Redes globais e dinâmicas regionais. Explorando o desenvolvimento das
tecnologias bi-combustível em São Paulo
I. INTRODUÇÃO
Ao longo das duas últimas décadas, uma importante parte do trabalho em
geografia económica e estudos regionais tem estudado as relações entre
concentração espacial da actividade económica, inovação e desenvolvimento
regional. Ao longo deste trajecto, conceitos como clusters(Porter, 1990), meios
inovadores (Camagni, 1991; Maillat, 1995), regiões aprendentes (Asheim, 1996;
Morgan, 1997) e, mais recentemente, sistemas regionais de inovação (Cooke,
1992, 2001; Asheim e Isaksen, 2002; Asheim e Gertler, 2005) têm tido bastante
influência e encontram-se reflectidos nas agendas políticas e estratégias de
desenvolvimento de muitas regiões.
Todos estes conceitos, de forma mais ou menos explícita, reconhecem a região
(administrativa ou não) enquanto unidade territorial relevante, ao nível da
qual se processam dinâmicas de interacção entre diferentes actores, facilitando
decisivamente processos de criação de conhecimento, aprendizagem e inovação. A
co-localização de empresas e outros actores (universidades, associações
empresariais, centros tecnológicos e de I&D, etc) é essencial para a
geração espontânea de externalidades de conhecimento e de informação,
conhecidas na literatura por buzz(Storper e Venables, 2004). Esta co-
localização é também essencial para a coordenação das exigentes interacções
inter organizacionais relacionadas com conhecimento e inovação, na medida em
que facilita um entendimento conjunto, por via da presença de uma matriz
institucional, social e cultural comum (Maskell e Malmberg, 1999). Em contexto
de intensificação da globalização, este corpo de literatura tem decisivamente
ajudado a perceber a resiliência da concentração espacial de actividades
intensivas em conhecimento e inovação.
Ao mesmo tempo, diversos estudos no campo das ciências organizacionais e das
cadeias de valor globais (Gereffi, et al.,2005; Berger, 2006) têm evidenciado
esforços de inovação que ocorrem em redes de inovação de carácter
transnacional. Conceitos como inovação aberta (Chesbrough, 2003) ou
estratégias de inovação meta-nacionais (Doz et al., 2001) reflectem o
reconhecimento de que muitos dos esforços de aquisição de conhecimento e
inovação de empresas localizadas se processam cada vez mais por via de
interacções deliberadas com outros actores localizados fora da região ou
milieuinovador original. A crescente literatura em torno das comunidades
globais de conhecimento, quer epistemológica, quer de prática, reflecte uma
realidade similar (Amin e Cohendet, 2004).
Neste contexto, muito do trabalho recente da geografia económica tem sido feito
no sentido de integrar na literatura este nexo global-local das dinâmicas de
interacção na produção de conhecimento e inovação (Coe e Bunnell, 2003; Asheim
e Coenen, 2005). Ao conciliar as vantagens da aprendizagem localizada com a
relevância do acesso a redes globais de conhecimento e inovação, é influente a
concetualização de Bathelt et al.,(2004), que introduz a noção de pipelines '
canais através dos quais actores geograficamente localizados acedem
deliberadamente a conhecimento global ' e buzz' referente a externalidades de
conhecimento e informação resultantes da interacção co-localizada entre
actores. Esta capacidade de combinar o melhor de dois mundos é apresentada na
literatura como motor essencial de diferenciação competitiva das regiões em
contexto de globalização: high levels of buzz and many pipelines may provide
firms located in outward looking and lively clusters with a string of
particular advantages not available to outsiders(Bathelt et al., 2004, p. 31).
Apesar de inspirador, uma das limitações que pode ser apontada a este corpo da
literatura passa pela reduzida consideração dos efeitos dinâmicos resultantes
da inserção de empresas (e a nível agregado, de clustersou de regiões) em redes
globais de conhecimento e inovação. Ao aceder a novas fontes de conhecimento,
uma empresa pode ver alteradas, por exemplo, as suas rotinas instaladas de
inovação empresarial e, de forma dinâmica, a natureza das suas competências
tecnológicas e de conhecimento (Zollo e Winter, 2002). Em resultado, a
alteração dinâmica da base de competências empresariais poderá ter efeitos na
estrutura de diferentes redes inter-organizacionais localizadas, para além da
geração de processos de co-evolução e adaptação institucional (Boschma, 2004).
Este debate assume especial relevância quando as políticas públicas de inovação
e competitividade a nível regional procuram cada vez mais complementar a
criação de diversas plataformas, pólos e clusterscom a inserção dos seus
actores em redes globais (incentivos à internacionalização, estratégias de
cooperação, atracção de investimento estrangeiro intensivo em conhecimento,
etc.).
Este artigo, posicionando-se no quadro de uma abordagem evolucionista da
geografia económica (Boschma e Frenken, 2006), pretende contribuir para este
debate por duas vias. Por um lado, combinando desenvolvimentos recentes da
geografia económica e estudos organizacionais, apresenta-se uma
conceptualização dos efeitos dinâmicos resultantes da inserção em redes globais
de conhecimento e inovação ao nível i) da empresa, nomeadamente pela
especialização da base de conhecimento, ii) da rede de interacções regionais,
por exemplo pela busca de parceiros para complementar a nova base de
conhecimento e iii) da co-evolução institucional associada. Num segundo
momento, o artigo ilustra esta conceptualização com o estudo do processo de
desenvolvimento de um portfóliode novas tecnologias para o sector automóvel em
São Paulo, associado aos sistemas bi-combustível,que permitem que um veículo
automóvel se desloque a gasolina, etanol ou combinações dos dois. Trata-se de
um processo marcado pela inserção dos seus principais actores e inventores em
redes globais de inovação, com consequências ao nível da sua especialização
empresarial e da emergência de novas dinâmicas de inovação regionais em torno
de um portfoliode novas tecnologias verdes (Burtis et al., 2004).
O artigo está organizado da seguinte forma. A secção II revê o papel das
interacções distantes nos processos de inovação localizada e os processos de
evolução de clustersao longo do tempo. A secção III apresenta um enquadramento
dos efeitos dinâmicos associados à inserção de actores regionais em redes
externas de inovação e conhecimento. A secção IV ilustra a conceptualização
anterior com o processo de desenvolvimento de tecnologias bi-combustível em São
Paulo, focando a análise nas redes globais de conhecimento envolvidas e na
evolução regional associada. A secção V discute questões em aberto e
implicações de política, nomeadamente regional.
II. REVISITANDO A INOVAÇÃO LOCALIZADA: DINÂMICAS NO ESPAÇO E NO TEMPO
Durante a última década, um importante corpo da geografia económica tem-se
dedicado a estudar, por um lado, i) o papel de contactos e interacções externas
à região no desenvolvimento de processos de inovação localizada e, por outro,
ii) os processos de evolução dinâmica de clusterse especialização regional ao
longo do tempo. Sem pretender ser exaustiva, esta secção revê alguns dos
desenvolvimentos teóricos e empíricos mais relevantes, integrando-os de seguida
(secção III) num modelo de análise das dinâmicas regionais determinadas pela
integração dos seus actores em redes globais de conhecimento e inovação.
1. Contactos externos e inovação localizada
Uma das características centrais da literatura que aborda os processos de
inovação localizada, em clustersde actividades relacionadas (Porter, 1990,
2000; Becatini, 1990; Maskell, 2001) é a alegada relevância dada à co-
localização espacial de empresas e de outras entidades (universidades, agências
e associações de suporte, etc.). De acordo com estas teorias, a proximidade
geográfica[ii], ao reduzir significativamente custos de coordenação e
transacção generalizados entre parceiros (Williamson, 1987), facilita a
transmissão de conhecimento (tácito) e o desenvolvimento de esforços conjuntos
de inovação atendendo à componente de sociabilidade associada a muitas das
actividades envolvidas nos processos de inovação (Lundvall e Johnson, 1994).
Todavia, literatura recente em geografia económica, estudos regionais e
organizacionais tem assinalado que muitos dos contactos desenvolvidos por
empresas e outras organizações fora do seu milieu podem ser essenciais aos
seus processos de aquisição de conhecimento, aprendizagem e inovação (Asheim e
Isaksen, 2002; Amin e Cohendet, 2004; Asheim e Coenen, 2005; McKinnon et al.,
2002; Vale e Caldeira, 2007; Wolfe e Gertler, 2004). Podem ser identificados
pelo menos dois ramos de investigação, relacionados, que salientam esta
realidade: em primeiro lugar, o trabalho em torno das cadeias de valor e redes
de inovação global (Gerefi et al., 2005), salientando o papel de estratégias
empresariais transnacionais no desenvolvimento de relacionamentos inter e intra
empresariais, à escala global (Coe e Bunnell, 2003; Dicken et al., 2001); em
segundo lugar, os estudos derivados das noções de comunidades de prática e
epistémicas (Wenger, 1998; Knorr Cetina, 1999) recentemente trabalhados na
geografia económica no estudo de formas temporárias de co-localização ao
serviço da troca e produção de conhecimento (Maskell et al., 2006; Gertler,
2008). Este corpo de literatura identifica e explica o funcionamento de
diversas formas interactivas de troca de conhecimento ' por exemplo feiras,
conferências, clusterstemporários para o desenvolvimento de novos produtos,
etc. ' que, apesar de requererem contacto cara-a-carae períodos de forte
interacção, podem ser desenvolvidas com um carácter temporário, numa estrutura
que se dissolve posteriormente. Na indústria automóvel, construção naval ou
maquinaria especializada (Van Winden et al., 2008) é hoje em dia muito
frequente a existência de plataformas temporárias para o desenvolvimento de um
novo modelo ou de uma nova tecnologia, juntando competências de fornecedores
independentes ou de diferentes departamentos de I&D de um grupo
transnacional (Gereffi, 2005; Birkinshaw e Hood, 1998). Este nexo local-global
é uma realidade em muitos outros sectores e domínios de actividade, como nos
mostram diversos casos, que vão desde a biotecnologia (Moodysson, 2008) aos
mediae indústrias criativas (Bathelt, 2005; Bathelt e Graf, 2008).
A recente conceptualização local-global em termos de buzze pipelines(Bathelt
et al., 2004) tenta reconciliar todo este novo corpo teórico e empírico revendo
os anteriores conceitos de inovação localizada (Malmberg e Maskell, 2006),
assinalando que o conhecimento, ainda que tácito, pode ser transmitido
globalmente e que os processos de aprendizagem e inovação não são exclusivos de
regiões inovadoras espacialmente delimitadas. Neste trabalho distingue-se entre
os processos de aprendizagem que derivam da co-localização, por via de
externalidades de conhecimento e informação ' a que é chamado buzz(Storper e
Venables, 2004) ' e o conhecimento obtido e processado através de contactos
externos e relações de actores locais com outros parceiros espalhados no globo,
identificado como pipelines(Owen-Smith e Powell, 2004). A interacção virtuosa
entre estas duas fontes de conhecimento, informação e colaboração tenderia a
dotar clusterse regiões do melhor de dois mundos, dando-lhes vantagens
distintivas que se reforçariam cumulativamente ao longo do tempo (Giuliani,
2005; Bathelt, 2007).
2. Evolução de clusterse regiões ao longo do tempo
Existe hoje em dia um campo na geografia económica que estuda os processos de
inovação regional numa perspectiva evolucionista[iii]. No geral, esta
perspectiva foca-se na relação interactiva entre estrutura e agência em
diferentes contextos; o seu objectivo passa pela análise dos mecanismos sob os
quais a acção humana (por exemplo empresas e suas estratégias), estruturas e
instituições co-evoluem ao longo do tempo em diferentes contextos sócio-
espaciais (Boschma e Lambooy, 1999).
Neste quadro de análise, um pressuposto importante é o de que o contexto
territorial em que uma empresa opera exerce forte influência no seu
comportamento ' regiões e clusterssão considerados como entidades relevantes,
que afectam o comportamento das empresas e organizações que os constituem. Por
um lado, empresas, regiões e clustersacumularam conhecimento e competências
específicas e territorializadas (uma certa especialização, organização,
competências e divisão de trabalho entre actores). Por outro, em linha com
abordagens institucionalistas que estudam sistemas regionais de inovação
(Cooke, 2001, Asheim e Gertler, 2005), estas entidades acumularam um conjunto
de ambientes institucionais ' normas, regulamentos, valores ' e capital social
(Saxenian, 1994; Morgan, 1997; Scott, 1998), que afectam decisivamente a
intensidade e a natureza das relações na região, bem como a sua capacidade de
aprendizagem, de re-invenção e desenvolvimento de novas actividades.
Na abordagem evolucionista a performancede um clusterou região depende das suas
capacidades dinâmicas de transferir conhecimento e gerar aprendizagem. Os
mecanismos que suportam a coordenação dessas formas de interacção (mercados,
redes inter-organizacionais) encontram-se mais ou menos enraizados num
determinado ambiente institucional (Boschma, 2004). Estas atmosferas
institucionais podem conduzir a excelentes dinâmicas de inovação (por exemplo,
quando normas partilhadas e capital social entre os actores conduzem a atitudes
de experimentação), mas podem também dificultar processos de desenvolvimento e
inovação (por exemplo, quando baixos níveis de confiança ou bloqueios
regulamentares impedem contactos fluidos e relações de mercado). Neste
contexto, o desenvolvimento de um clusterao longo do tempo é visto como o
resultado da co-evolução dos seus activos específicos de competências e do seu
ambiente institucional. O desenvolvimento de um clusteré assim irreversível e
dependente da sua história: após os acontecimentos (muitas vezes aleatórios)
que determinam a sua nascença, cada clustersegue uma determinada trajectória de
desenvolvimento (Boschma, 2004; Maskell e Malmberg, 2007).
There exists a wide diversity of trajectories that differ with
respect to which key organisations are involved (large firms, small
firms, universities, public agencies), how knowledge is transmitted
and diffused through the area (through inter-firm co-operation or
through other means), which institutions affect the innovation
process, and how institutions themselves are shaped, modified and
transformed. (Boschma, 2004, p. 1008).
III. REDES GLOBAIS E DINÂMICAS REGIONAIS: UMA LEITURA DINÂMICA
Cruzando e integrando elementos das referências anteriores, nesta secção
apresenta-se um modelo simplificado dos impactos dinâmicos resultantes da
inserção dos actores de uma região ou clusterem redes globais[iv]de
conhecimento e inovação. O modelo conceptualiza estes impactos ao nível i) da
especialização das empresas envolvidas, ii) da evolução das suas redes
regionais e iii) da co-evolução institucional associada (fig. 1).
Fig._1 ' Redes globais e impactos regionais: uma conceptualização dinâmica.
Fig._1 ' Global networks and regional impacts: a dynamic framework.
No modelo que se apresenta, redes globais de conhecimento e inovação
(pipelines) são conceptualizadas como canais pelos quais se busca, desenvolve
ou transfere conhecimento relacionado com tecnologias, produtos e negócios
(Ahuja e Katila, 2001; Rosenkopf e Nerkar, 2001), susceptível de apropriação.
Sendo uma actividade consumidora de recursos[v](Maskell et al., 2006),
considera-se que o estabelecimento de pipelinestem em vista uma certa
estabilidade temporal, com possibilidades de repetição da interacção com os
mesmos parceiros.
O argumento principal do modelo, detalhado nas secções seguintes, propõe que a
inserção de uma empresa (ou, a nível agregado, de diversas empresas regionais)
em pipelines, provoca efeitos dinâmicos na base de competências e de
organização da empresa, isto é. mudança ou adaptação nas suas rotinas (Nelson e
Winter, 1982). Este processo, por sua vez, acarreta efeitos de arrastamento, no
sentido em que estas novas rotinas empresariais tendem a implicar também uma
reconfiguração das respectivas redes inter-organizacionais de troca de
conhecimento, inovação e buzz. Estes processos tenderão a co-evoluir com
dinâmicas de adaptação institucional, gerando um feedbackinteractivo no sentido
do reforço da (nova) base de competências e especialização regional (Maskell e
Malmberg, 2007). As secções seguintes detalham sequencialmente os mecanismos
propostos.
1. Dinâmicas empresariais e de especialização
O encetar de uma colaboração por via de uma pipeline, em última análise,
representa a criação de proximidade organizada (Torre e Rallet, 2005) entre
duas organizações ou actores separados no espaço. Tal pode suceder por diversas
vias, em diferentes combinatórias de ecologias de projecto (Grabher, 2004),
envolvendo ou não capital (ver secção 2.1 e também Rychen e Zimmermann, 2008,
para uma descrição mais aprofundada de outros modos de pipelines).
Tal como referido, estes são mecanismos frequentemente utilizados por empresas
globais com o objectivo de adquirir, desenvolver e explorar conhecimento
disperso (Doz et al., 2001). No sentido de maximizar complementaridades, a
inserção na rede tenderá a gerar especialização e divisão de trabalho entre os
parceiros envolvidos, sendo este aliás o móbil principal de grande parte dos
projectos inter-empresariais. Novos esforços de I&D e de aquisição de
conhecimento ao nível da empresa serão reorganizados, tendo em consideração as
competências dos parceiros da rede, na direcção das combinações mais
eficientes. A empresa ou estabelecimento local tenderá a especializar-se nas
suas vantagens comparativas e competências chave, no sentido de tirar o máximo
proveito do acesso aos recursos da rede global (Kogut e Zander, 2003).
Como resultado, uma empresa (ou um nó de uma rede global) tenderá a
especializar-se em certas actividades, e a sua base de competências registará
alterações dinâmicas (Zollo e Winter, 2002): certas competências poderão ser
canalizadas para outros pontos da rede (Cassiolato e Lastres, 2000), outras
competências poderão surgir e outras ainda ser reforçadas[vi]. De acordo com a
literatura evolucionista (Nelson e Winter, 1982), está em causa um processo de
mudança e redistribuição de rotinas empresariais, em resultado de um processo
de selecção (de conhecimento, de parceiros) e de retenção (de novas rotinas
numa unidade empresarial).
2. Dinâmicas nas redes de inovação regionais
Uma vez alterada a combinatória de competências e especialização tecnológica da
empresa ou unidade empresarial são esperados ajustamentos dinâmicos nas suas
redes e relacionamentos regionais, na procura de novos parceiros que
complementem a nova base de competências, reconfigurando o seu eco-sistema
local e regional de conhecimento e inovação[vii]. Estas reconfigurações são
consistentes com o trabalho recente de Hess (2004) e Jones (2008), que
reconhecem a necessidade de uma abordagem que capture a dimensão dinâmica dos
fenómenos de embeddedness, resultantes da actividade dos agentes em diversas
escalas espaciais. Nestes trabalhos, influenciados pelas abordagens
sociológicas actor ' rede (Law e Hassard, 1999), as redes de relacionamentos
(por exemplo, para inovação) são vistas como uma realidade heterogénea,
multidimensional e em mutação frequente[viii].
Assim, em primeiro lugar, são esperadas mudanças quantitativas e qualitativas
na procura de qualificações por parte da empresa, com impactos nos mercados de
trabalho local e regional. Por exemplo, as suas competências podem ser agora
mais intensivas num dado tipo de produto ou serviço, requerendo competências e
qualificações distintas das anteriores. Estas novas qualificações podem vir a
ser encontradas na proximidade, ou numa região mais ampla (eventualmente não
contígua), podendo alargar (ou reduzir) a configuração geográfica da bacia de
emprego de referência. Em segundo lugar, de acordo com o novo perfil de
competências da empresa, esta poderá necessitar de aceder a novas atmosferas
de difusão de conhecimento e de interagir com novos parceiros, ao mesmo tempo
que as competências de anteriores parceiros poderão perder relevância;
simultaneamente, o conhecimento e informação com que a empresa contribui
(competências, especialização, participação em nichos de mercado) são agora
diferentes, com consequências nos tipos de buzze difusão de conhecimento a
nível regional. Finalmente, as novas competências centrais da empresa requerem
novos parceiros complementares, podendo dar origem a novos consórcios e acordos
de I&D, outsourcingde serviços e produção, protocolos de cooperação com
centros de I&D regionais, etc. Van Winden et al.(2008) ilustra este
fenómeno com a evolução dos acordos de investigação de vários centros de
I&D universitários em regiões de transição industrial, como o Norte de
Portugal ou Ruhrarea,na Alemanha ' competências de investigação e acordos de
I&D, por exemplo nos domínios da metalurgia, perderam relevância para novos
consórcios de I&D no domínio dos novos materiais e energia, em função das
novas necessidades de uma base empresarial regional em transformação.
As novas configurações e dinâmicas das redes regionais de conhecimento e
inovação tenderão a determinar fenómenos de abertura de novas pipelines(fig.1),
que podem suceder pelo menos por duas vias. Por um lado, por acção deliberada
de parceiros externos, com o objectivo de aceder às novas dinâmicas localizadas
de conhecimento e inovação, por via de uma dinâmica de fora para dentro; por
outro, pela acção de actores locais procurando complementar a sua nova base de
competências, no sentido de aceder a competências não disponíveis da região, ou
simplesmente, de explorar conhecimento em outros pontos do globo (dinâmica de
busca de dentro para fora).
3. Dinâmicas de co-evolução institucional
De acordo com a leitura evolucionista, a alteração da combinatória de
competências específicas regionais, em linha com Boschma (2004) e Maskell e
Malmberg (2007) vem acompanhada e co-evolui com dinâmicas de mudança
institucional[ix]. A dinamização de pipelinese a emergência de um novo tipo de
actividades e competências regionais impulsiona mudanças i) nos regulamentos e
leis, por exemplo mudanças nos incentivos para a realização de I&D pública
e privada em determinados domínios; ii) nas normas, valores e hábitos, por
exemplo no capital de confiança e interacção entre diferentes actores regionais
e iii) no surgimento (ou adaptação) de organizações de suporte às novas
competências regionais, como novas associações industriais e de
desenvolvimento, parques tecnológicos e serviços de apoio, etc.
Num segundo momento, a presença destas novas instituições e organizações de
suporte torna-se factor de atractividade para o reforço da (nova) base de
competências regional, que evolui dinamizando a atracção de novas redes globais
à região e o reforço de competências das suas empresas e redes. Segundo Maskell
e Malmberg (2007):
“National, regional or local institutions gradually develop over time
in response to the special requirements of the presently dominating
industry and lead to further specialization by creating a favourable
environment for similar and complementary economic activity (…).
Institutional adjustment gradually increases the fit with the chosen
specialization and adds to the performance of the cluster” (p. 614).
IV. O CASO DAS TECNOLOGIAS BI-COMBUSTÍVEL EM SÃO PAULO
A presente secção ilustra o modelo apresentado desdobrando o processo de
desenvolvimento das tecnologias bi-combustível em São Paulo, e consequente
evolução regional em torno desta nova especialização. Este estudo de caso foi
desenvolvido durante o mês de Dezembro de 2007 e faz parte de um estudo
comparativo internacional sobre dinâmicas de 10 clustersde base industrial em
economias desenvolvidas e emergentes (para mais detalhes, ver Van Winden et
al., 2008). Informação qualitativa primária foi recolhida no Estado de São
Paulo, em diferentes cidades, por via de 25 entrevistas aprofundadas e semi-
estruturadas, de duração compreendida entre 60-90 minutos, com directores de
I&D e gerentes de empresas e grupos transnacionais envolvidos na produção e
desenvolvimento destas tecnologias, associações e federações industriais,
centros de I&D e representantes do poder político local e regional. Com
vista a aumentar a fiabilidade, este leque de informação foi complementado com
a análise de informação secundária, nomeadamente informação quantitativa e
qualitativa proveniente de relatórios industriais, trabalhos de investigação
prévia, relatórios de actividades recentes de empresas envolvidas, comunicações
públicas, comunicados de imprensa, etc.
Antes de abordar a ilustração empírica importa fazer uma breve reflexão sobre o
conceito de região utilizado no estudo. O Estado de São Paulo conta
presentemente com cerca de 40 milhões de habitantes, metade dos quais na cidade
e aglomeração metropolitana principal e o restante em torno de concentrações
urbanas mais recentes, a menos de 100 km da cidade principal ' caso de
Campinas-Piracicaba, São José dos Campos e Sorocaba. Um diversificado leque de
actividades industriais distribui-se hoje por estes pólos urbanos. Nas últimas
duas décadas, o sector automóvel paulista desconcentrou-se significativamente
da aglomeração principal em direcção a estes novos centros, que contam hoje não
só com capacidade produtiva instalada, mas também com bases de conhecimento
apreciáveis (centros tecnológicos e de I&D universitários, mão-de-obra
qualificada, etc.). Dado este pano de fundo, tornou-se difícil delimitar à
prioriqual a região relevante para a análise em causa, isto é, o processo
dinâmico de desenvolvimento das tecnologias automóvel bi-combústivel.
Assim sendo, durante o trabalho de terreno associado a este estudo de caso
optou-se por não estabelecer à prioriuma delimitação rígida de região,
questionando os nossos interlocutores sobre os processos de desenvolvimento
recente das suas actividades em São Paulo. O objectivo deste procedimento era
analisar qual a percepção dos entrevistados sobre a região relevante para as
suas estratégias empresariais, projectos e interacções, nomeadamente para troca
de conhecimento e informação. Da análise das entrevistas emergiu de forma clara
a relevância da região constituída pela aglomeração principal e pelas novas
aglomerações urbano-industriais mencionadas. Esta região (não contígua e
radial) concentra o universo dos actores mais relevantes, possui uma elevada
qualificação da mão-de-obra e é abrangida por um quadro macro-institucional
bastante homogéneo, reconhecido como o mais avançado e estruturado do Brasil
(por exemplo leis, regulamentos, incentivos para a Ciência e Tecnologia,
organizações de suporte, etc.). Apesar de existirem algumas diferenças intra-
região (nomeadamente no passado industrial e no activismo sindical), por
simplificação e para efeitos desta ilustração, considera-se esta região não
contígua como unidade relevante de análise ' referida nas secções seguintes
como São Paulo, salvo indicação em contrário.
1. Contexto do estudo de caso
O Estado de São Paulo é o mais importante pólo económico do Brasil,
representando em 2005 cerca de 40% do total do seu VAB ' valor acrescentado
bruto (IBGE, s.d.). A cidade de São Paulo, crescentemente terciarizada,
concentra o maior número de sedesde empresas transnacionais na América Latina.
Nos territórios envolventes encontra-se a base industrial mais diversificada do
Brasil, incluindo sectores de forte conteúdo tecnológico, como a aeronáutica ou
a biotecnologia; mais ainda, é responsável por cerca de 13% do VAB brasileiro
no que toca a commoditiese recursos naturais, como a cana-de-açúcar, laranja,
soja ou café, para além de recursos energéticos como petróleo e gás natural.
A indústria automóvel tem quase um século de história em São Paulo (o Ford T
foi o primeiro automóvel montado em São Paulo e no Brasil, em 1919), e é
presentemente uma das suas indústrias mais dinâmicas. O sector desenvolveu-se
ao longo de diversos ciclos económicos e políticos, passando pela estratégia de
substituição de importações, a partir dos anos 50, até à liberalização dos anos
90, com a redução progressiva de restrições às importações de automóveis e suas
componentes. São Paulo concentra hoje estabelecimentos da grande maioria das
construtoras automóvel multinacionais (OEMs)[x]e seus fornecedores, sendo
destacadamente o maior pólo da indústria automóvel da América Latina.
Simultaneamente, o Estado de São Paulo concentra a maior parte da produção e
transformação de cana de açucar do Brasil, cuja fermentação é famosa por dar
origem ao álcool etanol, reconhecido como o bio-combústivel de maior qualidade
e eficiência energética no globo (OECD, 2008). As primeiras experiências de
automóveis movidos a álcool em São Paulo datam de 1920. Todavia, foi durante os
anos 70, e em resposta ao elevado preço do petróleo e a diversos incentivos
governamentais, que a produção de etanol disparou no Brasil. Em 1986, mais de
90% dos automóveis brasileiros eram movidos a etanol combinado com gasolina
(Teixeira, 2005).
Apesar da crise do álcool do início dos anos 90[xi], que determinou o retorno
à hegemonia do uso da gasolina convencional, os crescentes argumentos verdes
(Brilhante, 1997) e desenvolvimentos tecnológicos recentes trouxeram de volta o
interesse no uso de etanol como alternativa à gasolina convencional. Avanços na
biotecnologia da cana, juntamente com a mecanização do seu corte e a crescente
eficiência energética da sua produção reanimaram o interesse público e privado
no etanol e no seu potencial na substituição, pelo menos parcial, da gasolina.
É da parte dos fornecedores de sistemas automóveis que surge, no virar do
século XX, uma das mais relevantes inovações incentivadoras do uso de etanol em
automóveis. Em 2003 é lançado no Brasil o primeiro automóvel com tecnologia bi-
combustível, isto é, com motor preparado para funcionar a etanol, gasolina ou
qualquer combinação dos dois combustíveis, dando ao consumidor a liberdade de
escolha, nomeadamente em função de flutuações do preço. Em 2007, todas as OEMs
no Brasil produziam carros com esta tecnologia, totalizando 63 modelos
diferentes (ANFAVEA, 2008). O quadro I ilustra o aumento exponencial da
produção e adopção deste tipo de veículos no Brasil nos últimos anos,
aproximando-se actualmente da totalidade dos automóveis produzidos, deduzidos
das exportações.
Quadro I ' Veículos automóveis produzidos no Brasil 1979-2007: motor a etanol,
bi-combustível e total; milhares, anos seleccionados.
Table I ' Car manufacturing in Brazil, 1979-2007: ethanol, flex-fuel and total;
thousands, selected years.
Nas secções seguintes, de acordo com o modelo detalhado na secção III,
desdobra-se o processo evolutivo de desenvolvimento das tecnologias automóvel
bi-combustível em São Paulo e o seu nexo global-local, nomeadamente no que toca
ao acesso a plataformas globais de conhecimento (IV.2), especialização intra-
empresarial (IV.3.1), dinâmicas nas redes de inovação regionais (IV.3.2) e co-
evolução institucional (IV.3.3).
2. O desenvolvimento das tecnologias flex-fuelno quadro de plataformas globais
de conhecimento e inovação ' pipelines
Após a liberalização dos anos 90, OEMs e respectivos fornecedores investiram no
aumento de capacidade produtiva e na modernização dos seus processos em
diferentes aglomerações urbanas do Estado de São Paulo, quer entrantes
transnacionais, quer empresas incumbentes (Mariotto, 2003). Tal como sugere a
figura 2, este processo levou a alterações significativas da estrutura de
capital no seio da indústria automóvel a operar em São Paulo, e no Brasil em
geral (Shapiro, 1996). Tal sucedeu por via de diversas operações de take-overde
empresas nacionais por grupos europeus e americanos, joint-ventures,
investimentos de raiz de grupos transnacionais, bem como de falências de
empresas incumbentes.
Fig. 2 ' Fornecedores de componentes automóvel no Brasil, por origem do
capital, %.
Fig. 2 ' Automotive suppliers in Brazil, by origin of capital, %.
Estes movimentos deram origem a uma estrutura de mercado caracterizada pela
presença de estabelecimentos de grandes grupos transnacionais, a par de outros
fornecedores de capital maioritariamente nacional, mais atomizados e, no geral,
de menor capacidade técnico-financeira. No final dos anos 90 os processos de
inovação localizada por via de interacções à laPorter e interacções de
conhecimento são moderados e limitados à camada de empresas com maiores níveis
de capacidade de absorção. A indústria automóvel em São Paulo, com o objectivo
de servir o mercado brasileiro e latino-americano, explora cada vez mais
tecnologia desenvolvida nas sedese laboratórios de I&D da tríade
(Cassiolato e Lastres, 2000), por via de plataformas tecnológicas globais e de
acesso restrito. As ligações a centros de conhecimento locais como
universidades são praticamente nulas e os processos de co-desenvolvimento entre
fornecedores transnacionais e empresas locais são residuais.
Neste contexto, o processo de desenvolvimento de novos sistemas de injecção de
combustível (tecnologia central dos novos automóveis bi-combustível), entre
meados dos anos 90 e inícios de 2000, surge num quadro de criação de
plataformas globais de conhecimento e inovação ' ou pipelines' de matriz intra-
organizacional, entre engenheiros e departamentos de I&D de grupos
transnacionais espalhados no globo. Os grupos Robert Bosch (matriz alemã) e
Magneti Marelli (matriz italiana) foram pioneiros no registo de patentes,
seguidas da Delphi (matriz norte-americana), fornecendo actualmente toda a
produção automóvel brasileira.
A Robert Bosch do Brasil, em Campinas, beneficiando de investigação prévia
realizada nos laboratórios de I&D nos Estados Unidos, registou a primeira
patente global relacionada com as futuras tecnologias flex-fuelem 1988. Esta
patente, co-desenvolvida por engenheiros brasileiros e americanos, registava a
tecnologia de um sensor capaz de medir concentrações de etanol na gasolina por
via do teor de oxigénio no tanque de combustível. A partir destes esforços, nos
anos seguintes, engenheiros da unidade brasileira desenvolveram e testaram
novos sensores para misturas de etanol e gasolina em equipas de projecto com
engenheiros da matriz alemã ' o objectivo passava por estabilizar parâmetros de
referência, bem como reduzir o custo ainda avultado dos sensores (Teixeira,
2005). Em meados dos anos 90, a Magneti Marelli brasileira (Hortolândia '
Campinas) enceta esforços no sentido de evitar o sistema de sensores físicos,
baseando a sua tecnologia bi-combustível numa configuração de
softwaredirectamente ligada ao sistema de injecção. As inovações associadas
desenvolvem-se através de equipas de projecto com engenheiros italianos e
brasileiros, apesar de grande parte do know-howsobre bio-combustíveis pertencer
já à equipa brasileira.
Durante e após a adopção inicial dos novos sistemas bi-combustível, muitas
outras empresas transnacionais em São Paulo estabeleceram pipelinesglobais de
carácter semelhante (por exemplo diversos projectos de I&D temporários
intra-organizacionais), no sentido de desenvolver tecnologias complementares '
carburadores, tanques anti-corrosão, bombas de combustível, reguladores de
pressão do combustível, filtros, sistemas de arranque a frio, etc.
Assim, encontramos os grupos transnacionais de fornecedores de sistemas
automóvel como iniciadores deste processo de desenvolvimento tecnológico, em
articulação organizacional com outros estabelecimentos globais da corporação.
Importa salientar que este processo é decisivamente facilitado pela presença de
factores locais ' por exemplo, a oferta de engenheiros e técnicos qualificados
em São Paulo desde há várias décadas. Este factor é igualmente facilitador das
dinâmicas regionais descritas nas secções seguintes.
3. Dinâmicas regionais induzidas de conhecimento e inovação
3.1 Dinâmicas empresariais e de especialização
O acesso a redes globais de inovação por parte de diferentes playersdo sector
automóvel em São Paulo, intensificado a partir de meados dos anos 90, gerou
alterações dinâmicas ao nível das suas rotinas e competências. Algumas das
competências anteriores foram sendo esvaziadas para centros de I&D da
tríade (Cassiolato e Lastres, 2000), enquanto outras foram surgindo e outras
reforçadas em função das vantagens relativas de cada unidade empresarial
(incluindo potencial de acesso a conhecimento localizado).
O quadro II ilustra esta realidade, com exemplos de evolução de competências e
esforços de I&D de unidades brasileiras de diferentes tipos de fornecedores
transnacionais de tecnologia automóvel ao longo da última década. Nestes
exemplos existe um denominador comum: crescente especialização em diferentes
pontos das cadeias intra-organizacionais de conhecimento global, associadas a
divisão de trabalho e mudança de rotinas ao nível da unidade empresarial.
Quadro II ' Investimentos em I&D em estabelecimentos locais de empresas
transnacionais (década de 1990 e 2007).
Table II 'R&D investments by the local offices of transnational
corporations (90's and 2007).
Actualmente, vários grupos transnacionais localizam em São Paulo pólos
tecnológicos importantes no seio da sua estratégia empresarial global ' estes
pólos são crescentemente especializados, fazendo com que São Paulo se posicione
como um centro de referência no uso e desenvolvimento de tecnologias ligadas
aos bio-combustíveis. A Robert Bosch de Campinas conta hoje com cerca de 400
engenheiros a trabalhar em bio-combustíveis, no World Competence Centre for the
Development of Conventional and Oxygen Fuel Systems. As suas competências há
uma década eram mais diversificadas, mas bastante menos intensivas em
tecnologia desenvolvida de raiz em São Paulo. A Magneti Marelli, também perto
de Campinas, tem hoje em dia o maior centro de I&D em combustíveis fora da
Europa, estimando um crescimento de 30% até 2010.
Ao longo da última década, as mudanças no perfil de especialização e
competências destas unidades locais têm já reflexo visível na evolução do
padrão de exportações de componentes automóvel. Conforme ilustra o quadro III,
a maioria das componentes e tecnologias associadas aos bio-combústiveis, tais
como motores e sistemas associados, tiveram um crescimento muito mais
significativo do que os outros tipos de produtos ao longo dos últimos anos.
Quadro III ' Principais componentes automóveis exportadas pelo Brasil, 2000-
2006.
Table III ' Main auto parts exported by Brazil, 2000-2006.
3.2 Dinâmicas nas redes de inovação regionais
A especialização de muitos estabelecimentos na envolvente de São Paulo, em
torno de tecnologias e soluções bi-combustível,está associada à emergência na
região de novas parcerias regionais para troca de conhecimento e co-
desenvolvimento de tecnologia. Após a abertura de pipelines, controlada por um
número restrito de actores de dimensão quase exclusivamente transnacional,
começam a ser visíveis interacções relevantes, típicas dos modelos de
aprendizagem e inovação localizada (Maskell, 2001). Todavia, a
embeddednessdestas novas redes pode ser entendida como tendo um carácter
fortemente determinado pela dinâmica de agentes individuais, actuando em
escalas espaciais diferentes, e não propriamente vinculados a uma estrutura
espacial de contactos e relações (Hess, 2004; Jones, 2008), que apenas
recentemente começa a emergir.
Alguns exemplos ajudam a ilustrar o fenómeno. A TI Automotive do Brasil,
especialista em sistemas de distribuição de combustível, com três unidades no
Estado de São Paulo, trabalha conjuntamente com a Ford para ajustar as
especificações dos seus sistemas e tanques de combustível aos requerimentos do
etanol e, cada vez mais, de diferentes modalidades de bio-diesel. A Magneti
Marelli passou a organizar em 2006 uma plataforma tecnológica com 13
fornecedores brasileiros (na maioria localizados em São Paulo) para a sua linha
de montagem de bicos injectores de combustível, um dos seus produtos de mais
elevada tecnologia aos quais é dada a possibilidade de fornecer outros
estabelecimentos da Magneti Marelli nos Estados Unidos.
Noutras situações são os produtores de bio-combustíveis que dinamizam projectos
locais de desenvolvimento tecnológico, testes de combustíveis e tecnologia
automóvel. O projecto Mistura 20, por exemplo, associa a Bertin (bio-
combustíveis) com a Volkswagen bus, a Robert Bosch e a Cummins Engine Company
(empresa americana especializada em motores a diesel) para testes conjuntos de
qualidade de bio-combustíveis, parâmetros de mistura, bicos injectores e
motores. Por outro lado, iniciativas de cooperação público-privado começam a
surgir entre empresas, universidades e centros públicos de I&D. A título de
exemplo, i) a TI Automotive, o centro de I&D do Ministério da Agricultura
brasileiro e fornecedores locais cooperam para o desenvolvimento de bio-
plásticos anti-corrosão; ii) a Universidade de São Paulo e a de Campinas
associaram-se numa parceria com a Delphi para novos desenvolvimentos
tecnológicos ligados ao bi-combustível.
Estes exemplos espelham o surgimento de novos tipos de troca de informação e
conhecimento a nível regional, isto é, novos tipos de buzz, que surgem
praticamente de raiz em torno do ecossistema associado às tecnologias bi-
combustível e bio-combustíveis, como se viu, tomando lugar em escalas espaciais
variáveis e por vezes não contíguas. A estas novas dinâmicas está associado
também um mecanismo de feedbackde abertura e estabelecimento e novas pipelines.
Um exemplo de dentro para fora é o caso da participação de fornecedores
especializados da Magneti Marelli em diferentes plataformas nos Estados Unidos,
para exploração de tecnologias desenvolvidas em São Paulo; na óptica de fora
para dentro são exemplos as diversas ecologias de projecto entre departamentos
de I&D globais temporariamente localizadas entre Brasil e os outros nós das
redes transnacionais, com o objectivo de aceder a conhecimento brasileiro
relativo a tecnologia automóvel bi-combustível (como por exemplo por parte da
Saab ' Suécia, ou da General Motors ' Detroit).
3.3 Dinâmicas de co-evolução institucional
Os processos de abertura de pipelines, especialização e dinamização de novas
redes e atmosferas de troca de conhecimento (localizadas e não localizadas) co-
evoluiram com alterações e adaptação do quadro institucional, a diferentes
níveis. Tendo sido num primeiro momento activadas por processos de agência
(abertura de pipelinese criação de novo conhecimento em grupos transnacionais),
o quadro de instituições e organizações de suporte co-evoluiu no sentido de
suportar e facilitar processos de criação de redes locais e ancoramento de
conhecimento no Estado de São Paulo, hoje uma referência em tecnologia
automóvel relacionada com bio-combustíveis.
No final da década de 90 em São Paulo, no que toca ao quadro institucional de
suporte ao sector automóvel, não existe um sistema de interacções facilitadoras
de trocas de conhecimento e eficiência colectiva entre os actores do sector. As
organizações de suporte são de carácter nacional, ainda que localizadas na
cidade de São Paulo. Apesar da tradição industrial, o capital social é
considerado bastante baixo e as interacções reduzidas. Os incentivos e
regulamentos fiscais para tracção de investimento desfavorecem São Paulo em
relação a outros Estados, e os apoios públicos para a ciência e tecnologia são
organizados a nível Federal e não acessíveis ao sector privado. O factor mais
distintivo face ao resto do Brasil é nesta altura a presença de uma certa
cultura técnica e de uma classe de engenheiros brasileiros activa e organizada,
centrada em São Paulo. A Ordem dos Engenheiros Brasileiros sedeada em São Paulo
é geralmente reconhecida como uma plataforma informal de troca de conhecimento
e desenvolvimentos técnicos, nomeadamente automóvel.
Não é todavia razoável considerar que o quadro macro-institucional de partida
explicou a emergência e os desenvolvimentos tecnológicos em torno das
tecnologias bi-combustível em São Paulo, apesar do contexto de liberalização da
economia brasileira ter permitido e facilitado o processo de abertura a redes
globais de inovação, bem como a oferta de engenheiros qualificados. Os
primeiros fenómenos de co-evolução institucional surgiram em resposta aos
esforços tecnológicos de grupos transnacionais localizados em São Paulo no
desenvolvimento dos primeiros sistemas bi-combustível. Motivado pelo trabalho
em curso nestas ecologias de I&D privada, o Instituto de Pesquisa
Tecnológica de São Paulo (IPT) do Governo Estadual organizou em 1998 um
seminário de grande impacto na difusão do potencial das tecnologias bi-
combustível na indústria automóvel, associando pela primeira vez as OEMs no
desenvolvimento conjunto dos sistemas nos seus motores. Em 2000, a Associação
Brasileira de Produtores de Cana de Açúcar, a petrolífera nacional Petrobrás e
o IPT analisaram os impactos sociais, económicos e ambientais da tecnologia bi-
combustível e, em 2002, o Governo Federal lançou o enquadramento de benefícios
fiscais e incentivos à produção de veículos bi-combustível. Este movimento
convenceu definitivamente as OEMs na adopção da tecnologia, dinamizando todo um
leque de parcerias OEM-fornecedores de sistemas no desenvolvimento de variados
modelos de veículos bi-combustível.
Face ao sucesso da tecnologia e ao posicionamento de São Paulo como hubglobal
(em função da crescente especialização intra-empresarial), o Estado de São
Paulo lançou em 2006 um generoso pacote de incentivos à I&D pública e
privada em variados domínios relacionados com bio-combustíveis e tecnologias
associadas, com destaque para os sistemas bi-combustível. Complementarmente,
lançou um programa de intermediação tecnológica chamado Tec-Days, enquanto
plataforma facilitadora de futuros consórcios entre empresas e centros de
I&D. Por via de alguns destes incentivos, o número de parcerias entre
playersdo sector automóvel, e entre estes e os produtores de bio-combustíveis
tem aumentado, dinamizando novas redes e consórcios de inovação a nível
regional. Não se traduzindo numa política de clustertradicional (Tödtling e
Trippl, 2005), estes incentivos têm contribuído para uma interpenetração de
esforços tecnológicos em formato de plataforma, explorando complementaridades
inter sectoriais e bases de conhecimento relacionadas, contribuindo para a
criação de vantagem comparativa regional (Asheim, Boschma e Cooke, 2008).
O processo de co-evolução institucional, que solidificou e gerou nova
interpenetração entre o sector automóvel e o dos bio-combustíveis, levou
recentemente a investimentos do Estado de São Paulo na infra-estrutura física e
organizacional do pólo de competitividade dos bio-combustíveis, perto da
aglomeração urbana de Campinas. Esta nova infra-estrutura, em desenvolvimento,
agirá como think-tanke facilitador de novas parcerias inter-regionais, para
além de funcionar como suporte a actividades de intermediação e troca de
conhecimento entre os actores envolvidos, estrutura de financiamento de I&D
conjunta e plataforma de suporte à definição de políticas públicas.
V. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Ao longo das secções anteriores, o artigo desdobrou as fundações teóricas de
uma conceptualização de inspiração evolucionista (Boschma e Martin, 2007)
relativa aos processos resultantes da participação de actores locais em redes
globais de conhecimento e inovação. O modelo apresentado foi ilustrado com as
diferentes etapas inter-relacionadas na emergência das tecnologias bi-
combustível em São Paulo, um processo marcado pela inserção dos seus principais
actores em redes globais, intra-organizacionais, de conhecimento e inovação.
As contribuições e argumentos apresentados podem ser sumariados em dois pontos
principais. Em primeiro lugar, a conceptualização apresentada sugere que
algumas micro tendências observadas ao nível da unidade empresarial, como por
exemplo a participação em pipelinesde conhecimento e inovação, ao fazerem
alterar rotinas ao nível da empresa local, podem derivar em processos complexos
de mudança a níveis mais agregados (por exemplo, nas redes de inovação
regionais e quadro institucional), que se desviem das trajectórias prévias de
especialização tecnológica regional ' ou as façam emergir, como no caso das
tecnologias bi-combustível em São Paulo. A apresentação destes mecanismos e a
evidência de suporte contribui para aprofundar a conceptualização de local
buzz-global pipelinesde Bathelt et al.(2004), dando-lhe um carácter mais
dinâmico.
Em segundo lugar, ao trabalhar no interface entre a geografia económica
institucionalista e evolucionista (Boschma e Frenken, 2006), o artigo contribui
para integrar e perceber os fenómenos de co-evolução institucional associados à
emergência de um novo quadro tecnológico. O caso das tecnologias bi-combustível
espelha o processo de emergência de um novo quadro institucional e
organizacional a diferentes escalas, a partir do processo de abertura de
pipelines, encetado pela acção de actores individuais (grupos transnacionais de
sistemas a operar em São Paulo). Os estádios seguintes ilustram claramente um
processo de interacção entre agência e estrutura institucional e organizacional
(Boschma, 2004), no sentido da criação de um círculo virtuoso de especialização
e excelência regional em torno da tecnologia automóvel associada aos bio-
combustíveis, reforçando as competências e cultura técnica da engenharia
paulista em torno destas especializações.
O argumento e a análise avançados neste artigo deixam algumas questões em
aberto. Por um lado, a conceptualização apresentada carece ainda de mecanismos
teóricos de moderação dos processos descritos, que permitam explicar melhor em
que situações será mais provável a ocorrência dos fenómenos descritos, como por
exemplo a especialização em torno de novas rotinas empresariais e a emergência
de novas redes de inovação regionais. Por outro, o artigo sugere implicitamente
dois fenómenos que carecem de conceptualização e validações empíricas mais
aprofundadas. Em primeiro lugar, não existe ainda nem teoria nem testes
empíricos suficientes associados aos fenómenos e impactos resultantes do
cruzamento de dois sectores distintos numa região, como por exemplo as
tecnologias do sector automóvel e bio-combustíveis. Que impactos se podem
esperar do cruzamento de percursos industriais distintos (Martin e Sunley,
2008)? Que tipos de sectores e de conhecimento devem estar presentes para a
geração de percursos virtuosos? Por outras palavras: que tipos de variedade
de bases de conhecimento se podem cruzar com vantagem (Frenken et al., 2007;
Boschma e Iammarino, 2008)? Em segundo lugar, a dimensão espacial concreta na
qual se processam os fenómenos de co-evolução merece uma atenção mais
aprofundada. No caso de São Paulo, os processos observados derivaram em
impactos espaciais intra-regionais ' nomeadamente de redistribuição de activos
de conhecimento e inovação inter aglomerações urbanas (por exemplo, das
concentrações industriais tradicionais de São Paulo metropolitano para
Campinas). Este processo de co-evolução entre dimensões espaciais, empresariais
e organizacionais merece atenção mais aprofundada, e configura consequências
políticas e de gestão urbana e intra-regional relevantes.
Não obstante a especificidade do caso em análise (quer pela sua dimensão quer
pela presença de activos muito específicos, como os bio-combustíveis), a
conceptualização apresentada incorpora implicações relevantes para a formatação
de políticas públicas, nomeadamente a nível regional. Por um lado, alerta para
a necessidade de prestar atenção a micro dinâmicas empresariais e aos efeitos
que estas podem trazer ao nível de estruturas e redes regionais de inovação.
Num contexto em que muitas políticas públicas a nível regional começam a
complementar a implementação de clusterse sistemas de inovação (Doloreux e
Parto, 2005) com o acesso de actores locais a redes globais de conhecimento
(incentivos à internacionalização, estratégias de cooperação, plataformas
internacionais de I&D em redes de excelência, etc.), importa reflectir
sobre os efeitos dinâmicos que se podem esperar da abertura dessas pipelines.
Do mesmo modo que políticas orientadas para o clusterpodem ter efeitos
perversos e gerar lock-in(Todtling e Trippl, 2005), também políticas focadas na
abertura de pipelinespodem gerar efeitos indesejáveis, já que são susceptíveis
de ter impactos ao nível da especialização de empresas locais e redes regionais
de conhecimento e inovação. O caso de São Paulo ilustra impactos positivos da
abertura de pipelines, embora seja possível imaginar casos em que tal fenómeno
provoque o esvaziamento de competências regionais. Por exemplo, em situações em
que a nova especialização empresarial e rotinas resultantes não encontrem
parceiros complementares na região, levando à busca destas competências em
outras regiões e a um afastamento progressivo entre as novas rotinas e a
anterior base empresarial.
Por outro lado, os impactos dinâmicos da participação em pipelinespodem derivar
em novas necessidades de investimentos complementares a nível regional. Por
exemplo, o fenómeno de emergência de uma nova especialização pode implicar
necessidades de desenvolvimento de novas infra-estruturas físicas e
organizacionais para acomodar e promover o seu desenvolvimento, como por
exemplo parques tecnológicos, programas de formação específicos e outros
incentivos financeiros, para I&D em consórcio. Sempre que esta nova
especialização se distancie de outros sectores da base económica regional,
devem ser consideradas iniciativas de intermediação activa (Sverrisson, 2001;
Mesquita, 2007) no sentido de uma evolução regional mais equilibrada e
dinamicamente sustentável.