Aspirina como quimioprevenção do cancro?
CLUBE DE LEITURA
Aspirina como quimioprevenção do cancro?
Alexandra Duarte*, Joana Neto*
*Internas de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar, USF São João de
Sobrado
Mills EJ, Wu P, Alberton M, Kanters S, Lanas A, Lester R. Low-dose aspirin and
cancer mortality: a meta-analysis of randomized trials. Am J Med 2012 Jun; 125
(6): 560-7.
Introdução
A prevenção de eventos cardiovasculares com recurso a uma baixa dose diária de
aspirina (ácido acetilsalicílico, AAS) em doentes de alto risco, com doença
cardiovascular prévia, tem sido bem estudada e comprovada.
O único ensaio randomizado completo realizado até à data, que analisou o
possível efeito preventivo da aspirina sobre a ocorrência de cancro, veio
demonstrar que altas doses de aspirina teriam efeito protetor. Adicionalmente,
uma meta-análise recente, que incluía oito ensaios clínicos, demonstrou que a
aspirina reduzia o risco a longo prazo de mortalidade por cancro,
independentemente da dose.
Objetivo
Determinar se a mortalidade por cancro é igualmente reduzida por doses baixas
de aspirina a curto prazo.
Metodologia
Foi realizada uma meta-análise que incluiu todos os ensaios clínicos
randomizados que avaliavam o papel terapêutico da aspirina diária isolada, em
baixa dose (75-325 mg), em qualquer população, tendo como outcomes a doença não
cardiovascular e a mortalidade por cancro. Foram pesquisadas as bases de dados
Medline, Embase, Amed, CinAHL, TOXNET, Cochrane CENTRAL, PsycINFO, Web of
Science, ScienceDirect e Ingenta, de artigos publicados em qualquer língua até
dezembro de 2011. Dois investigadores, de forma independente e em duplicado,
selecionaram os artigos pelo abstract e posteriormente pelo texto completo,
analisando e introduzindo informações e características pré-definidas dos
ensaios numa base de dados. A concordância inter-investigadores na inclusão dos
artigos foi avaliada como “quase perfeita” (Phi = 0.85). O impacto da duração e
dose na quantidade do efeito final (outcomes) foi avaliado através do
agrupamento de estudos segundo um modelo de random-effects, procedendo
posteriormente à sua meta-regressão. Foi também realizada uma meta-análise
cumulativa, dos ensaios mais curtos até aos mais longos, para estimar qual o
período de tempo durante o qual os efeitos do tratamento se tornam
significativos.
Resultados
Foram incluídos 23 estudos randomizados, que avaliavam a morte de causa não
vascular, 11 dos quais especificamente a morte por cancro. Do total dos
estudos, verificou-se 944 mortes de 41 398 doentes (2,28%) que faziam baixa
dose de aspirina e 1 074 de 41 470 (2,58%) que não recebiam terapêutica com
aspirina, com um follow-up (FU) médio de 2,5 anos. Daqui resultou um risco
relativo estimado de 0.88 [intervalo de confiança (IC) 95%, 0.81-0.96, I2 =
0%].
Dos 11 ensaios que reportavam especificamente mortes por cancro (16 066
participantes), verificaram-se 162 mortes de 7 998 doentes (2,02%) e 210 de 8
068 (2,60%), entre os que tomavam uma baixa dose de aspirina e os que não
faziam aspirina, respetivamente, com um FU médio 2.8 anos. Estes resultados são
a favor de um efeito protetor da aspirina em baixa dose, já que se verificou
uma redução significativa da mortalidade por cancro, com um risco relativo de
0,77 (IC 95%, 0,63-0,95, I2 = 0%)
Os estudos, na sua globalidade, demonstraram diferenças estatisticamente
significativas do tratamento após uma média de 4 anos de FU.
Discussão
Os resultados desta meta-análise são consistentes com os de uma outra
anteriormente realizada, que conclui que a aspirina evidencia proteção sobre a
mortalidade por cancro. Foi demonstrado que este efeito protetor advém do
tratamento com baixas doses, surgindo num curto período de tempo.
Estes resultados vêm realçar o importante papel da aspirina sobre a proteção
oncológica, que deverá ser clinicamente útil em doentes de baixo e alto risco
com doença cardiovascular, tendo sempre em conta que os potencias benefícios da
aspirina deverão ser contrabalançados com o risco hemorrágico.
Pontos fortes desta meta-análise incluem: (1) a extensa pesquisa da literatura,
tendo em conta a inclusão de todo e qualquer ensaio clínico randomizado acerca
do uso diário de baixa dose de aspirina; (2) a avaliação de mortes não
vasculares e de morte por cancro. Entre os pontos fracos: (1) a ausência de
dados relativos à incidência de cancros que não resultaram em mortes durante os
períodos de estudo e o seguimento a longo prazo [de realçar que estudos mais
longos irão identificar mais apropriadamente a incidência de cancros do que
estudos mais curtos, uma vez que os estudos incluídos nesta meta-analise têm
curta duração (FU médio de 2.5 anos) e, portanto, é muito provável que tenham
subestimado o efeito a longo prazo do tratamento com aspirina nas mortes por
cancro – apesar da meta-análise anteriormente realizada, que incluiu ensaios
com 20 ou mais anos de duração, ter obtido as mesmas conclusões]; (2) é
provável que existam viéses no que concerne à mortalidade por cancro, porque a
maioria dos estudos foi desenhada para avaliar outcomes de doença
cardiovascular, o que leva a que: (a) o cancro possa estar subestimado (apenas
11 ensaios relatavam mortalidade por cancro); (b) 12 ensaios abordavam apenas
as mortes não vasculares não fazendo referência a mortes por cancro.
Os autores realçaram o facto dos benefícios da aspirina ao nível da prevenção
oncológica se basearem, provavelmente, em efeitos pleiotrópicos, talvez anti-
inflamatórios, e efeitos apoptóticos em vez de só antitrombolíticos.
Conclusão
Este estudo demonstrou um importante efeito da utilização de uma baixa dose de
aspirina na prevenção da mortalidade não vascular e por cancro, que se pode
verificar num curto período de tempo.
Comentário
O efeito da aspirina na redução do risco de eventos cardiovasculares está bem
definido, sempre contrabalançado pelo seu efeito hemorrágico. No entanto ainda
existe alguma controvérsia relativamente ao seu efeito antineoplásico.
A prova mais consistente do efeito antineoplásico da aspirina tem-se verificado
na redução do risco do cancro colo-retal (CCR) e na recorrência dos pólipos
adenomatosos.1-6 Relativamente a outras neoplasias (como a esofágica, gástrica,
biliar, prostática e mamária, e ainda metástases à distância, tanto iniciais
como subsequentes),6-8 têm sido revelados também dados interessantes, com
reduções de risco de cancro em cerca de 21%, embora com benefício apenas após 5
anos de terapêutica, e ainda uma redução na mortalidade por cancro em FU até 20
anos.7-9 Um estudo que avaliou 51 ensaios randomizados demonstrou que a
aspirina, independentemente da dose, reduzia significativamente a mortalidade
por cancro em 15% (benefício observado aos 3 anos com doses altas de AAS, >
300mg/dia; e aos 5 anos para doses baixas, <300 mg/dia).10 Por outro lado,
estudos realizados a nível de prevenção primária revelaram que a aspirina não
se associava à redução de risco de CCR em FU de 10 a 15 anos,11,12 nem à
diminuição da incidência ou mortalidade de cancro em geral.11
Vários estudos levantam a hipótese do efeito antineoplásico da aspirina estar
relacionado com a sua ação antiplaquetária (pela inibição irreversível da COX-
2, que leva à diminuição da síntese de prostaglandinas, que podem inibir o
crescimento tumoral) no crescimento e disseminação de células tumorais, bem
como o seu início,1,3,7,8,13 já que se verifica um aumento da atividade
plaquetária nos doentes com cancro, e esta ativação plaquetária é um dos
pontos-chave da disseminação tumoral.13
Até hoje não foram ainda atualizadas as recomendações da US Preventive Task
Force (USPTF) sobre este assunto, sendo que as de 2007 ainda não propunham a
utilização da aspirina como quimioprevenção primária, relativamente ao CCR. É
referido, no documento, que o uso crónico de AAS aumenta o risco de hemorragia
gastrointestinal e AVC hemorrágico, bem como o de insuficiência renal e
hipertensão.2 Neste sentido o risco hemorrágico tem vindo a ser averiguado,
sendo que uma meta-análise de 2011 permitiu aferir que basta tratar com AAS 261
pacientes durante um período de 6,9 anos para que um deles tenha um evento
hemorrágico major (Number Needed to Harm = 261).14
Calculando o Number Needed to Treat do uso de aspirina a partir dos 23 estudos
incluídos nesta meta-análise (FU médio de 2,5 anos), resulta o valor de 323 e,
mais especificamente, de 173, calculando-o a partir dos 11 estudos que
avaliaram a morte por cancro, o que traduz uma necessidade de tratar 173
pacientes com AAS, durante 2,8 anos (tempo médio de FU dos 11 estudos) para que
um deles tenha benefício (evicção de morte por cancro).
Estudos apontam para que o fator mais importante na redução do cancro seja a
duração da exposição à aspirina,8 apesar de ainda não terem sido definidas a
menor dose eficaz, a duração do tratamento, a população alvo ideal ou os
efeitos mais específicos na sobrevida.1
Saliente-se, por fim, que as conclusões deste estudo, por terem sido noticiadas
pela comunicação social aquando da sua publicação, poderão condicionar um
incremento na solicitação da prescrição deste fármaco por utentes e doentes
mais bem informados, ou até mesmo de alguns o iniciarem sem conhecimento ou
aconselhamento médico.
Por tudo isto, as autoras são da opinião que o efeito benéfico da aspirina
sobre o cancro deverá ser objeto de mais estudos.