Rastreio do Cancro Colo-rectal: colonoscopia versus pesquisa de sangue oculto
nas fezes
CLUBE DE LEITURA
Rastreio do Cancro Colo-rectal: colonoscopia versus pesquisa de sangue oculto
nas fezes
A. Daniela Costa*; Raquel Briosa*
*Internas em formação específica MGF, USF S. João do Porto
Quintero E, Castells A, Bujanda L, Cubiella J, Salas D, Lanas A, et al.
Colonoscopy versus fecal immunochemical testing in colorectal-cancer screening.
N Engl J Med 2012 Feb 23; 366 (8): 697-706.
As estratégias de rastreio do cancro colo-rectal (CCR) englobam duas categorias
distintas: a análise das fezes, nomeadamente a pesquisa de sangue oculto nas
fezes (PSOF) e os exames endoscópicos/imagiológicos do cólon e recto.
Este estudo pretende demonstrar que a realização de PSOF (por método
imunoquímico) a cada dois anos não é inferior ao rastreio por colonoscopia
única no que respeita à redução da taxa de mortalidade a 10 anos relacionada
com CCR.
Métodos
Ensaio clínico aleatorizado, multicêntrico, envolvendo indivíduos
assintomáticos entre os 50 e os 69 anos. Foi estabelecido como outcome primário
a eficácia da colonoscopia única e da PSOF bianual na redução da taxa de
mortalidade a 10 anos por CCR.
Este artigo pretende descrever os resultados preliminares deste estudo,
designadamente taxas de participação, achados diagnósticos e ocorrência de
complicações major da primeira fase do estudo.
Foi seleccionada uma amostra aleatória de 57 404 indivíduos, estratificada por
idade e género. A amostra foi aleatorizada em dois grupos de acordo com o teste
de rastreio: PSOF por método imunoquímico (em amostra única de fezes) e
colonoscopia. Os indivíduos que aceitaram participar no estudo foram avaliados
em consulta, tendo-lhes sido dada a oportunidade de escolher o outro método de
rastreio disponível («crossover»). Deste modo, os resultados obtidos foram
analisados não só de acordo com o grupo de estudo inicialmente atribuído
(«intention-to-screen») mas também de acordo com a técnica de rastreio que foi,
de facto, utilizada («as-screened»).
Resultados
Da amostra de 57 404 indivíduos, foram seleccionados 26 703 para realização de
colonoscopia (idade média 59,2 ±5,5 anos; 53,5% do sexo feminino) e 26 599 para
PSOF (idade média 59,3 ±5,6 anos; 54,3% do sexo feminino). A taxa de
participação foi significativamente mais elevada no grupo seleccionado para
PSOF (34,2% versus 24,6%, P <0,001).
Do grupo dos participantes seleccionados para realizar colonoscopia (n=7 368),
5 649 aceitaram o método proposto e 1 706 optaram por realizar PSOF (crossover
de 23%). Daqueles a quem foi proposto a realização de PSOF (n=9 512), 9 353
aceitaram e 117 (crossover de 1%) solicitaram a realização de colonoscopia. A
taxa de crossover foi significativamente superior no grupo de indivíduos
seleccionados para realizar colonoscopia (P <0,001).
Foram encontrados 30 casos de CCR (0,1%) nos indivíduos propostos para
colonoscopia e 33 (0,1%) nos indivíduos do grupo da PSOF (odds ratio 0,99;
intervalo de confiança [IC] 95%, 0,61 a 1,64; P = 0,99).
Foram identificados adenomas avançados em 514 indivíduos (1,9%) seleccionados
para colonoscopia e em 231 indivíduos (0,9%) seleccionados para PSOF (odds
ratio 2,30; IC 95%, 1,97 a 2,69; P <0,001) e adenomas não avançados em 1 109
indivíduos (4,2%) propostos para colonoscopia e em 119 indivíduos (0,4%)
propostos para PSOF (odds ratio 9,80; IC 95%, 8,10 a 11,85; P <0,001).
A análise dos dados por grupo de estudo («intention-to-screen») e por técnica
utilizada («as-screened») permitiu obter resultados idênticos.
A taxa de complicações major foi significativamente superior no grupo de
indivíduos seleccionados para colonoscopia (odds ratio 4,81; IC 95%, 2,26 a
10,20; P <0,001).
Conclusões
À semelhança de outros ensaios realizados em contextos idênticos, a taxa de
participação identificada neste ensaio clínico foi baixa em ambos os grupos de
rastreio, podendo limitar a generalização dos resultados encontrados.
O resultado mais relevante obtido com esta avaliação preliminar prende-se com o
facto de que o rastreio com PSOF foi semelhante ao rastreio com colonoscopia no
que diz respeito à taxa de detecção de CCR, não tendo ainda sido encontradas
diferenças estatisticamente significativas no estádio ou localização do tumor
para cada um dos métodos de rastreio utilizados.
A comparação da eficácia da colonoscopia e da PSOF na redução da taxa de
mortalidade por CCR será avaliada no final do presente estudo, que termina em
2021.
COMENTÁRIO
O CCR é uma das principais causas de morbi-mortalidade por cancro em Portugal,
sendo actualmente recomendado que o seu rastreio seja efectuado a partir dos 50
anos, ou a partir dos 40 anos nos indivíduos de risco aumentado.1 A prevenção
primária constitui assim uma estratégia que se tem verificado efectiva e custo-
eficaz na redução da incidência e mortalidade por CCR.2,3,4
São elencadas várias opções aceitáveis no que diz respeito à boa prática no
rastreio do CCR, nomeadamente a PSOF anual ou bianual, pelo método do guaiaco
(«HemmOccult») ou imunoquímico, a recto-sigmoidoscopia flexível, o enema
baritado com duplo contraste, a colonoscopia total e a colonoscopia
virtual.1,2,3,4
No que diz respeito à análise das fezes, a PSOF por método imunoquímico tem
vindo a revelar maior exactidão na detecção de CCR e adenomas em fase avançada
comparativamente à PSOF pelo método do guaiaco, sendo a primeira considerada
técnica de primeira linha.5
Embora exista ainda alguma controvérsia no que diz respeito ao método mais
efectivo e custo-eficaz, é cada vez mais consensual que, independentemente da
abordagem, o rastreio do CCR apresenta vantagens incontornáveis
comparativamente com o não rastreio. Deste modo, tem-se sugerido uma prática
centrada nas preferências do doente assente num modelo clínico de decisão
partilhada, focado em estratégias que aumentem a adesão ao rastreio.2,3
Tendo em consideração que, quando informados das vantagens e desvantagens de
cada método, uma proporção muito significativa dos doentes prefere métodos de
rastreio menos invasivos, como a PSOF, em detrimento de outros com maior
exactidão diagnóstica, importa perceber o impacto real na redução da incidência
e mortalidade dos vários métodos de rastreio.3,6,7
É neste contexto que este grupo de investigadores se propõe a analisar o
impacto na redução da mortalidade a 10 anos, das duas abordagens de rastreio do
CCR mais comuns na nossa prática clínica – a PSOF bianual e a colonoscopia
total de 10 em 10 anos.
Embora este estudo não esteja concluído, os resultados preliminares permitem já
algumas conclusões que importa considerar. Desde logo, e à semelhança dos
resultados obtidos nos vários programas de rastreio europeus e americanos, é de
salientar uma baixa adesão à participação no rastreio do CCR, bem como uma
adesão ao rastreio por colonoscopia significativamente inferior ao rastreio por
PSOF.
No que diz respeito aos métodos de rastreio utilizados, verificou-se não
existirem diferenças significativas na taxa de detecção, estádios ou
localização de tumores encontrados. De notar, no entanto, que um maior número
de casos de CCR pode ter sido prevenido no grupo de indivíduos que realizou
colonoscopia, devido ao maior número de adenomas identificados e removidos
(considerados precursores da doença). Assim, este facto pode constituir uma
potencial vantagem deste método de rastreio, não apenas na diminuição da taxa
de mortalidade, mas também da incidência do CCR. Por outro lado, esta aparente
vantagem pode ser diminuída pela menor taxa de participação neste grupo de
indivíduos, bem como pelo carácter recorrente da PSOF.
Ainda relativamente à PSOF, é de salientar que, se por um lado, é expectável
que ao longo do estudo venha a detectar mais casos de CCR e de adenomas, existe
também o risco de nem todos os indivíduos concluírem o estudo com as cinco
pesquisas realizadas, aproximando a adesão ao rastreio por PSOF à do grupo da
colonoscopia.
Até que o estudo seja concluído e o impacto na mortalidade de ambas as
abordagens possa ser determinado, permanecem algumas questões: será que adesão
ao rastreio por PSOF bianual será assim tão superior comparativamente à
realização de uma colonoscopia a cada 10 anos? Qual seria o impacto nos
resultados obtidos para o grupo da PSOF se esta tivesse sido efectuada de
acordo com que é habitualmente realizado na prática clínica (duas amostras em
três dias consecutivos)? Se considerarmos que as principais desvantagens do
rastreio por colonoscopia se prendem com o custo e o risco de complicações e,
tendo em conta a evolução natural da maioria dos adenomas intestinais, não será
de facto uma vantagem a baixa detecção de adenomas não avançados pela PSOF e
consequente diminuição do número de colonoscopia realizadas desnecessariamente?
Se actualmente existe algo de consensual é que, para qualquer rastreio de base
populacional, a adesão constitui um dos pilares do sucesso.8,9 Se consideramos
a análise de custo-eficácia realizada pela US Preventive Services Task Force,3
segundo a qual, num cenário de adesão de 100% quer à PSOF por teste
imunoquímico quer à colonoscopia, o ganho em anos de vida foi semelhante,
torna-se incontornável repensar as estratégias, descentrando-as das opções
técnicas e focando-as na adesão da população.