Seca e crises da água. Questões de ciência, tecnologia e gestão
RECENSãO
Seca e crises da água. Questões de ciência, tecnologia e gestão
Sarah Ferreira1
1 Doutoranda do Programa interuniversitário Território, Risco e Políticas
Públicas oferecido em conjunto pelo instituto de investigação interdisciplinar/
CES da Universidade de Coimbra, pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do
Território/CEG da Universidade de Lisboa, e pelo Departamento de Ambiente e
Ordenamento Universidade da Universidade de Aveiro. Orientação da dissertação
de doutoramento: M. Queirós, IGOT-UL e A. Cézar Leal, UNESP. E-mail:
sarahmalta@ymail.com
O ano de 2013 revelou-se fundamental pela campanha mundial levada a cabo pelas
nações Unidas e Organização Meteorológica Mundial, para a preparação e gestão
do risco de seca. O dia mundial de combate à seca, celebrado em 17 de Junho,
constitui um incentivo simbólico que marca a vontade das instituições
internacionais em apoiar a construção de uma comunidade global preparada para a
seca e resiliente à escassez de água. No contexto destas iniciativas, a difusão
de boas práticas alicerçadas na inovação e no conhecimento científico são
fundamentais, pelo que a divulgação de trabalhos científicos, como o publicado
em 2005 por Donald Wilhite, revelam o compromisso da academia com o estudo do
tema e a ação sobre o mesmo.
O livro
Drought and Water Crises: Science, Technology, and Management Issuesi
é uma obra coletiva editada por Donald A. Wilhite, climatologista fundador do
Centro nacional de Mitigação da seca da Universidade de Nebraska-Lincoln,
centro académico onde exerce a sua atividade desde 1979. Este livro é um dos
frutos desta árdua e longa pesquisa sobre a seca, na busca pelo suprimento de
algumas lacunas do conhecimento sobre este tipo de risco. A obra agrupou uma
série de artigos que retratam estudos e experiências vivenciadas em diferentes
regiões do globo procurando compreender e analisar as complexidades
relacionadas com as ciências, tecnologias e gestão do risco da seca face à
crescente ameaça de crise da água.
A obra é norteada por uma série de perguntas que, para Wilhite, não foram
explicadas nesses anos de estudos sobre a seca, e que podem na sua essência,
ser resumidas através da seguinte questão abrangente: qual a dificuldade em
aplicar os avanços científicos e tecnológicos na gestão efetiva da seca-. No
sentido de contribuir para a minimização desta dificuldade, o livro divide-se
em quatro grandes eixos, apresentando inicialmente uma visão geral da seca com
um enfoque quer no seu contexto natural, como social. Seguidamente discorre
acerca dos progressos e limitações da ciência e tecnologia para a compreensão e
gestão da água e da seca. São depois apresentados alguns estudos de caso, onde
se podem averiguar boas práticas na gestão do risco de seca e, por fim, o
editor integra e conclui os pontos que foram abordados nos diversos artigos
apresentados. O primeiro eixo é composto por um único capítulo escrito pelo
editor em parceria com Buchanan-Smith, que trabalha na ajuda humanitária há
cerca de 20 anos, com grande experiência em operações de minimização dos
impactos da seca. Os autores destacam três fatores diferenciadores da gestão do
risco de seca, são eles: a morosidade dos processos de atuação e difícil
determinação temporal e espacial do fenómeno, a dificuldade na definição de um
conceito universal de seca e sua atuação silenciosa que dificulta ações
precisas e confiáveis para o sistema de aviso e alerta. Estes três pontos
tornam a gestão da seca um desafio maior, pois requer um complexo sistema de
mitigação e resiliência, pautados em estimativas confiáveis para os sistemas de
alerta, assim como numa compreensão das características da vulnerabilidade da
população que vive em áreas com alta probabilidade de ocorrência de desastres
relacionados com a seca.
Na discussão do segundo eixo, há um aprofundamento de metodologias, conceitos
teóricos e técnicas capazes de auxiliar na mitigação dos impactos da seca. é
constituído por oito capítulos, sendo que os três primeiros se debruçam sobre a
temática voltada às questões relacionadas com os avanços e limitações das
ciências meteorológicas e da produção de indicadoresii que auxiliam na detecção
e monitorização da seca. Como Michael et al. afirmam no capítulo três, o
sistema de monitorização da seca ainda está na sua infância e regista-se uma
carência de dados demasiado relevante, dificultando a compreensão do clima
passado e do sistema meteorológico futuro. Assim, estes autores destacam a
necessidade de quebra do atual ciclo hidro-ilógico da águaiii, através da
monitorização da seca e das reservas de água, uma vez que os tomadores de
decisão precisam de tempo e de registos bem documentados sobre secas
anteriores.
Os últimos capítulos deste segundo eixo abordam diversas questões de
planeamento e gestão do risco; o quinto capítulo apresenta dez passos efetuados
por alguns estados norte americanos para tornar as capacidades institucionais
ligadas ao planeamento da seca mais robustas, capazes de gerar planos proativos
da gestão da seca. O capítulo seis mostra alguns exemplos dessa gestão proativa
da seca, através das lições aprendidas na austrália, áfrica do Sul e EUA,
destacando a necessidade do cumprimento de quatro componentes que, segundo
Wilhite e seus colaboradores, são fundamentais para a eficácia na redução de
risco de seca:
(1) a disponibilidade de informação oportuna e fiável para a tomada de
decisões; (2) políticas e arranjos institucionais que estimulem a comunicação,
avaliação e aplicação das informações disponíveis; (3) estruturas de gestão de
risco adequadas, e (4) ações efetivas e consistentes por parte dos decisores.
Este eixo ainda busca abordar a questão da seca e gestão da água na
agricultura. Na sequência, o sétimo capítulo aborda a importância da
conservação da água como instrumento fundamental na mitigação da seca, ao
apresentar alguns métodos de conservação da água como a reparação de vazamentos
e incentivo à diminuição no consumo das atividades da indústria e comércio, ou
um maior controle da evaporação, através de um manejo da irrigação eficiente. O
oitavo capítulo destaca alguns métodos de cultivo e irrigação em áreas secas,
sendo os mais utilizados, a irrigação suplementar, indicada para áreas de
sequeiro onde a carência de água é esporádica, e o aproveitamento de águas
pluviais para os ambientes mais secos.
O capítulo nove busca discutir a vulnerabilidade social à seca, relacionando-
a com os efeitos da mudança climática global, onde se questiona o modo como as
adaptações às alterações climáticas estão a ser efetivadas e se salienta a
necessidade da conexão das fronteiras científicas, multiescalares e
institucionais, o que pode auxiliar o estabelecimento de uma rede policêntrica
que proporcione a equidade e complementaridade no processo de tomada de
decisão. Para Polsky e Cash estas instituições transfronteiriças devem
possuir três características fundamentais: saliência (ser relevante para órgãos
de decisão ou públicos), credibilidade (necessidade de competência técnica,
sustentada por cientistas reconhecidos) e legitimidade (ao atuar de modo justo
no processo de produção de informação, considerando os valores adequados,
preocupações e perspectivas de diferentes atores). Estes três valores, devido à
sua subjetividade, acabam por destacar a percepção que os atores sociais têm
das instituições, e este facto auxilia na efetivação da governança do risco de
seca e em decorrência disto, a minimização da vulnerabilidade das comunidades à
seca, perante as alterações climáticas.
A terceira parte do livro contém quatro estudos de caso que mostram diferentes
ações ligadas às boas práticas na gestão da seca, os dois primeiros capítulos
deste eixo tratam da gestão integrada de bacias hidrográficas transfronteiriças
entre os estados Unidos e o Canadá. O terceiro capítulo do eixo aborda os
métodos utilizados pela China para o desenvolvi- mento de uma política nacional
de combate ao risco da seca. O capítulo seguinte mostra as dificuldades de
absorção das novidades e avanços científicos pelo setor agrícola australiano,
causadas sobretudo pelas limitações do sistema de previsão meteorológica que,
até recentemente, apresentava com frequência lapsos que foram descredibilizando
o sistema de aviso e alerta; isto aliado à barreira relativa à compreensão da
linguagem utilizada na divulgação destes instrumentos, acabou por gerar grande
desconfiança nesta ferramenta por parte dos agricultores. Como último estudo de
caso deste eixo, surge uma análise da política de combate à seca espanhola e
uma crítica à carência de sistemas de previsão meteorológica na região
mediterrânica.
A quarta parte apresenta algumas considerações finais do editor, mostrando que
a atual preocupação com assuntos relacionados com a seca se deve à quantidade
de países e regiões afetadas por este risco e que as políticas para combater as
alterações climáticas dão destaque à necessidade de adaptação às situações de
escassez de água; para o autor, este interesse na compreensão e mitigação dos
efeitos negativos da seca deve-se ao aumento nas últimas décadas dos volumes
financeiros perdidos sobretudo em quebras de colheitas que têm como causa
fundamental a seca. Desse modo há que incentivar medidas proativas de combate à
seca, visto que as tradicionais medidas reativas acabam por mascarar a
importância e necessidade da governança da seca, e as capacidades adaptativas
que a população pode gerar com o envolvimento popular. Mas ressalta que é
necessário continuar a desenvolver ferramentas e a levantar dados para que esta
capacidade adaptativa seja estruturada em bases científicas robustas. Neste
ponto destaca-se a necessidade da criação de um sistema de comunicação capaz de
quebrar as referidas barreiras e introduzir a prática desses novos métodos de
preparação para os períodos de seca; assim, admite-se que a ênfase no combate
aos efeitos negativos da seca está na adaptação doméstica e às falhas no
diálogo entre leigos e técnicos ' grandes obstáculos neste processo.
As considerações finais, tecidas pelo editor, reforçam a complexidade do
problema e a importância do estudo da seca e da escassez de água no cenário
contemporâneo, propósito bem abordado no decorrer do livro que, através de
capítulos independentes mas interligados do ponto de vista temático, contribui
para a discussão sobre os avanços tecnológicos ligados à prevenção da seca e ao
desenvolvimento de políticas públicas, que auxiliem a gestão eficiente deste
risco.
Trata-se de uma obra bastante completa que discute cientificamente o tema do
risco da seca, e que recorre ao conhecimento empírico sobre esta ameaça em
várias partes do mundo, contribuindo inequivocamente para a reflexão e apoio na
resolução dos desafios da seca ' acentuada pela dificuldade na aplicação dos
avanços científicos na gestão da seca e da água ', e fundamental para a
melhoria genuína dos efeitos negativos deste problema complexo concebido pela
carência de água.
D. Wilhite considera a seca como o mais complexo de todos os perigos naturais.
Os progressos lentos no planeamento da preparação para a seca e o fraco
desenvolvimento de políticas nacionais e internacionais de combate e
assistência às crises da água, são um reflexo dessa complexidade. Por estas
razões, a obra revela-se atual e pertinente, às quais acrescem os alertas das
nações Unidas, da Organização Meteorológica Mundial e do IPCC, entre outras,
sobre os aumentos de temperatura e incertezas quanto à quantidade, distribuição
e intensidade de precipitação, frequência, gravidade e duração das secas. O
desenvolvimento de sistemas de alerta precoce e um melhor e mais informado
acompanhamento da seca através de políticas de preparação para a mesma, são uma
necessidade urgente para todos os países e regiões propensos à seca, dados os
seus efeitos devastadores para as populações e as economias.
NOTES
iWilhite D A (2005) Drought and water crises: science, technology, and
management issues. Taylor & Francis, Florida, EUA.
iiTodavia, naquela secção foram analisados alguns dos sistemas de indicadores
de seca mais utilizados nos eUa: o Palmer Drought Severity Index (PDsi), o
Palmer Hydrologic Drought Index (PHDi) e o Surface Water Supply Index (sWsi).
iiiO ciclo hidro-ilógico da seca caminha da época das chuvas (1.ª etapa) que
marca a apatia da gestão pública (2.ª etapa), seguida pelo inicio da estiagem
(3.ª etapa) que ainda carrega consigo fortes indícios de despreocupação pública
até que se toma consciência da seca (4ª etapa), para que, finalmente, haja
interesse na resolução do problema (5.ª etapa) e por fim, gera-se o pânico (6.ª
etapa) que é aliviado com a chuva (1.ª etapa) que retoma o ciclo.