Peregrinação: possibilidades de compreensão crítica de uma experiência
Introdução
A peregrinação conta-se entre o tipo de experiências que, aparentemente, só se
podem entender a partir delas mesmas, ou, talvez melhor, passando por elas. No
limite, dir-se-ia que se alguém quer realmente saber o que é a peregrinação
deveria pôr-se a caminho. Obviamente, este caráter impenetrável da experiência
vem-lhe da sua forte dimensão subjetiva, a qual, precisamente, é posta em
questão pela observação analítica e pela sua inscrição semântica: os sujeitos
dificilmente se reveem nas descrições sociológicas e nas reflexões filosóficas
e teológicas das experiências simbólicas por eles vividas em primeira mão. Mas
a verdade é que estas experiências acabam por receber algum tipo de articulação
expressiva, na qual confluem e, por assim dizer, recebem o seu acabamento. Quer
dizer, é a própria experiência que começa por se descrever e interpretar a si
mesma. Assim sendo, porque deveria ela ser imune à descrição controlada das
ciências humanas, à interpretação metódica da filosofia ou à compreensão
crítica à luz de um referente divino pela teologia? Não se dá a experiência da
peregrinação e dos peregrinos (nas condições concretas que efetivam o próprio
peregrinar) sob o horizonte de um sentido e de um destino a alcançar?
Este estudo pretende inquirir sobre as várias possibilidades de compreensão
crítica da experiência ' humana e religiosa ' da peregrinação. Trata-se,
portanto, de uma reflexão aquém e além de uma pesquisa empírica em torno de
uma peregrinação concreta, mas não extrínseca a ela. Pelo contrário, na medida
em que se detém sobre as polaridades, ruturas e possibilidades de compreensão
crítica da peregrinação, constitui-se naturalmente num novo impulso em ordem ao
estudo ' empírico e reflexivo, quantitativo e qualitativo ' da mesma (e, por
extensão, dos factos religiosos em geral). Por isso mesmo, é importante começar
pela própria experiência da peregrinação.
1. A experiência da peregrinação
A peregrinação consiste numa viagem, motivada pela devoção, a um lugar sagrado.
A devoção religiosa do peregrino parece continuar a ser o que permite
distinguir a peregrinação de outro tipo de viagens, como, na atualidade, o
assim chamado turismo religioso (Tomasi, 2002 e Tidball, 2004).
A peregrinação continua a ser um ato religioso, espontâneo e
voluntário, que consiste em deixar a casa e os hábitos para cumprir
uma promessa, pedir graças ou favores para si mesmo ou para outros,
obter o perdão de faltas graves, esquecer o passado para viver uma
vida nova ou ainda por qualquer outra razão pessoal ou coletiva
(Chélini & Branthomme, 2004: 115-116).
Traços fundamentais da peregrinação são, pois, as motivações do peregrino, o
percurso e o lugar sagrado de destino. Cada peregrinação comporta uma
estrutura essencial: um peregrino que caminha pela estrada; um lugar de chegada
escolhido em razão da sua situação em relação ao sagrado; uma motivação do
peregrino que procura e espera um encontro com uma realidade misteriosa e
invisível (Ries, 2012: 634). Na verdade, os motivos que levam à peregrinação
podem ser os mais variados, como a ação de graças, a veneração e culto de uma
potência sobrenatural ou de uma pessoa santa ou mesmo o regresso às origens da
religião que se professa. Ao peregrinar a Meca, o crente muçulmano cumpre um
dever religioso e um dos pilares do islamismo (Étienne, 1987 e Mahfoud, 2007).
O crente hindu, por sua vez, pode, com a peregrinação, chegar a libertar-se do
ciclo dos nascimentos e das mortes (Scheuer, 2007). No budismo, é exigida a
disciplina do corpo e do espírito e a peregrinação terá tanto mais valor se o
crente se dispuser a receber instrução religiosa (Delahoutre, 1987). No
cristianismo, a peregrinação é recomendada como praxisespiritual e penitencial
(Chelini & Branthomme, 1982 e Delville, 2007).
Se excluirmos o caso do islamismo, ressalta como característica importante o
ato e a decisão voluntária do crente por empreender uma peregrinação, assim
como o fascínio dos lugares sagrados. A peregrinação através de meios de
transportes é um fenómeno recente. Até fins do século XIX, o normal era que a
peregrinação fosse feita a pé. Fortemente marcadas pela experiência individual,
a peregrinação e as dificuldades que esta acarreta contribuem para que se dê
uma mudança, por vezes radical, no indivíduo2 .
O termo experiência está sujeito, naturalmente, a mal entendidos, seja da
parte da mentalidade técnico-científica, seja da parte das religiões. No
primeiro caso, a experiência é entendida no âmbito da construção do saber sobre
o real. Trata-se, portanto, de uma objetivaçãoda realidade. No caso das
religiões, a experiência é invocada como confirmação da sua autenticidade,
acentuando, por isso, o seu caráter subjetivo3 . Há mesmo uma espécie de
mistificação da experiência religiosa, inacessível à ciência, por um lado,
insubstituível para a religião, pelo outro.
O estudo psicológico de Antoine Vergote (1987) salta por cima da alternativa
entre a objetividade requerida pela ciência (neste caso, a psicologia) e a
subjetividade invocada pela religião, para considerar a experiência religiosa
como uma dimensão pertencente à realidade psíquica e, pelo menos,
linguisticamente articulável. A sua definição de experiência é de grande
utilidade, pois não se limita a salvaguardar o caráter imediato do conhecimento
que ela proporciona, nem a considerá-la apenas como uma projeção extrínseca de
significado. Para Vergote, a experiência consiste na conjunção do contacto
imediato e da significação apreendida pela coisa (Vergote, 1987: 112). Deste
modo, a experiência cruza os objetos com a linguagem e o significado, podendo
começar tanto pelos objetos, como pelas ideias que deles se possua. Vergote
respeita assim plenamente a centralidade do sujeito na experiência e a
superação da polaridade subjetividade-objetividade que se verifica no interior
da experiência religiosa. Vergote pretende, ainda, desmistificar a
experiência, aceitando antes a sua normalidade. Não se tratam de visões,
revelações inauditas ou situações de transe, mas de uma possibilidade ligada à
unidade, no ser humano, da afetividade, da linguagem e do sentido. Por isso, a
experiência requer certas condições (psicológicas, culturais e religiosas) e só
quem a ela se dispõe a fará efetivamente (Vergote, 1987:163-167). Através da
afetividade e da expressão do seu conhecimento em sintonia com as significações
religiosas, o homem percebe sensivelmente a presença divina. Não há
raciocínio, nem dedutivo nem indutivo neste momento, mas experiência porque
participação expressiva no que se mostra como sinal de uma presença (Vergote,
1987:154).
A experiência religiosa é tanto gratuita e inesperada quanto o ser humano a
invoca sobre si, prepara, acolhe e nela se implica ativamente. O próprio
Vergote dá-nos uma pista valiosa para entender o papel do rito na experiência
religiosa ao afirmar que o rito é uma ação simbólica pelo corpo e sobre o
corpo (Vergote, 1987: 287)4 . O rito cumpre, portanto, não só com todos os
requisitos para criar um contexto propício à experiência, como, por assim
dizer, para a ampliar através da sua recriação. No peregrinar, temos também
esta implicação corporal ativa (pelo corpo) e passiva (sobre o corpo) como
possibilidade de perceção afetiva de uma presença.
A experiência básica da peregrinação é proporcionada e consiste em caminhar.
Assim, segundo Michel de Meslin, fazer uma peregrinação é antes de mais uma
estrada. Seja qual for a maneira em que esta é feita, é sempre suportada. Ela
torna-se para o peregrino a experiência dos seus próprios limites, do domínio
sobre os seus sofrimentos, que ele aceitou voluntariamente desde o início
(Meslin, 1988: 188). Outros autores referem-se ainda ao efeito libertador da
caminhada ' a passo regular e firme ' sobre a consciência.
Esta libertação do pensamento coroa a obra da marcha, permitindo ao
peregrino encontrar, prosseguir e realizar o seu grande projeto.
Nesta perspetiva, o passo torna-se a marcação decisiva que religa o
espaço ao tempo, o indivíduo aos seus semelhantes e ao cosmos, o
corpo ao espírito, num dinamismo e numa simbiose de vida que inspira
e atrai o infinito (Chélini & Branthomme, 2004: 122).
As novas formas de concretização das peregrinações podem ser consideradas como
reconstruções desta experiência básica, que acentuam a deslocação (viagem) e a
visita (turismo). Também neste sentido as modernas peregrinações ' seculares
ou religiosas ' são experiência (Jan Margry, 2008 e Post, Pieper & van
Uden, 1998) e, tal como Tomasi faz notar, não há nada de deplorável nisso, no
entanto, porque cada época tem a sua própria maneira de se relacionar com o
sagrado (Tomasi, 2002: 20). De facto, o referente fundamental de qualquer
forma de peregrinação continuará a ser a caminhada inspirada e atraída pelo
infinito, espacializado, quer dizer, imanentizado pela confluência, ao longo
dos tempos, dos peregrinos no mesmo lugar sagrado de destino (Dupront, 1987:
365-415 e Ries, 2012: 639-640, o qual considera o simbolismo do centro
essencial para compreender o universo da peregrinação e a sua
universalidade).
2. Polaridades na compreensão da peregrinação
Referindo-se à peregrinação como metáfora essencial do caminho que nos faz
sentir a todos como peregrinos5, na busca da transcendência e na experiência
do magnetismo do lugar sagrado, Natale Terrin afirma:
É necessário, de facto, tomar nota: as duas dimensões do verdadeiro
e do imaginário coexistem de maneira excecional na peregrinação como
talvez em nenhum outro fenómeno e confortam-se mutuamente de modo
polar. Em definitiva, creio que não seria pensável este fenómeno sem
uma consideração da imaginação ativa que reúne o fenómeno do desejo a
uma vontade de visão do sagrado ( ) (Terrin, 1998: 179)6.
Mas esta não é a única polaridade presente na peregrinação e, segundo Wheeler,
a peregrinação deve entender-se não só como experiência antiestrutural da
communitas, mas também da fratura e do conflito. Wheeler esboça, por isso, uma
teoria da confluência. Esta teoria da confluência integra as duas qualidades
de fratura e de corporação da peregrinação (Wheeler, 1999: 27). O conflito e a
communitassão, de facto, constantemente negociados na peregrinação e desta
interrelação é que surge a confluência.
( ) Uma das mais notáveis observações comuns sobre a prática moderna
da peregrinação é que os peregrinos trazem consigo não só as suas
próprias crenças mas também as suas próprias definições de estatuto e
de discurso dominante. As atuais discussões das políticas de
identidade poderiam ensinar-nos que a communitase o conflito são
constantemente negociados; é a sua contínua interrelação que eu
denomino confluência (Wheeler, 1999: 28).
Esta confluência caracteriza os grupos e os indivíduos, definindo o espaço
comum como espaço de encontro, movimento, crítica recíproca e comparticipação
ritual.
Esta noção de espaço comum vai além das noções de base comum' para
integrar a dimensão de movimento; a confluência sugere não só um
lugar a ocupar mas também um caminho a andar. A confluência é uma
forma de compreender o que é comum no espaço comum; ela honra tanto a
divisão como a conexão entre os indivíduos e as suas comunidades mais
amplas. A peregrinação é uma figura paradigmática e um processo de
confluência corporal e espiritual (Wheeler, 1999:29).
Terrin e Wheeler reconhecem a presença de aspetos em tensão na peregrinação,
sugerindo, ainda, a possibilidade da sua conjugação, mas enquanto as
observações de Terrin se situam no terreno hermenêutico-fenomenológico, as
propostas de Wheeler são claramente histórico-sociológicas. Poder-se-á elaborar
uma teoria capaz de acolher este complexo jogo de diferenciações e de
mediações, respeitando não só as várias dimensões em que estas surgem, mas
também as epistemologias (e metodologias) que as diagnosticam? O desafio
consiste, na verdade, em superar uma mera justaposição ou anexação de visões e
resultados diversos que manteria a heterogeneidade entre a antropologia e a
ontologia, o arquetípico universal e os factos sociais particulares, entre a
imaginação ativa e a confluência, mas não saberia, por assim dizer, devolver o
objeto analisado à globalidade da experiência que este proporciona.
3. Rutura epistemológica no estudo da peregrinação
Duas obras recentes, publicadas em Portugal, sobre a peregrinação servirão para
ilustrar as dificuldades que se fazem sentir a nível epistemológico, ou seja,
no âmbito do discurso sobre o conhecimento crítico (das suas possibilidades e
métodos de aquisição) dos factos religiosos. Na primeira obra estuda-se uma
peregrinação concreta, numa modalidade específica ' a peregrinação a pé a
Fátima ' desde o ponto de vista antropológico-cultural. A segunda obra tem um
caráter meditativo e, embora considere alguns aspetos da experiência
antropológica do peregrinar, desenvolve um discurso filosófico (ontológico)
geral. O aspeto epistemológico aqui em questão consiste na ruturaque estas
opções divergentes provocam no próprio objeto de estudo, pois, para além das
exigências e características próprias de cada método (antropológico ou
filosófico), é preciso salvaguardar a realidade em questão (a qual,
naturalmente, é prévia ao método da sua análise). A exterioridade
antropológica da peregrinação, por um lado, e a sua interioridade ontológica,
pelo outro, não deveriam aparecer como dimensões estranhas uma à outra, mas sim
convergir na compreensão crítica deste facto social que é também uma
experiência religiosa e teológica7 .
a) Um_estudo_antropológico
O estudo de Pedro Pereira (2003) situa-se no campo da antropologia e, em grande
medida, assume como objetivo a comprovação das teses de Victor e Edith Turner
sobre a peregrinação. Estes autores reconhecem nas peregrinações um tipo
característico de liminaridade, com paralelo só nos rituais de iniciação. O
que caracteriza os fenómenos liminares é a presença da communitas, que se opõe
à societas. Se esta representa a estrutura, a communitassurge como a
antiestrutura. Nos ritos de iniciação, a passagem pela communitasé efémera
mas revitalizadora, pois uma vez reintroduzido na sociedade, o indivíduo está
reforçado pela experiência da communitas. O jogo a sublinhar é o que se dá
entre a separação, isto é, a situação liminar que constitui a communitas, e a
reintrodução na estrutura do grupo social. A peregrinação representa,
precisamente, este sair para regressar, mas para regressar diferente,
transformado (Turner & Turner, 1978, em particular, o primeiro capítulo:
Pilgrimage as a Liminoid Phenomenon, 1-39, e ainda Turner, 1973 e 1974).
Tendo este fundo teórico em conta, Pedro Pereira, estuda a peregrinação a pé a
Fátima desde o interior (metodologia da observação participante), mas fazendo
emergir os seus aspetos externos, desde a organização dos grupos, a sua
liderança, o dia a dia, a comunicação e a cooperação, até à chegada ao
Santuário, com a qual a peregrinação se encerra. Para ele, os três traços
fundamentais do fenómeno religioso peregrinação são: as motivações para encetar
a viagem, o próprio percurso e o lugar sagrado (Pereira, 2003: 44). É de
salientar que, na ordem das motivações, a peregrinação em causa é quase sempre
a consequência de uma promessa feita anteriormente (Pereira, 2003: 85). Esta
promessa é descrita como um contrato: é o promitente que escolhe a entidade
sobrenatural e que estabelece as condições do contrato, e se o ser sobrenatural
não cumprir a sua parte, o promitente também não cumpre a sua (Pereira, 2003:
88)8 .
A relativização da tese da communitasna peregrinação vem da constatação de que
a formação de grupos de peregrinos se subordina ao caráter individual da
peregrinação, imposto pela promessa. Dificilmente um peregrino ajuda outro, se
essa ajuda puser em causa a sua chegada a Fátima (Pereira, 2003: 130). O grupo
é um meio útil para atenuar as dificuldades. É mesmo paradoxal que o sofrimento
seja a condição fundamental da promessa (e mesmo a experiência mais marcante da
peregrinação9 ) e que a constituição de grupos se deva, apenas, à tentativa de
atenuar esses sofrimentos.
b) Um_estudo_filosófico
Se a descrição de Pedro Pereira atinge o coração da ideia de communitas, já
para Silva Lima (2007) é na imersão no coletivo comunitário que se joga a
própria identidade do peregrino.
Se ao longo do caminho se vislumbram significados retalhados ou
fragmentos de significação, o percurso adquire uma significação cabal
e total a partir do fim, do cumprimento pleno, onde cada indivíduo
toca as raízes de uma identidade, coroando os seus esforços na
presença da comunidade; ( ) (Lima, 2007:14-15).
O aspeto comunitário é imediatamente lançado para o âmbito ontológico. Um tal
coroamento adquire algum estatuto mediador, aparecendo como um outro nome da
transcendência inominável e da sua radical diferença (Lima, 2007: 15). Para
este autor, peregrinar pertence ao âmago do ser (Lima, 2007: 19)10 . A
peregrinação torna-se assim um tema hermenêutico na compreensão da estrutura
fundamental do ser humano: ser de visita e de visitação11 , ser de pé,
caminhando em direção ao futuro, a pé.
A humanidade, na textura do seu desenvolvimento e evolução, reflete
uma caminhada para fora na qual se realiza, processo que comporta uma
dimensão de verticalidade. É de péque cada homem ou mulher caminha
para mais, num projeto sempre novo que o vincula ao futuro (Lima,
2007: 55).
A leitura cruzada da descrição antropológica e da contemplação ontológica da
peregrinação põe em questão o próprio facto religioso sobre o qual se reflete.
Não há qualquer possibilidade de relação entre a ontologia do pé e as bolhas
nos pés que cada peregrino tem que limpar cada dia, após a caminhada. Mas,
desta forma, é a própria experiência que os peregrinos fazem da peregrinação,
ao dar-lhe existência concreta, que se perde e se anula como objeto de
investigação. Atrever-me-ia a dizer que nesta dialética é que se joga o destino
dos estudos religiosos, na confluência do que é factual e possível de descrever
analiticamente e do que é ideal, ontologicamente contemplável.
4. Outras possibilidades
Para além da descrição sócio-antropológica e da meditação filosófico-
ontológica, podemos considerar, ainda, uma aproximação de tipo psicoanalítico
(a peregrinação como arquétipo) e uma outra de tipo literário (a peregrinação
como narração).
a) Peregrinação_como_arquétipo
Jean Dalby Clift e Wallace B. Clift consideram a peregrinação desde o ponto de
vista da teoria dos arquétipos elaborada por Jung. Neste sentido, a
peregrinação seria como que a reemergência desses depósitos das experiências
constantemente repetidas da humanidade que são os arquétipos, verdadeiros
tesouros que se transformam em fonte de vida, sentido e beleza (Clift &
Clift, 1996: 10-11). Esta visão conjuga-se com uma compreensão do símbolo como
participação na realidade para a qual aponta; donde que o rito atualizador do
arquétipo se possa descrever como um comportamento simbólico, conscientemente
representado (performed). De facto, no rito, cada movimento torna-se um
símbolo-em-ação que faz aparecer o poder do mundo interior numa forma visível e
física (Clift & Clift, 1996: 15). Os autores pretendem, assim, não só
elaborar um marco formal e conceptual adequado à experiência da peregrinação,
na sua diversificada continuidade religiosa, social e cultural, mas também
integrar aí a interioridade dessa experiência. É este o motivo pelo qual se
socorrem da teoria dos arquétipos de Jung.
Com uma compreensão de como os símbolos e os ritos falam ao
inconsciente, é possível uma nova valorização do fenómeno da
peregrinação. Pode começar-se por discernir a sua profundidade
arquetípica. Ao olhar para a peregrinação a tendência ' natural para
a cultura ocidental ' é concretizara prática externa, mais do que
deixá-la habilitar a ver através' da exterioridade a realidade
interna (Clift & Clift, 1996: 17).
Neste sentido, enquanto modelo estrutural, a peregrinação visa o crescimento
interior e o desenvolvimento da pessoa, ampliando a personalidade e a visão do
mundo e transformando a pessoa através do contato com algo que a transcende
(Clift & Clift, 1996: 20)12 . O arquétipo da peregrinação encontra-se nas
religiões, mas também noutros tipos de viagem. Num sentido amplo, a
peregrinação é qualquer viagem cujos destinos sejam lugares reconhecidos pelo
seu grande valor e capazes de o representar (Clift & Clift, 1996: 24). Os
autores incluem, portanto, na sua análise, lugares puramente seculares e, para
além da busca do sagrado, reconhecem muitos outros motivos pessoais para se
fazer uma peregrinação. Mas o que distingue o peregrino do viajante e do
turista é a sua capacidade para relacionar a experiência com um mais amplo
marco de sentido (Clift & Clift, 1996: 75). Assim, da peregrinação faz
parte a experiência do abandono(deixar algo para trás) e do dom(patente no
levar algo consigo no regresso a casa), sob o sentido de uma presença(no lugar
visitado) (Clift & Clift, 1996: 77, 81-2). A peregrinação caracteriza-se,
ainda, pelas dificuldades de acessoque expressam, a nível do inconsciente, o
crescimento envolvido em qualquer mudança na vida, a saída do lugar que se
ocupa; por vestuário distintivoindicando a forma como lidamos connosco mesmos e
com os outros; e por rituais, normalmente de purificação com água, que
simbolizam frescura e renovação (Clift & Clift, 1996: 69-73). O sentido
profundo da peregrinação liga-se, contudo, segundo os autores, à numinosidade
emocional dos arquétipos, donde deriva o seu poder transformador,
correspondente à necessidade humana básica de ligação (Clift & Clift, 1996:
151-2), à dimensão ritual, expressada no tocar das relíquias e das imagens, na
circumambulação do templo; no chamar a atenção ' ou despertar ' dos deuses;
na união simbólica e coletiva, e, finalmente, na narração da história do lugar
(Clift & Clift, 1996: 158-9), à qual se une a imaginação e a experiência do
próprio peregrino. Esta referência conduz-nos a outra possibilidade de
abordagem.
b) Peregrinação_como_narração
A peregrinação foi, ao longo dos tempos, não só uma ocasião para narrações,
como se pode conceber até como uma peculiar forma de escrita. A peregrinação
pode ser vista, segundo Coleman (2003), desde o ponto de vista da interação
entre pessoas, lugares e textos, nas tensões e complementaridades entre as
narrações orais e escritas; e, ainda, na sua relação com a viagem, na
ambiguidade entre relatos de peregrinação e de viagem.
Enquanto texto/narração, a peregrinação constitui, na verdade, um
reconhecimento textual de uma espécie de imanência do sagrado e aí reside a sua
capacidade atrativa, convidando novos viajantes/peregrinos a visitar os mesmos
lugares. Quer dizer, é o mundo da palavra falada e escrita que constrói a
ontologia do sagrado e a sua epistemologia como algo a ser aproximado e
alcançado (Coleman, 2003: 4). Por outro lado, a própria narração da viagem/
peregrinação passa a pertencer ao regresso do peregrino ao seu ambiente
quotidiano. Esta narração é seletiva e interpretativa, ajudando a construir a
figura do peregrino. Este poder da narração da peregrinação pode originar
tensões em relação à experiência que a origina. O relato desta experiência pode
ser obrigado a assumir uma outra forma, muito diferente dos requisitos
espirituais da peregrinação. De qualquer modo, uma vez que o evento teofânico
originário é recontado, pode orientar as posteriores perceções dos peregrinos
sobre um determinado lugar, assim como proporcionar muita da motivação para as
suas viagens (Coleman, 2003: 6).
Outro aspeto prende-se com a leitura das escrituras sagradas. Nos lugares de
peregrinação leem-se, normalmente, os passos referentes a esse mesmo local, o
que dá lugar a uma justaposição entre o texto canónico e a experiência pessoal
do peregrino. A peregrinação pode, portanto, criar um contexto novo para a
apropriação e compreensão das escrituras sagradas por parte dos crentes
peregrinos.
5. Avaliação à luz da questão da busca espiritual
Uma avaliação das várias possibilidades de abordagem da peregrinação como
experiência humana e religiosa, com a finalidade de reconciliar a experiência
subjetiva do peregrino com a objetivação do pesquisador, não pode esquivar-se a
um momento de avaliação à luz, precisamente, das transformações e recomposições
do religioso na atualidade. O campo religioso caracteriza-se, hoje, pelo
enfraquecimento institucional, por um lado, e pela busca do espiritual, pelo
outro (Heelas & Woodhead, 2005). Mas não se pode identificar o
instituticional com objetivo, nem o espiritual com subjetivo. Isso levaria ao
descrédito da perspetiva de análise ' antropológica, sociológica ou teólogica '
escolhida. A busca espiritual dos Novos Movimentos Religiosos, mas presente,
também, nas religiões históricas nas suas tentativas de recontextualização,
também pode ser objetivada, isto é, submetida à explicação, do mesmo modo que
os aspetos institucionais ' ritos, doutrinas e hierarquias ' das religiões
sempre sofreram processos subjetivos de apropriação e de compreensão
hermenêutica. A história das peregrinações religiosas comprova este segundo
aspeto. Uma abordagem integral como a que propomos neste artigo deve, portanto,
defender-se da rutura epistemológica em nome da complexidade da experiência '
subjetiva e objetiva ' da peregrinação. Para avaliar a pertinência desta
proposta tendo em conta a questão das novas espiritualidades no quadro da
modernidade e do individualismo contemporâneos, teremos em conta o estudo de
Justine Digance e Carole M. Cusack (2001) sobre as peregrinações seculares.
As autoras colocam os eventos a que chamam de peregrinações seculares no
contexto de um processo de ressacralisação do mundo em que o religioso tende
a ser substituído por equivalentes privados, individuais e não-regulados
(Digance & Cusack, 2001: 217). Por isso, tanto o Druid Gorsedd (Ordem dos
Druidas) como o Stargate Alignmentsão considerados como autênticas
peregrinações. Na verdade, tocamos aqui os limites da própria abordagem: na
pressa de encontrar símbolos subjetivamente equivalentes às instituições que as
ciências humanas se habituaram a objetivar como religião, mas que agora devem
enquadrar no já mencionado processo de ressacralisação não religiosa e não
institucional do mundo, as autoras oferecem-nos um verdadeiro paradoxo:
pretendem analisar um substituto não-regulado de uma realidade religiosa
projetando sobre ele categorias religiosas tradicionais. As autoras são
conduzidas a isto por influência dos próprios sujeitos que falam de uma busca
espiritual (Digance & Cusack, 2001: 222 e 225). As autoras apresentam,
brevemente, o contexto histórico dos eventos, sem suspeitar de um processo de
institucionalisação de um Novo Movimento Religioso, com as suas regras,
rituais, doutrinas e sacerdotes (neste caso, a Ordem dos Druidas e a Earth Link
Mission, respetivamente). Assim, os Novos Movimentos Religiosos são conotados
com a busca espiritual, enquanto as religiões históricas, como o
cristianismo, são conotadas com a cristalização institucional.
Este jogo de dicotomias (espiritual-institucional, subjetivo-objetivo) não
permite ver a confluência, para retomar a noção de Wheeler, mas apenas
acommunitas. De facto, as autoras assumem as perspetivas turnerianas, sem se
darem conta daquilo que fica por explicar nos eventos descritos. Tanto o Druid
Gorseddcomo o Stargate Alignmentparecem demonstrar a prevalência da communitase
a presença do lúdico.
O Gorsedde os dois Stargate Alignments, que representaram um ato
de fé' para os participantes, caracterizaram-se por outros elementos
que seriam de se esperar na tradicional peregrinação religiosa. Mais
importante, a communitasturneriana e um sentimento do lúdico
tornaram-se evidentes nos eventos (Digance & Cusack, 2001: 219;
cf. ainda 222 e 225).
O problema em relação à communitasé a dificuldade em perceber indícios de
conflito e rutura, por exemplo no fato de a maior parte dos participantes serem
first timers(Digance & Cusack, 2001: 226). O que aconteceu com as pessoas
que participaram noutras peregrinações de busca espiritual? Uma só peregrinação
foi suficiente para as suas necessidades ou algo as fez renunciar à repetição
da experiência? Como tudo é lido no fluxo sempre em movimento da recomposição
religiosa segundo as necessidades individuais do momento, não se percebem os
possíveis conflitos internos inerentes a um processo de institucionalização em
curso. Todos os aspetos que não pertencem à communitassão remetidos para a
categoria do lúdico ou simplesmente indicados como outras características:
rituais mágicos, consagração do lugar, oferendas (comida, pão, flores),
comensalidade (Digance & Cusack, 2001: 222-223 e 225). Particularmente
relevantes, neste sentido, são as características que ligam estes eventos ao
cósmico e ao natural, com evidentes pontos de contatos com a ecologia (Digance
& Cusack, 2001: 224, onde as autoras reportam a ideia de que, com a sua
meditação, os membros da Earth Link Mission estão a salvar a terra da
destruição). A possibilidade de uma mediação lúdico-religiosa politicamente
responsável em relação às preocupações ecológico-ambientais não é, sequer,
levantada.
O nosso objetivo, com estas observações críticas, não é tanto evidenciar as
carências do modelo turneriano, quanto a deformação causada pela contaminação
das teorias da recomposição religiosa pela rutura epistemológica que está na
origem das dicotomias espiritual versusinstitucional, subjetivo versusobjetivo,
e, ainda, da homologação do institucional ao objetivo e do espiritual ao
subjetivo. Desta forma, propostas analíticas como as de Digance e Cusack acabam
por sucumbir à subjetividade da busca espiritual pós-moderna, apresentando-se,
no entanto, como formas de objetividade sociológicas. As demais propostas
apresentadas neste estudo expõem-se ao mesmo perigo. Isto sugere a necessidade
da elaboração de um método integral, a partir de uma epistemologia do encontro
e do diálogo de abordagens diferenciadas, de forma a cruzar e a interpenetrar
constantemente a subjetividade religiosa com a objetividade científica ou, se
preferirmos, a compreensão teológica com a explicação sócio- antropológica
(Cardita, 2011).
Conclusão
A diversidade de perspetivas e métodos de análise dos factos religiosos não é
uma fatalidade. Pelo contrário, a consciência desta diversidade pode ajudar a
percebê- los melhor e a afinar a nossa própria compreensão dos mesmos. O que
não se pode fazer é tentar ignorar essa diversidade ou, ainda pior, ocultá-la
sob a capa da cientificidade ou da autenticidade da fé. A tentativa de
conciliação dos vários métodos não implica qualquer deficiência nos mesmos, nem
respeita, diretamente, à sua aplicação, mas quando o mesmo (ou análogo) objeto
de estudo é desfigurado pela sua diferenciação, então torna-se necessário rever
os seus pressupostos. A peregrinação da antropologia é muito diferente da
peregrinação da filosofia; a peregrinação como arquétipo supõe uma
metodologia e uma epistemologia diversa da peregrinação como narração. O
problema é que, radicalizando esta diferença epistemológica, perde-se a própria
experiência da peregrinação como tal. Qualquer aproximação é, por natureza,
incompleta, devendo, por isso, abrir-se a outras possibilidades a partir do
reconhecimento do caráter originário (anterior a qualquer objetivação) da
experiência religiosa.
Notas
1 Faculté de Théologie et de Sciences Religieuses, Université Laval (Quebec,
Canadá). E-mail angelo.cardita.1@ulaval.ca e
angelocardita@gmail.com
2 Esta é uma das características que faz com que Danielle Hervieu-Léger (1999)
interprete o sujeito religioso pós-moderno sob a figura do convertido e do
peregrino.
3 O que é paradoxal neste uso moderno da experiência na religião é que,
acentuando a subjetividade como prova de autenticidade, assume-se, ao mesmo
tempo, o modelo objetivo da experiência.
4 Tenha-se presente, ainda, que, segundo o autor, o rito é uma ação que tem
por intenção transformar o sinal em presença operante do significado do sinal
(Vergote, 1987: 283).
5 Filorano fala, por sua vez, numa metamorfose metafórica que transforma a
peregrinação numa viagem interior (Filorano, 2004: 250) e, para Meslin, a
peregrinação é antes de mais uma peregrinação de interioridade (Meslin, 1988:
189).
6 Giovanni Filorano reconhece também dois aspetos complementares na
peregrinação que ele refere como a sua peculiar lógica sacral e os seus
condicionalismos externos (Filorano, 2004: 256).
7 A peregrinação é o símbolo do regresso a Deus que criou o universo
(Étienne, 1987: 377). Escapa a este artigo a elaboração explícita de um esquema
hermenêutico de entendimento e de prática da interdisciplinaridade entre as
ciências humanas e a teologia. Para uma reflexão inicial sobre esta
problemática ver Cardita, 2011.
8 O autor explica: Quando questionava os promitentes do meu grupo e outros,
sobre a entidade à qual fizeram a promessa, todos referiam que pediram à Nossa
Senhora de Fátima para lhes conceder uma graçae nunca mencionaram que seria
para Esta interceder junto de Deus; mais do que isso, a própria peregrinação a
pé a Fátima é a forma de agradecer a Esta a graçaque Ela realizou (Pereira,
2003: 88).
9 A peregrinação a pé permite a boa parte dos peregrinos sentirem os seus
limites, quer físicos, quer psicológicos. Mas é essencialmente o sofrimento do
corpo que deixa uma impressão mais duradoura nos peregrinos (Pereira, 2003:
147).
10 A peregrinação devolve a lição de que ainda não se é tudo e que alguma
plenitude alcançada não é ponto final (Lima, 2007: 37).
11 A visita de que (cada ser humano) é alvo e que o faz ser, tornando-
o visitante também, supõe o visitantedas origens (Lima, 2007: 64).
12 O arquétipo tem uma forma (shape) que conduz a um sentido profundo, mas tem
também uma zona sombria, onde reside a possibilidade de perversão (motivando as
críticas, entre outros, de Lutero e dos reformadores, à luz do ideal da
peregrinação espiritual). Preconceitos religiosos, nacionais, étnicos, mas
também idolatria, comércio, fetichismo (relíquias) são, portanto, alguns dos
aspetos negativos que o reconhecimento de uma intenção de entrar em contacto
com o transcendente não pode ocultar.