O uso da ICPC nos registos clínicos em Medicina Geral e Familiar
EDITORIAL
O uso da ICPC nos registos clínicos em Medicina Geral e Familiar
Miguel Melo*
*Assistente Graduado Sénior de Medicina Geral e Familiar
USF Fânzeres (ACES de Gondomar - ARS Norte)
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O último editorial1 da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF)
desafiou-me a reflectir sobre “o caminho que os registos clínicos começam a
levar nos dias de hoje”. Este editorial1 chama atenção para a utilização
crescente da ICPC†, que tem substituído registos clínicos narrativos por um
repositório seco de códigos, empobrecendo e ameaçando a compreensão e
inteligibilidade dos registos e história clínica, essenciais ao raciocínio e
entendimento médico. O editorial questiona também a credibilidade e validade
das codificações dos médicos de família (MF).
Uso da ICPC na prática clínica diária dos MF
Quanto à utilização crescente da ICPC, quais as razões da adesão dos MF à
utilização da ICPC? Ao contrário do referido no editorial (ironia?), a maioria
dos MF não aderiu sem pestanejar nem naturalmente à ICPC. Ela, mais ou menos
subtilmente, foi “imposta” à maioria dos MF, ficando por esclarecer:
1. A formação dos MF em ICPC é adequada e satisfatória? Para a maioria é
insuficiente e poucos se sentem à vontade com a ICPC, originando uma utilização
incorrecta e incongruente. Tal como referido no editorial, se pretendemos
credibilidade, o “autodidatismo do costume” não chega, impondo-se a avaliação
das necessidades formativas nesta área.
2. Qual o tipo de utilização da ICPC pretendida? Codificar apenas os Problemas?
Também Motivos de Consulta (MC) e Procedimentos?
Para conhecer a carga de doença do país, para planeamento em saúde, a
Administração Central do Sistema de Saúde elaborou um manual de codificação
para os Cuidados de Saúde Primários2 (CSP) onde são definidos 18 grupos de
problemas (por código ICPC associado) considerados mais relevantes (em
prevalência e custos associados).
Alguns indicadores de monitorização das normas da Direcção-Geral da Saúde
pressupõem codificação de diagnósticos (Problemas) pela ICPC, relacionando
determinada prescrição com determinado diagnóstico codificado (por exemplo
prescrição de iECA/total de K86 + K87). No MIM@UF (Módulo de Informação e
Monitorização das Unidades Funcionais) também existem indicadores sobre
quantidade de Problemas por área da ICPC.
Nos indicadores de desempenho das Unidades de Saúde Familiar (USF) é necessária
a codificação de alguns Problemas (o código quase sempre aparece
automaticamente ao abrir programas de saúde de grupos de risco / vulneráveis).
Já a grelha DiOr-USF,3 instrumento de avaliação de candidaturas a USF modelo B,
vai mais longe ao avaliar se existem registos do Procedimento - 45 (porquê este
e apenas este?) no “P” do SOAP!!!
Como algumas destas matérias se prendem com a avaliação do desempenho, e em
alguns casos a aspectos remuneratórios, a maioria dos MF, com receio de
penalizações, tentará usar a ICPC para codificar MC, Problemas e Procedimentos,
da forma que melhor souber, podendo assumir-se que este uso, nestas três áreas
é, de certa forma, obrigatório.
3. Como estão os MF a utilizar a ICPC? Desconhece-se o grau de adesão dos MF
portugueses à ICPC. Alguns provavelmente nem a utilizarão. Outros só codificam
os Problemas no A, queixando-se da dificuldade em encontrar o código ICPC para
o problema definido. Alguns, poucos, estarão a codificar nas três áreas da
ICPC: MC, Problemas e Procedimentos.
No Registo Médico Orientado por Problemas (RMOP) as notas clínicas de
seguimento “S” (subjectivo), “A” (avaliação) e “P” (Plano) podem abarcar,
respectivamente, mais do que MC, Problemas e Procedimentos “codificáveis” [o
“O” (objectivo) não é codificável]. No entanto, constata-se em alguns registos
a utilização de códigos substituindo por completo nestas notas, distorcendo e
aproximando códigos da ICPC à história clínica. Tais registos geram histórias
clínicas incompreensíveis ou incompletas, ao contrário do que deveriam ser:
claras, concisas e rapidamente perceptíveis por qualquer médico. Alguns MF
tentam contornar esta situação adicionando aos códigos da ICPC a narrativa
habitual, num esforço acrescido. Não tendo sido criada para substituir registos
clínicos, se usada desse modo, a ICPC pode, assim, constituir um obstáculo às
boas práticas.
4. Qual a validade das codificações registadas? Poderemos imaginar que, fruto
de alguma impreparação, a validade dos códigos da ICPC registados e dos
processos de codificação não deverá ser a melhor. Importa por isso estudar
algumas práticas de codificação de forma a fazermos o ponto da situação.
5. Que repercussões acarreta o uso da ICPC na prática clínica? As consequências
mais óbvias são uma maior duração do tempo de consulta (com o MF mais tempo a
olhar para o computador) e uma menor compreensão do historial clínico do utente
(pelo próprio MF ou por outros médicos).
Um estudo4 sobre o uso da ICPC pelos MF noruegueses, ao longo de 16 anos,
concluiu que a ICPC é inapropriada para a prática clínica diária e levantou
questões sobre a reprodutibilidade (heterogeneidade de critérios usados pelos
MF e falta de consistência na codificação), limitando a credibilidade da
investigação assente nesta classificação.
O que falta fazer? Aspectos para reflexão
Ainda está por fazer a discussão inter pares (Associação Portuguesa de Medicina
Geral e Familiar e colégio da especialidade) acerca do interesse,
obrigatoriedade, extensão e tipo de utilização da ICPC na prática clinica
diária.
Na minha opinião, a ICPC deve ser utilizada nos registos clínicos,
sistematicamente, apenas para classificar os Problemas. Contribuiremos, assim,
para fornecer dados de morbilidade nacional importantíssimos para o planeamente
em saúde. Por outro lado, é uma forma de coligirmos listas de Problemas, o
aspecto mais importante do RMOP (método de Weed). Os MC e os Procedimentos não
devem ser codificados na prática clínica diária. A grande perturbação na
consulta que originaria a codificação dos inúmeros MC e Procedimentos (para
além dos inúmeros Problemas) e a reduzida utilidade para o clínico e para o
cidadão assim o desaconselham.
A maioria dos MF não se sente à vontade com a ICPC. Como classificação complexa
que é, exige formação e treino para um uso correcto. A formação deveria ser
focalizada na classificação dos Problemas (única útil na prática clínica
habitual), aumentando assim o rigor e credibilidade das codificações. O ideal
seria a existência de um sistema que convertesse texto corrido em códigos.
A ICPC proporciona uma riqueza de dados preciosa para a investigação em
Medicina Geral e Familiar (MGF). Nesta perspectiva, e como forma de assegurar
investigação de qualidade, admite-se a utilização sistemática da ICPC,
efectuada por MF treinados para o efeito e integrados em projectos de
investigação. A complexidade da codificação sistemática de MC, Problemas e
Procedimentos só seria possível num ambiente de investigação protegido de
pressão assistencial. Poderiam ser criadas bolsas de médicos (à semelhança dos
Médicos Sentinela) voluntários para esse efeito.
Pelo que foi dito, e de forma a causar menor perturbação na consulta, a
melhorar a qualidade dos registos, a fornecer dados mais credíveis de
morbilidade e para projectos de investigação, defendo que na prática clínica
diária apenas devemos utilizar a ICPC para a classificação dos Problemas,
ficando a classificação dos MC e dos Procedimentos reservada a contextos de
investigação.
Apesar das suas limitações e complexidade, a ICPC é a classificação mais usada
internacionalmente em MGF e o seu uso poderá ser útil para conhecer a
morbilidade e aumentar o corpo de conhecimento da MGF. É imprescindível uma
discussão mais profunda e alargada, entre todos os envolvidos, sobre a
utilização da ICPC na prática clínica diária.