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EuPTCVHe1647-21602015000100009

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variedadeEu
ano2015
fonteScielo

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O cuidador familiar no olhar da pessoa com depressão

Introdução De acordo com algumas publicações, (Organización Mundial de la Salud [OMS], 2013; World Health Organization [WHO], 2004), as doenças mentais representam 13% do total de todas as doenças no mundo, sendo previsível que alcancem os 15% em 2020; na Europa, representam cerca de 26,6% (Xavier, Baptista, Mendes, Magalhães e Almeida, 2013) e, em Portugal, 22,9% da população teve uma perturbação psiquiátrica ao longo do ano (Programa Nacional Saúde Mental [PNSM] e Direção de Serviços Informação e Análise [DSIA], 2013; Observatório Português dos Sistemas de Saúde [OPSS], 2014), representando o segundo valor de prevalência anual mais elevado de entre um conjunto de 10 países europeus (Faculdade de Ciências Médicas/Universidade Nova de Lisboa [FCM/UNL], 2013).

Olhando os dados disponíveis nos diversos documentos, é possível constatar que, de entre as perturbações psiquiátricas, a depressão representa 4,3% da carga mundial de morbilidade e encontra-se entre as principais causas mundiais de incapacidade, representando 11% do total mundial de anos vividos nessa condição (OMS, 2013).

Em Portugal, as perturbações do humor ocupam o segundo lugar de prevalência anual mais elevada com 7,9%, e, dentro destas, a perturbação depressiva major lidera com 6,8%, sendo a terceira mais elevada no universo de 10 países europeus (FCM/UNL, 2013; Miguel e , 2010; OPSS, 2014; PNSM e DSIA, 2013).

Atualmente classificada como uma perturbação do humor, pela American Psychiatric Association (APA, 2002) e pela WHO (2010), a depressão é suficientemente heterogénea para ser dividida em subtipos, de acordo com a intensidade, número, tempo e especificidade dos sintomas (Hegadoren, Norris, Lasiuk, Silva, & Chivers-Wilson, 2009), tornando-se assim multifacetada e abrangente. Fenómeno de caráter universal, a depressão pode afetar indivíduos de ambos os sexos, de qualquer idade, classe social, nível de instrução, nível cultural, religião e ideologia (Silva et al.,2012), afetando não a pessoa doente mas todo o seu contexto relacional, originando alterações na dinâmica pessoal, familiar e social (Marques, 2009).

Com a publicação da Lei de Saúde Mental (Lei 36/98 de 24 de julho), verificou- se uma alteração do modelo assistencial de referência (PNSM e DSIA, 2013), priorizando a promoção da prestação de cuidados de saúde mental a nível da comunidade, de forma a manter o doente no seu meio habitual e a facilitar a sua reabilitação e inserção social, de modo a que os cuidados sejam prestados no meio menos restrito possível. Assim sendo, o internamento é considerado um recurso de última linha e como tal, é no contexto familiar e social que a pessoa vive a sua depressão.

Consequência desta realidade, surgem mudanças na dinâmica familiar que obrigam a redefinir funções, papeis e tarefas entre os seus membros, e os familiares são confrontados com a necessidade de proporcionar apoio físico e psicológico, suportando juntamente com o doente, o impacto da depressão (Silva, Hoga & Stefanelli, 2004). De modo quase natural, o papel de cuidador é assumido pelo familiar, que muitas vezes se confronta com uma situação desconhecida e para a qual não está preparado. Esse papel não é passivo e tem consequências importantes na vida da família, nomeadamente nas relações que se estabelecem entre o familiar cuidador e a pessoa que vive a depressão (Ballester, 2006; Marshall & Harper-Jaques, 2008; Silva, Hoga, & Stefanelli, 2004).

Com a finalidade de compreender um pouco melhor o que anteriormente dissemos, formulámos a questão: - Como é que a pessoa com depressão o cuidador familiar? Como objetivos da pesquisa, pretendemos caraterizar a depressão na perspetiva de quem a vive; Caraterizar o papel de cuidador familiar na perspetiva do doente e descrever as reações do doente na relação com os cuidadores familiares.

Metodologia O desenho de investigação é de natureza qualitativa, a qual é adequada para compreender os detalhes de fenómenos como sentimentos, processos de pensamento e emoções difíceis de mensurar (Strauss & Corbin, 2002). De acordo com o desenho de investigação utilizámos a Grounded Theory como método estruturante da pesquisa, na medida em que, a partir dos dados recolhidos em campo, propõe gerar conhecimento, aumentar a compreensão da realidade estudada e proporcionar um guia significativo para a ação (Strauss & Corbin, 2002), não privilegiando a análise dos dados em função de teorias pré-existentes (Fortin, 1999).

Tendo por finalidade a teorização do não conhecido, ou a teorização do conhecido mas que requere novas abordagens, a Grounded Theory carateriza-se por três elementos básicos, nomeadamente, os conceitos, as categorias e as preposições (Lopes, 2003). Através da análise dos dados são descobertas as categorias e as suas caraterísticas, bem como a relação destas com as subcategorias e com a categoria central (Lopes, 2003, p. 68), recorrendo para tal ao processo de codificação. O processo de codificação é de três tipos, codificação aberta, axial e seletiva. Na codificação aberta, os conceitos são identificados nos dados através de um processo analítico, para posteriormente serem agrupados em categorias (Lopes, 2003). Na codificação axial, as categorias, de acordo com as suas propriedades e dimensões, relacionam-se entre si e com as suas subcategorias através de afirmações (preposições), que demonstram as conexões entre elas e a forma como estão relacionadas (Lopes, 2003). Por fim, a codificação seletiva permite agregar e refinar a teoria gerada. Este processo ocorre à volta da categoria central, a qual representa o tema principal de toda a investigação (Strauss & Corbin, 2002).

O trabalho de campo decorreu durante os meses de fevereiro e julho de 2009, em 2 polos das consultas externas do departamento de psiquiatria e saúde mental do Hospital do Espírito Santo E.P.E. de Évora, localizados em duas cidades distintas do mesmo distrito.

A seleção dos participantes foi feita por amostragem não probabilística intencional obedecendo aos seguintes critérios: ser adulto e/ou idoso com diagnóstico clinico de depressão; residir com familiares; ter capacidade cognitiva que permitisse a recolha coerente de informação e aderir à participação voluntária no estudo.

Assim, aquando da ida à consulta, e após verificação do diagnóstico médico (critério de seleção), foram abordados e convidados a participar no estudo treze doentes, dos quais, somente oito (um homem e sete mulheres) acederam a participar. Foi revelado a cada um a finalidade e objetivos da pesquisa, foram respeitados todos os procedimentos éticos que a mesma exigia e os participantes preencheram o consentimento informado.

 A recolha de informação foi feita através de entrevistas narrativas semiestruturadas, as quais foram gravadas em formato áudio com recurso ao gravador e transcritas integralmente. Por opção dos participantes, todas as entrevistas ocorreram em contexto domiciliário em dia e hora por eles definidos, tendo em conta as suas disponibilidades.

Salientamos o facto de que os resultados apresentados se referem unicamente à codificação aberta e axial.

Resultados Após a codificação aberta, de acordo com os procedimentos da Grounded Theory e com recurso ao programa informático NVivo 8, chegamos à codificação axial a qual permitiu identificar duas categorias, cada uma das quais com duas subcategorias como expresso no Quadro_1.

A categoria Vivência da Depressão é caraterizada pela narrativa de todo o processo de adoecer e pela relação que se estabelece entre a pessoa doente e a depressão.

Narrativa do processo de adoecer.

Para o doente, a depressão é considerada uma doença multifacetada que domina todo o quotidiano. O seu início é claramente identificado em determinado momento do seu percurso de vida, embora seja descrita como algo que se impõe de forma progressiva e não repentina. O tempo de doença varia entre os 4 e 20 anos, sendo que a maioria dos participantes vive uma situação de depressão mais de 15 anos, intervalados por períodos de crise graves, algumas das quais com necessidade de internamento.

Na origem da depressão estão acontecimentos de vida traumáticos, relacionados maioritariamente com perdas de familiares por morte e consequente luto mal vivido. Os conflitos familiares por divórcio, partilha de bens, mau relacionamento com os filhos ou outros familiares de primeira linha, são aspetos também referidos, bem como os conflitos laborais e a ausência de trabalho remunerado.

A depressão é referida como "uma doença da cabeça" (Dt 2, Dt 6), que não se mas sente-se. É inconstante e imprevisível, e muda de tal modo a pessoa, que por vezes ela deixa de saber quem é. As suas manifestações são variadíssimas mas convergem em torno das alterações somáticas, de comportamento e de gestão das atividades de vida. Cefaleias, anorexia, perturbações do sono, tristeza, choro fácil, irritabilidade, agressividade, medos, anedonia, adinamia, incapacidade para gerir o quotidiano e perda do sentido de viver, caraterizam as narrativas dos participantes revelando o sofrimento de viver uma depressão.

A depressão e eu.

Entre o doente e a depressão estabelece-se uma relação profundamente intimista e fechada, o que justifica o comportamento solitário da pessoa deprimida e a recusa em partilhar com os outros os seus sentimentos e emoções. A situação de saúde é vivida a dois (depressão e doente), impedindo a entrada de quem quer ajudar, "porque compreende a depressão, quem a teve"(Dt 4).

Durante a vivência desta relação, o doente desenvolve estratégias de enfrentamento, através da autoaprendizagem com recurso a enciclopédias ou informação disponível na internet, procurando conhecer os sintomas e o prognóstico. Também este processo de busca de conhecimento é solitário, não procurando numa fase inicial, a ajuda dos técnicos de saúde. Quando sente que perdeu o controle total sobre a sua situação de saúde, fase em que pode surgir a tentativa de suicídio, permite a intervenção da família no encaminhamento, ou procura ajuda especializada por si próprio - "bati no fundo de mim mesmo, tive que pedir socorro a quem podia e sabia ajudar" (Dt 5).

Uma vez medicado, é frequente o doente fazer uma gestão inadequada da prescrição, alterando as dosagens devido à ausência de resultados imediatos na sua situação de saúde, ou devido aos efeitos secundários sentidos. A medicação indutora do sono é muito apreciada gerando habitualmente situações de dependência ' "sem aqueles é que eu não posso passar. Se os deixo..., nem fecho os olhos" (Dt 1); "os comprimidos para dormir vão ser para sempre, não posso passar sem eles" (Dt 8).

À medida que a relação entre o doente e a depressão se torna mais aberta e permeável aos outros, os sentimentos surgem, revelando desalento e tristeza pela situação a que chegou, mas também confiança e esperança, manifestando desejo em melhorar e acreditando que é capaz de retomar a sua atividade diária.

A categoria Experiência de Ser Cuidado pelo Familiar é caraterizada pela leitura que o doente faz do comportamento do familiar, procurando interpretá-lo na maioria das vezes de forma negativa, bem como da descrição que faz da relação que se estabelece entre ambos.

Ler o familiar que cuida.

Ao ser cuidado pelo familiar, o doente interpreta e atribui um significado à sua forma de agir. Faz leituras do seu comportamento e posiciona-se de forma crítica avaliando o seu desempenho. De acordo com a sua conceção de cuidado, sente que o familiar não consegue desempenhar o papel de cuidador. Para fundamentar o seu sentimento de não se sentir cuidado, acusa o familiar de não compreender a sua inatividade e a sua tristeza ' "não me deixa estar deitada, não percebe que não sou capaz de nada?" (Dt 4); "não sou senhora de dormir até ao meio dia" (Dt 5). Na leitura do doente, o familiar faz chantagem emocional obrigando-o a realizar atividades quotidianas, sobre a ameaça de abandonar o lar ou levar os filhos para casa de familiares ' "disse-me que a próxima vez que chegar a casa e não houver almoço, vai para casa da mãe dele e leva os miúdos. É pra me assustar" (Dt 3). O diálogo é escasso, e, quando existe, termina frequentemente em discussões, nas quais o doente sente que é culpabilizado pela sua situação clinica e pela perturbação do ambiente familiar. A indiferença, a incapacidade para escutar e a falta de paciência são referidos pelo doente como habituais no comportamento do familiar, bem como o controle excessivo sobre algumas das atividades diárias do doente, como é o caso da higiene, alimentação e repouso ' "obriga-me a comer, que às vezes até tenho vómitos" (Dt 1); " a semana passada ficou na casa de banho, para ver se eu me lavava" (Dt 3). O doente reconhece que o familiar faz um esforço para cuidar, mas considera que todas as tentativas são fracassadas ' "eu acho que ele até tenta ajudar, mas depois atira-me isso à cara" (Dt 7); "às vezes arruma a cozinha... mas vê-se que está a fazer frete" (Dt 6).

Eu na relação com o familiar que cuida.

A relação entre o doente e o familiar cuidador é pautada por distanciamento e falta de confiança uma vez que o doente não reconhece capacidade ao familiar para ajudar. Ignora as suas intervenções e os seus conselhos, considerando que o seu comportamento é autoritário e agrava o seu estado de saúde ' "não sei quem é que ele pensa que é para me dar ordens. Qualquer dia ainda faz com que eu perca a cabeça" (Dt 6). O doente sente-se perdido e sem saber o que fazer nem em quem confiar ' "os de casa são os piores, em vez de ajudar fazem mal" (Dt 7). O relacionamento entre eles degrada-se e o doente isola-se evitando o diálogo, sendo o silêncio a estratégia de comunicação mais utilizada. O doente não compreende o familiar nem sabe o que ele pensa sobre a sua situação de saúde. Assume uma posição defensiva e fecha-se sobre si mesmo, incapaz de confiar no familiar, que tenta desenvolver estratégias (as que consegue) para cuidar.

Discussão Conhecida desde tempos remotos, embora com denominações diferentes, a depressão, como hoje é designada, tem estado sempre ligada à condição humana e à sua história, exercendo um impacto negativo na vida do sujeito, favorecendo o relacionamento familiar problemático, o comprometimento social e a perda de autoconfiança e autoestima (Parker, Paterson, Fletcher, Hyett & Blanch, 2012).

Confirmando os dados apresentados que estruturam a vivência da depressão, Alonso-Fernandez (2010), afirma que a depressão não é uma doença súbita, mas surge de forma insidiosa e progressiva, invadindo o quotidiano do individuo e apropriando-se da sua energia vital de tal modo que o início da doença é vivido de forma solitária, ensimesmada, sem que a pessoa consiga descrever, de forma clara, o sofrimento ocasionado pelas primeiras manifestações sintomáticas.

Refém de uma patologia que ainda desconhece, a pessoa pode viver meses ou anos num estado de tristeza e adinamia oscilante que vai atribuindo aos contextos de vida, esperando que passe com o tempo, camuflando assim a procura de ajuda técnica e/ou especializada, enquanto contamina toda a sua vida de relação familiar, social e laboral.

Algumas pessoas com depressão sentem que podem lidar sozinhas com o problema ou acreditam que na realidade não precisam de ajuda (Clement et al., 2014). Quando a doença surge, é no seio da família que a alteração do comportamento da pessoa com depressão se faz sentir de modo mais intenso, pelo abandono das tarefas e papéis que tinha a seu cargo, pela inércia de atitude, e principalmente, pela marcada transformação das relações que acontecem no ambiente intrafamiliar (Silva, Hoga & Stefanelli, 2004; Marshall & Harper-Jaques, 2008).De toda esta problemática, emerge o papel de cuidador familiar procurando dar resposta às necessidades da pessoa com depressão. No entanto, para Feitosa, Bohry, & Machado (2011), a maior parte dos familiares não tem conhecimento suficiente para fornecer assistência necessária ao doente, causando sofrimento em ambas as partes, o que está de acordo com os dados referidos na experiência de ser cuidado pelo familiar. Tendo em conta o caráter insidioso da depressão (Alonso-Fernandez, 2010), coadjuvar no processo de cuidados, implica que o familiar se torne cuidador através de um processo que se vai adotando ao longo da vida, muitas vezes de forma inconsciente, progressiva, resultante na maioria das vezes, de uma adaptação à situação familiar (Parker, Paterson, Fletcher, Hyett & Blanch, 2012).

Para Borba et al. (2011), viver com uma pessoa com depressão representa um verdadeiro desafio, que envolve sentimentos inerentes à vivência de um acontecimento não esperado, bem como o confronto com os próprios preconceitos relacionados com a doença e as suas exigências. A transformação que ocorre na pessoa que vive uma situação de depressão impede-a de considerar os que a rodeiam, assumindo uma postura de predominância egocêntrica, não porque queira, mas porque está doente e é incapaz de agir de outro modo, Alonso-Fernandez (2010). Assim sendo, a forma como ela o cuidador familiar é profundamente influenciada por essa postura, impossibilitando a compreensão do comportamento do familiar e a consequente rejeição das suas atitudes de índole cuidativas.

Deste modo, e uma vez que a depressão é na maioria dos casos vivida em contexto domiciliário, tal circunstância poderá constituir uma sobrecarga que compromete a estabilidade e vida familiar, bem como significar um fator não abonatório da recuperação do doente

Conclusão Quando uma pessoa com depressão na família tudo se altera e os familiares mudam, construindo o papel de cuidador na interação quotidiana. As estratégias de cuidados desenvolvem-se de modo reativo em função do comportamento do doente, adquirindo contornos particulares de conteúdo nem sempre adequado à situação de saúde vivida. A relação entre o doente e a depressão é muito intimista e o familiar não faz parte ela. O doente não se sente cuidado, nem reconhece o familiar como parceiro ativo no seu processo de recuperação.

Implicações para a Prática Clínica Da análise dos dados apresentados, é possível verificar que na relação entre o familiar que cuida e a pessoa com depressão, existe um fosso relacional, marcado pelo não reconhecimento do familiar pelo doente, como elemento importante no seu processo de recuperação. Tendo em conta a função de ajuda e de educação, inerente à prática clinica de enfermagem, o enfermeiro tem um papel fundamental como mediador, não no conflito, mas também no ensino de estratégias de comunicação e no ensino do que é a depressão, as suas manifestações, tratamento e prognóstico. Se o enfermeiro conhecer as dificuldades do doente e os seus sentimentos face ao familiar cuidador, poderá intervir e planear conjuntamente com o doente e o seu familiar, intervenções psicoeducacionais, que contribuam para o bem-estar da família, de modo a que o lar seja um espaço terapêutico.


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