenta a depressão diminui a funcionalidade sexual (Moeda, 2008).
Os resultados do estudo realizado por Kennedy, Dickens, Eisfeld, & Bagby
(1999) indicam altos índices de diminuição de interesse sexual e função sexual
em homens e mulheres durante um episódio depressivo major sem medicação
antidepressiva e cerca de metade das mulheres e um quarto dos homens deprimidos
não relataram qualquer actividade sexual durante o mês anterior à avaliação.
Segundo estudo realizado por Michael & O ́Keane (2000) a disfunção sexual
ocorre na maioria das pessoas deprimidas e tem um grande impacto na qualidade
de vida.
Objectivo
Este estudo pretende analisar o comportamento das facetas do Domínio Relações
Sociais do Health Organization Quality of Life (WHOQOL-Bref) entre sujeitos com
doenças do humor e sujeitos da população geral.
Metodologia
Para avaliar a QDV recorremos ao paradigma quantitativo de investigação. Este
estudo insere-se numa investigação mais alargada e trata-se de um estudo
comparativo entre pessoas com doença de humor e pessoas da população geral.
Como já foi referido no objectivo deste estudo, neste artigo será apenas
analisado o Domínio Relações Sociais da QDV, tendo em conta apenas os dados
extraídos da aplicação do questionário de avaliação da QDV.
Participantes
Participaram no estudo 39 sujeitos com doenças do humor que realizavam
tratamento em regime de consulta externa (tratamento em ambulatório), num
departamento de psiquiatria e saúde mental de um hospital da região norte e 39
sujeitos da população geral, sem doença mental diagnosticada. Ambos os grupos
pertencem à mesma área geográfica (região norte ' Portugal). Foram escolhidos
sujeitos da população geral com características semelhantes às dos
participantes com doenças do humor, uma vez que estas variáveis, caso não
controladas, poderiam, por si só, explicar as diferenças entre os dois grupos.
Instrumentos
Foi aplicado a todos os sujeitos a versão breve do World Health Organization
Quality of Life (WHOQOL-Bref ), versão portuguesa de Portugal (Canavarro et
al., 2006; Rijo et al., 2006; Vaz Serra et al., 2006). Trata-se de um
questionário constituído por 26 itens e que contempla quatro domínios (Físico,
Psicológico, Relações Sociais e Ambiente) e uma Faceta de QDV Geral. A
avaliação sócio-demográfica foi realizada com um Questionário de Dados Sócio-
demográficos e a Classe Socioeconómica foi avaliada pelo Índice de Graffar. O
protocolo inclui ainda um Questionário de Dados Clínicos no caso dos sujeitos
com doenças do humor.
Procedimentos
Todos os sujeitos assinaram consentimento informado no qual eram explicados os
objectivos do estudo, o papel da investigadora e o cumprimento da
confidencialidade. De seguida foi-lhes pedido que preenchessem os
questionários, mantendo-se a investigadora disponível para o esclarecimento de
dúvidas eventuais (assistido pela Investigadora). Em alguns casos, quando as
competências de leitura eram limitadas, o questionário foi administrado pela
investigadora, seguindo as recomendações contempladas nos procedimentos de
administração do WHOQOL-Bref. Os dados foram recolhidos nos domicílios dos
sujeitos.
Análises estatísticas
O tratamento estatístico dos dados foi feito com recurso ao programa IBM SPSS
Statistics, versão 19.0. Realizou-se uma análise estatística descritiva e
inferencial dos dados com nível de significância de 0,05. Foi aplicado o teste
t (teste t simultâneo para mais de uma média) para analisar a importância das
facetas no Domínio Relações Sociais entre os grupos com e sem doença.
Resultados
Quando analisamos as características sócio-demográficas verifica-se que em
ambos os grupos predomina o género feminino, o estado civil casado/união de
facto, a maioria possui entre um a quatro anos de escolaridade e a média de
idades situa-se nos 52 anos. No que diz respeito à classe socioeconómica,
medida pelo Índice de Graffar, a classe predominante no grupo de sujeitos com
doenças do humor é a classe social Média-Baixa (48,7%) e no grupo dos sujeitos
da população geral a classe social Média (64,1%).
Observando a Tabela 1 verificamos que os sujeitos com doenças do humor são
aqueles que apresentam pior índice de QDV no Domínio Relações Sociais do
WHOQOL-Bref, quando comparados com os sujeitos da população geral e a diferença
encontrada é estatisticamente significativa.
TABELA 1 ' Comparação dos dois grupos no que respeita à QDV no Domínio Relações
Sociais
As respostas dos sujeitos com doenças do humor e sujeitos da população geral às
questões i) Até que ponto está satisfeito(a) com as suas relações pessoais?
(faceta relações pessoais), ii) Até que ponto está satisfeito(a) com a sua vida
sexual? (faceta actividade sexual) e iii) Até que ponto está satisfeito(a) com
o apoio que recebe dos seus amigos? (faceta apoio social) estão apresentadas na
Tabela 2. Cada resposta é classificada numa escala de Likert, onde "1"
significa Muito Insatisfeito (M Ins.), "2" Insatisfeito (Ins.), "3" Nem
satisfeito, Nem insatisfeito (N sat. N ins.), "4" Satisfeito (Sat.) e "5" (M
Sat.).
TABELA_2 ' Distribuição das respostas dadas pelos sujeitos com doença e sem
doença relativamente às facetas do Domínio Relações Sociais
A diferença de -,79 (Tabela3) observada nos dois grupos quanto à faceta
relações pessoais é estatisticamente significativa. A comparação entre as
médias mostra que os sujeitos com doenças do humor respondem mais negativamente
à questão "até que ponto está satisfeito(a) com as suas relações pessoais?" do
que os sujeitos da população geral. Observando a tabela de distribuição de
frequências (Tabela 2) verifica-se que uma menor percentagem de sujeitos com
doenças do humor está satisfeita com as relações pessoais quando comparada com
a percentagem de sujeitos da população geral.
TABELA 3 ' Comparação dos dois grupos no que respeita às Facetas do Domínio
Relações Sociais
No que respeita à questão "até que ponto está satisfeito(a) com a sua
actividade sexual?" A diferença de -,90 (Tabela 3) observada nos dois grupos é
também estatisticamente significativa. De novo, comparando as médias verifica-
se que os sujeitos com doenças do humor respondem mais negativamente a esta
questão do que os sujeitos da população geral (Tabela_2
).
Discussão
O fenómeno QDV aplicado a uma população com doenças do humor revela que estes
sujeitos sentem dificuldades no Domínio Relações Sociais. Ao avaliar as
diferenças entre as facetas desse domínio: relações pessoais, actividade sexual
e apoio social entre os sujeitos com doenças do humor e os sujeitos da
população geral, verifica-se que essas diferenças se reflectem essencialmente
no que respeita às facetas actividade sexual e relações pessoais sendo essas
diferenças significativas. Embora a diferença da faceta apoio social não seja
significativa, ela revela-se com uma média mais baixa nos sujeitos com doença
do humor.
Ao analisarmos estes resultados verificamos que o Domínio Relações Sociais
merece ser alvo de atenção tendo em conta as suas importantes repercussões na
saúde das pessoas. Estes resultados são apoiados pela evidência científica que
confirma a existência de um impacto negativo da sintomatologia depressiva nas
facetas em estudo, nomeadamente na actividade sexual (Kennedy et al., 1999;
Michael & O ́Keane, 2000; Moeda, 2008). Apesar de sentir menos a diferença
no apoio social quando comparada com a faceta actividade sexual e a faceta
relações pessoais, este resultado não deixa de ser importante porque revelou
ser, ainda assim, uma faceta onde os sujeitos com doenças do humor sentiam
menor satisfação. Possibilita, desta forma, a percepção do impacto negativo que
a doença do humor pode exercer no Domínio Relações Sociais tendo em conta a
comparação entre os sujeitos com doença e os sujeitos da população geral. De
facto, o apoio social e as relações pessoais têm sido merecedores de atenção da
comunidade científica, porque os achados sugerem a sua forte influência na
saúde das pessoas em termos preventivos, promovendo a saúde e a adaptação
(Stroebe & Stroebe, 1995), na melhoria da sintomatologia depressiva e
redução do número de internamentos (Huang et al., 2008) e na utilização de
menos serviços dentro da especialidade médica de psiquiatria por pessoas com
depressão, perturbação de ansiedade generalizada, perturbação de pânico e
alcoolismo (Maulik, Eaton, Catherine, & Bradshaw, 2009).
Conclusões
Os resultados deste estudo permitem a reflexão sobre um conjunto de implicações
das doenças do humor no Domínio Relações Sociais. No que respeita à variável
actividade sexual corrobora-se a opinião de Michael et al. (2000) que afirma a
necessidade dos profissionais de saúde investigarem, na relação que estabelecem
com os seus doentes, aspectos relacionados com a actividade e funcionamento
sexual. A evidência científica sugere que pessoas com doença mental revelam que
o apoio social reduz sintomas psiquiátricos e o número de hospitalizações e que
a actividade sexual está comprometida em pessoas com sintomatologia depressiva.
Estes factos levam-nos a pensar sobre algumas medidas de intervenção clínica
incluídas na prevenção, avaliação e acompanhamento/tratamento das pessoas com
doença do humor. Apesar da vertente psicofarmacológica ser fundamental no
acompanhamento
clínico das pessoas com doenças do humor, parece importante que se considerem
fundamentais as variáveis relações pessoais, actividade sexual e apoio social
em todos os níveis de intervenção, visto serem fundamentais para a qualidade de
vida das pessoas. Neste sentido, como refere Gameiro et al. (2010) as medidas
de QDV na avaliação dos cuidados prestados poderão e deverão servir para
reduzir a dissonância entre as estratégias e objectivos de intervenção e as
necessidades e recursos dos indivíduos.
Por outro lado, o conhecimento que temos destas doenças e o contacto directo
que tivemos com os sujeitos nos seus domicílios confirmam a necessidade de uma
análise profunda e possivelmente uma atitude mais abrangente no que respeita ao
acompanhamento clínico destas pessoas.
Reafirma-se Fontes (2007) que nos diz que, com as alterações previstas em
termos de assistência em saúde mental e psiquiatria, se reconhece a importância
do apoio social, das relações sociais e redes sociais no que diz respeito à
reconstrução de um dia a dia muitas vezes perturbado pelo sofrimento e também
como uma variável que interfere positivamente no tratamento, a partir de outros
recursos oferecidos por outros actores sociais. De facto, como refere Freyre
(2006) para se trabalhar em profissões de saúde é necessário ter um olhar mais
amplo, desdobrado, um olhar que alcance as relações com as famílias, trabalho,
amigos, aspirações e esperanças, e valorizar os aspectos que não são
observáveis nas análises e nos raios X, pois estes "não acusam opressões, não
acusam marginalização, não acusam desajustamento social, não acusam abandono"
(p.30).