Ritmos sociais e volume de atividade social de pessoas em programa de
substituição com metadona
Introdução
A cronobiologia (do grego, crono = tempo + bio = vida + logo = ciência)
salienta o estudo do quando (ritmos), sendo a disciplina que estuda os ritmos
biológicos, a sua origem, os processos de sincronização com os ritmos
ambientais, as alterações da estrutura temporal dos organismos e a aplicação
destes conhecimentos na promoção da saúde e bem-estar.
Os ritmos biológicos são funções do nosso organismo que variam no tempo de
forma cíclica. A unidade do ritmo que se repete chama-se "ciclo" (Silva, 2000).
Existem diversos ritmos biológicos: os ritmos ultradianos, cuja frequência é
superior a um ciclo por dia (ex., ritmo cardíaco), ritmos infradianos, quando a
sua frequência é inferior a um ciclo por dia (ex., ritmo menstrual) e ritmos
circadianos, cuja frequência é de cerca de 1 dia (ex., ritmo sono-vigília)
(Silva et al., 1996; Silva, 2000). Para os ritmos em que não se comprovou o
caráter endógeno fala-se em ritmos ultradiais, infradiais e circadiais (Silva
et al., 1996).
Os ritmos circadianos no ser humano, para além de serem alinhados ou
sincronizados por zeitgebers (do alemão zeit = tempo, geber = dar) de natureza
física (ex., ciclo claro/escuro), também são sincronizados por zeitgebers de
natureza social (ex., horários de trabalho, atividades de lazer, rotinas
pessoais e sociais).
O comportamento humano diário é também influenciado pelas exigências
quotidianas da vida social. O padrão de rotinas sociais diário para a maior
parte das pessoas desenrola-se segundo uma sequência específica, ou seja, sono
(durante a noite); trabalho (compreendido entre a manhã e a tarde) e; tempo
livre (desde o fim do trabalho até à hora de um novo período de descanso). A
forma como as atividades estão estruturadas na sociedade também reforça esta
sequência (Silva, Rodrigues, Klein, & Macedo, 2000). A alteração do
zeitgebers expõe a pessoa a grandes possibilidades de adoecer em várias
dimensões apenas porque desalinha os ritmos biológicos (ex., ritmo sono/
vigília, alimentação, ritmo cardíaco, ritmos menstrual, entre outros).
A cronobiologia provoca, desta forma, reflexão sobre a organização temporal da
sociedade e traz para o mundo académico questões ligadas à qualidade de vida,
seja no sentido estrito do mundo do trabalho, seja no sentido amplo do
enriquecimento dos conceitos de qualidade do ambiente (Rotenberg, Marques,
& Menna-Barreto, 1997).
Diversas opiniões sugerem que pessoas dependentes de substâncias psicoativas
ilícitas têm um estilo de vida próprio, isto é, ritmos próprios que não se
sincronizam com os ritmos da sociedade, nem com os ritmos biológicos.
Frequentemente o mundo é dividido em duas partes distintas: em "Nós" '
"endogrupo" e "Eles" ' "exogrupo" (Neto, 1998). O mesmo autor acrescenta que "O
mero facto de categorizar as pessoas em dois grupos, um ao qual se pertence
(endogrupo) e o outro a que não se pertence (exogrupo) tem influência sobre o
comportamento e a perceção do indivíduo" (p. 543).
Frequentemente, chega-nos informação sobre pessoas que usam no seu quotidiano
substâncias psicoativas ilícitas, que nos induz a pensar que vivem à margem das
normas sociais instituídas, sem horários determinados para as atividades
diárias, sem interesses (interesses da sociedade ou aquilo que a sociedade
espera do cidadão), às quais são também atribuídos os furtos na cidade, a
maioria das perturbações da ordem pública e até a disseminação de algumas
doenças. Importa referir que, como afirma Cabral (1998), "Quer se queira
quer não a palavra "droga" tem ligada a si uma carga "moral" no sentido mais
geral deste último conceito, isto é, referente a hábitos de vida relacionados
com condutas consideradas correctas e incorrectas" (p. 4).
Apesar de não se conhecer investigação sobre os ritmos sociais dos
toxicodependentes, parece haver um elevado grau de concordância entre a opinião
pública e a de profissionais de saúde que trabalham de perto com
toxicodependentes, no que respeita à dessincronização do estilo de vida desse
grupo ' "exogrupo".
Tendo por base a apreciação dos ritmos sociais do toxicodependente e a
literatura que sugere que este tem uma forma de se relacionar com o tempo muito
própria e exclusiva, alterando o bem-estar físico, psicológico e social,
pretende-se, com este estudo, identificar os ritmos sociais de sujeitos que
consomem substâncias psicoativas ilícitas integrados num programa de
substituição com metadona.
Metodologia
Participantes:participaram no estudo 47 sujeitos toxicodependentes integrados
no programa de substituição com metadona de um centro de atendimento a
toxicodependentes da zona norte de Portugal. A seleção dos sujeitos foi
efetuada de forma aleatória de entre o total de utentes inseridos nesse
programa terapêutico. Foram tidos em consideração todos os procedimentos éticos
de acordo com os padrões estabelecidos na Declaração de Helsínquia.
Instrumentos: O Instrumento utilizado para a identificação dos ritmos sociais
foi a Métrica de Ritmos Sociais desenvolvida por Monk, Flaherty, Frank,
Hoskinson, & Krupfer (1990). no âmbito de uma investigação sobre a possível
ação de alteração dos zeitgeberssociais na etiologia da depressão e traduzida e
adaptada à população portuguesa por Silva e Silvério (1997). Este instrumento
foi preenchido pelos sujeitos durante duas semanas (14 dias consecutivos). Para
caracterização da amostra foi elaborado um questionário de dados
sociodemográficos e clínicos. Para a caracterização socioeconómica foi aplicado
o Índice de Graffar do qual resultam cinco níveis de classes sociais: baixa;
média/baixa; média; média/alta e alta.
Análise dos dados: Na análise estatística foram determinadas médias, medianas e
desvios-padrão; efetuadas correlações utilizando o coeficiente de correlação de
Pearson e, ainda, realizadas estatísticas não paramétricas com os testes de
Kruskal-Wallis e Mann-Whitney. Para calcular o índice de ritmicidade social foi
aplicado o algoritmo desenvolvido pelos autores (Monk et al., 1990, Monk,
Kupfer, Frank, & Ritenour, 1991) na versão informática de cotação
automática do Laboratório de Psicologia da Universidade do Minho. Em termos de
cotação, os dados relativos a cada semana foram analisados como uma unidade, de
modo a chegar-se a um score que pode variar entre 0 (mínimo) e 7 (máximo). A um
maior valor na cotação corresponde uma maior regularidade dos ritmos sociais.
Para a medição da quantidade ou volume das atividades sociais, foi desenvolvido
o Índice do Nível de Atividade Social (INA), independentemente da regularidade
com que foram executadas. Este índice tem sempre uma referência temporal
semanal variando entre 0 e 119.O tratamento estatístico para o teste das
hipóteses foi efetuado com o programa Statistical Package for Social Sciences '
IBM SPSS versão 19.0. Em todas as análises foi considerado estatisticamente
significativo um valor de p <.05.
Resultados
A ritmicidade social e o volume de atividade social foram avaliados em 47
sujeitos integrados num programa de substituição com metadona, os quais
preencheram durante 14 dias consecutivos (2 semanas) a métrica dos ritmos
sociais (Tabela_1).
Verificámos que os indivíduos da nossa amostra revelam regularidade dos ritmos
sociais (M= 4.16; SD= 0.99), embora apresentem muito baixo nível de atividade
social (M= 38.2; SD= 12.2) (Tabela_2).
A análise de Kruskal-Wallis revelou que os solteiros, casados e separados/
divorciados só se distinguem entre si relativamente ao nível médio de atividade
social (c2=12.00, p=.002), sendo os sujeitos casados ou a viverem em união de
facto que apresentam valores mais baixos (Tabela_3).
Relativamente à comparação dos sujeitos empregados e desempregados com o INA e
o MRS, pelos postos médios, verificou-se que os desempregados possuíam maior
nível de atividade social (MR= 26.85) e maior ritmicidade social (MR= 25.42),
apresentando um significado estatístico residual no que diz respeito ao INA (U=
183.5, p= .077) . Pela análise de Mann-Whitney, e pelos postos médios,
verificámos que os sujeitos que têm filhos possuíam menor INA (MR= 19.74) e
menor MRS (MR= 21.76), encontrando-se também um significado estatístico
marginal para o INA (U = 185, p =.079).
Discussão
Pela pesquisa realizada, deteta-se que a cronobiologia não tem sido alvo de
análise no que diz respeito aos comportamentos sociais das pessoas que consomem
substâncias psicoativas ilícitas. Neste sentido, os resultados deste estudo são
difíceis de comparar devido à inexistência de investigação do fenómeno em
estudo. Assim, a discussão destes resultados baseia-se, essencialmente, na
experiência que os investigadores possuem com este grupo clínico.
Neste estudo, os sujeitos que têm uma ocupação, comparados com os que não têm,
possuem valores de INA mais baixos, provavelmente pela indisponibilidade de
tempo para se envolverem na realização de atividades sociais. Por outro lado, a
ritmicidade social dos sujeitos que têm uma ocupação é mais baixa do que a dos
desempregados, talvez porque os horários de trabalho não são cumpridos
rigorosamente, o que altera as horas do diário das atividades medidas pela MRS.
Também, a experiência que possuímos com pessoas toxicodependentes, diz-nos que,
frequentemente, não se vinculam o suficiente à atividade profissional e que o
absentismo é frequente. Por outro lado, os dados confirmam maiores valores de
INA e de MRS para os desempregados. Arriscamos afirmar que, frequentemente, se
observa que os toxicodependentes dependem de outrem (normalmente da família ou
de instituições que lhes oferecem abrigo) durante muito tempo e até muito
tarde. Este facto poderá ajudar a interpretar este resultado na medida em que
os horários destes sujeitos estão dependentes, a maior parte das vezes, do
agregado familiar ou das instituições que os recebem. O volume de atividades
sociais é mais elevado também nos sujeitos desempregados, provavelmente pela
disponibilidade de tempo que lhe permite aumentar a interação social.
Os dados sugerem, ainda, que os sujeitos que têm filhos apresentam um valor de
INA mais baixo do que os que não têm filhos, provavelmente pela dificuldade que
ainda mantêm de socialização e de integração social.
Conclusão
Os dados apontam para que os sujeitos da nossa amostra estejam sincronizados
com os horários que a sociedade estruturou para a vida diária e apresentem
relações sociais pobres em termos de quantidade, isto é, revelam regularidade
dos ritmos sociais (MRS) embora apresentem muito baixo nível de atividade
social (INA).
Desta forma, constatamos que, no que diz respeito à ritmicidade social,
atendendo ao indicador de índice de atividade social (INA), a nossa amostra
está empobrecida em termos de "volume" de atividades, o que nos indica uma
diminuição da interação social, com todas consequências negativas que este
facto tem para a saúde.
No que diz respeito aos sujeitos desta amostra torna-se necessário ter atenção
redobrada relativamente à vida social.A reinserção social traz consigo
alterações positivas na interação social e, portanto, deve ser pensada logo
desde o início de qualquer processo terapêutico. Tal como Patrício (2002)
afirma, "Promover a inserção social, profissional ou escolar, sem socializar é
promover um equívoco" (p.168).
Implicações para a Prática Clínica
Atendendo ao encontrado, o tratamento das pessoas dependentes de substâncias
psicoativas deve proporcionar-lhes relações sociais de qualidade e ajuda na
criação de meios pessoais e humanos para conseguirem, para eles próprios,
interações sociais satisfatórias.
Parece-nos que a promoção da saúde neste campo deve ser mais enfatizada,
devendo também ter como objetivo preencher essa carência de socialização. A
reinserção social deve fazer parte de qualquer projeto terapêutico nesta área
de intervenção. Para além da frequência das consultas, da administração, neste
contexto, da substância agonista, do apoio social, os toxicodependentes podem
necessitar de outras estruturas de suporte, e alguns precisam, com os técnicos
de saúde, de fazer grandes esforços para atingir um nível adequado de
socialização.
Os centros de dia ou unidades socio-ocupacionais são recursos que permitem
promover a socialização e, ainda, potencializar o processo terapêutico
desenvolvido em regime ambulatório. O indivíduo mantém, regularmente, a
frequência das consultas e frequenta estas estruturas com as suas atividades de
dinâmica de grupo. Aqui, os toxicodependentes (re)aprendem a fazer a gestão das
atividades diárias, atendendo ao tempo disponível, do espaço e dos limites,
desenvolvendo competências de socialização e o treino da autonomia.
Parece-nos que o indivíduo poderá ultrapassar dificuldades internas e
relacionais através de atividades lúdicas, ocupacionais, pedagógicas e pré-
profissionais, possibilitando o reencontro do sujeito consigo mesmo e com os
outros.