Evolução recente da situação social no Brasil
Evolução recente da situação social no Brasil
Ladislau Dowbor
Em 2006, a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou que o
governo dispunha de forte aprovação dos segmentos mais pobres, mas foi apenas
com o atraso natural dos processos de pesquisas que surgiram os números reais
sobre a evolução das condições de vida do brasileiro. Recentemente, o IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou a Pesquisa Nacional
por Amostras de Domicílio (PNAD) de 2006 e a Síntese dos Indicadores Sociais
1996-2006, um balanço dos últimos 10 anos. A imagem que emerge daí é
relativamente clara e vale a pena ser analisada. Ela pode explicar não apenas
os votos da última eleição como apontar o caminho que temos pela frente.
O dado que mais salta aos olhos é a criação de 8,7 milhões de postos de
trabalho durante a primeira gestão de Lula. Isto representa um avanço imenso
para um país em que grande parte da população se vê excluída do direito de
contribuir com o desenvolvimento geral. Entre 2005 e 2006, este avanço foi
ainda mais expressivo: 2,1 milhões de pessoas entraram no mercado de trabalho,
um aumento de 2,4%. O destaque foi a expansão do emprego entre as mulheres, que
registrou crescimento de 3,3,%. Entre os homens, o aumento foi de 1,8%. A
formalização também foi significativa: três em cada cinco postos de trabalho
criados tinham carteira assinada. No total, 30,1 milhões de trabalhadores foram
contratados com carteira assinada em 2006, um aumento de 4,7% em um ano.
Apesar do progresso apresentado, o quadro continua dramático. Como apontou o
IBGE, «[no período analisado], mais da metade da população ocupada ' 49,1
milhões de pessoas ' continuava formada por trabalhadores sem carteira
assinada, por conta própria ou sem remuneração»1.
O segundo resultado que mais chamou a atenção foi a elevação em 7,2% dos
rendimentos dos trabalhadores entre 2005 e 2006. O dado, que ocupou as
manchetes de todos os jornais, manteve coerência com os dos anos anteriores:
desde 2003, a remuneração vem desenhando uma curva ascendente. Considerando que
a desigualdade é nosso maior problema, tal índice demonstra melhoria efetiva
nesse aspecto da vida dos brasileiros. O número é um reflexo direto dos avanços
na criação de postos de trabalho e do aumento do salário mínimo, que teve um
ganho real de 13,3% em 2006. Segundo analistas do PED (Pesquisa de Emprego e
Desemprego), 26 milhões de trabalhadores teriam sido favorecidos pelo aumento.
Além disso, como o salário mínimo é referência para o reajuste das
aposentadorias, outros 16 milhões provavelmente foram beneficiados.
Tudo isso representa um grande salto para os trabalhadores que estão na base da
pirâmide econômica. Afinal, um aumento de 100 reais para uma família que tem
rendimento de 10 000 reais não é muito significativo. Mas 100 reais para
pessoas que têm de sobreviver com pouco mais do que isso por mês representa
alívio imenso e torna-se um diferencial na hora de comprar um alimento melhor
ou um medicamento necessário.
Outro ponto interessante é a avaliação dos rendimentos. Desta vez, a PNAD
utilizou o domicílio como referência e não somente o trabalhador. Esse método
permitiu agregar todas as fontes de renda da família e apresentou como
resultado um aumento da renda média domiciliar de 5% em 2005 e de 7,6% em 2006.
É bom lembrar, para quem tem menos intimidade com este tipo de números, que um
aumento de 7% ao ano significa que o rendimento dobra a cada dez anos.
Detalhando a cifra acima, vemos que no Sudeste a renda do trabalhador cresceu
6,6% e no Nordeste subiu 12,1%. O mesmo acontece no rendimento por domicílio:
no Sul e no Sudeste o crescimento foi de 7% e no Nordeste chegou a 11,7%. Além
disso, o rendimento domiciliar médio nordestino correspondia, em 2005, a 52,8%
do rendimento do Sudeste e, em 2006, passou a ser 57,8%. Ou seja, não só
melhorou o conjunto, como houve um crescimento acelerado na região mais
atrasada, cujo avanço é essencial para reequilibrar o cenário nacional. Em
outros termos, pela primeira vez a desigualdade regional está sendo corrigida.
E com números significativos, apesar de insuficientes. A diferença também está
diminuindo entre homens e mulheres. Elas já representam 47,7% das 90 milhões de
pessoas ocupadas hoje no país e os dados das pesquisas apontam um aumento
salarial considerável. A remuneração da mulher relativamente ao homem era de
58,7% em 1996, 63,5% em 2004, 64,4% em 2005 e 65,6% em 2006.
Nota-se uma lenta progressão, partindo de um nível que já é em si extremamente
desigual. Ou seja, aqui também a direção é positiva, mas precisamos de muito
mais.
Ao mesmo tempo, constatamos, com satisfação, que as mulheres estão progredindo
rapidamente nos estudos. Segundo a PNAD, 43,5% delas concluíram o ensino médio,
enquanto apenas um terço dos homens possui este grau de instrução. O ensino
superior também está mais feminino: em 1996 elas representavam 55,3% dos
estudantes e em 2006 eram 57,5%.
Porém, a situação da mulher é particularmente dura quando se analisa a
desagregação familiar. Na Síntese dos Indicadores Sociais, o número de famílias
caracterizadas como «mulher sem cônjuge com filhos» passou de 15,8 milhões em
1996 para 18,1 milhões em 2006. Como há um pouco menos de 60 milhões de
famílias no país, isto significa que quase um quinto delas são sustentadas
pelas mães, que têm uma decisão cruel a tomar: ou não trabalham e não têm renda
ou trabalham e enfrentam grandes dificuldades para cuidar dos filhos. Entre
trabalho, estudo e ter de dar atenção para a família, as mulheres ficam
sobrecarregas, no limite do suportável. A Síntese de Indicadores Sociais
comenta que «com relação à jornada média semanal despendida em afazeres
domésticos, verifica-se que as mulheres trabalham mais que o dobro dos homens
nessas atividades (24,8 horas)».
Ou seja, apesar de constatarmos avanços na remuneração relativa, nos estudos e
na força de trabalho, tudo continua muito injusto. Os desequilíbrios
estruturais herdados são simplesmente muito grandes.
Essa situação é um dos alvos centrais do programa Bolsa-Família, cujo sucesso
se deve em grande parte ao fato das mulheres gerirem melhor os recursos
obtidos. Aos que criticam os programas redistributivos, é bom lembrar um outro
dado da PNAD, segundo o qual «cerca de 31% das famílias em que a mulher era
referência viviam com rendimento mensal até meio salário mínimo per capita»2.
Outra dimensão amplamente documentada pela PNAD e pela Síntese de Indicadores
Sociais é a educação. O Brasil tem 55 milhões de estudantes, 43,7 milhões na
rede pública e 11,2 milhões na rede privada. Se somarmos a eles todos
professores e funcionários administrativos, concluímos que quase um terço da
população do país está envolvido com o ensino.
A maior expansão quantitativa da educação ocorreu na segunda gestão de Fernando
Henrique Cardoso. E os avanços continuam. Em 1996, o índice dos que não
frequentavam a escola na faixa etária de 5 a 6 anos era 35,8%. Em 2001,
diminuiu para 23,8%. Em 2006, atingiu 14,7%. No grupo entre 7 e 14 anos, o
mesmo indicador caiu de 8,7% em 1996 para 3,5% em 2001 e para apenas 2,3% em
2006. Entre os alunos de 15 e 17 anos, 30,5% não estavam na escola em 1996. Em
2006, eram 17,5%. O tempo de estudo entre as pessoas acima dos 10 anos de idade
também subiu, registrando aumento de 3% de 2005 para 2006, e alcançou a média
de 6,8 anos nos bancos escolares.
Já o ensino superior experimentou um crescimento de 13,2% entre 2005 e 2006,
graças à expansão das faculdades privadas. O papel público de redução das
desigualdades apareceu na distribuição regional entre dos dois sistemas.
Segundo a PNAD, «enquanto nas regiões Norte e Nordeste, 41,9% e 36,6% dos
estudantes de nível superior frequentavam a rede pública, nas regiões Sudeste,
Sul e Centro-Oeste, estes percentuais eram de 18,2%, 22,1% e 26,5%,
respectivamente». Como no caso dos demais indicativos, constata-se que a
direção está correta, mas o atraso a recuperar é imenso.
Entre os que já estão no mercado de trabalho, a PNAD também constatou um
aumento da escolaridade. As pessoas com 11 anos ou mais de estudo eram apenas
22% em 1996. Dez anos depois, atingiram 38,1%. O esforço educacional das
mulheres foi o principal responsável pela progressão. Na outra ponta, temos 15
milhões de analfabetos com mais de 10 anos de idade. Nesse caso, a redução foi
de apenas 0,6%. Já o analfabetismo funcional, que atingia 23,6% das pessoas com
mais de 10 anos, diminuiu 1,3%. Evidentemente, entre os dois extremos está a
imensa massa dos subqualificados.
Se resumirmos toda a evolução apontada acima, constatamos uma forte expansão do
emprego, principalmente com carteira assinada, o aumento da renda do
trabalhador e uma progressão significativa da escolaridade e da remuneração
femininas, além da ampliação da população ocupada com 11 ou mais anos de estudo
e a redução do trabalho infantil, entre outras tendências que não comentamos
aqui. Estes números são coerentes entre si e convergem para uma conclusão
evidente: muito está sendo feito e os resultados apareceram rapidamente.
Alguns apresentam essas políticas como assistencialistas, mas isso não faz
sentido. Os 12,5 bilhões de reais destinados à agricultura familiar são um
apoio e um estímulo à produtividade e os 8,5 bilhões do Bolsa-Família são um
excelente investimento na próxima geração, que estará melhor nutrida. Junto com
esses programas, o aumento do salário mínimo passou a dinamizar a demanda
popular e a estimular pequenas atividades produtivas locais3. Ou seja, estamos
atingindo um limiar a partir do qual a renda gerada na base da sociedade começa
a se transformar em mecanismo de propulsão própria. O que está em jogo aqui não
é apenas ajudar a massa de excluídos deste país; é gerar uma dinâmica em que
renda, educação, apoio tecnológico, crédito e outras iniciativas organizadas
permitam um rompimento real com as estruturas que geraram e reproduzem a
desigualdade. A pressão sobre este governo é positiva, mas isto quando se leva
em consideração os avanços realizados e se reivindica a ampliação das
políticas, não a sua desmoralização4. Afinal, o que se torna evidente ao
analisarmos estes dados é que a população menos favorecida do país votou em
Lula não por desinformação, mas por sentir que sua situação estava melhorando.
Falar mal do governo entre nós é quase um reflexo, acompanhado de cerveja e
amendoim. Falar bem dele parece até suspeito, como se fosse menos «objetivo».
Porém, muito mais importante é entender o que está acontecendo. Por trás do
palco da política oficial que a imprensa nos apresenta a cada dia ' e que é o
lado mais visível dos grandes discursos ', há o imenso trabalho organizado de
milhares de pessoas que estão tocando programas e tirando leite de pedra numa
máquina de governo que, por herança histórica, foi estruturada para administrar
privilégios, e não para prestar serviços. Do ponto de vista econômico,
maximizar a utilidade dos recursos do país envolve o aumento da renda dos mais
pobres. Isto vale tanto do ponto de vista social, em termos de satisfação
gerada, como em geração de demanda e dinamização das atividades econômicas: o
pobre não faz especulação financeira, compra bens e serviços. Tirar as pessoas
da pobreza não é caridade; é bom senso social e econômico.
NOTAS
1. IBGE ' PNAD 2006 ' <www.ibge.gov.br>. A Pesquisa Nacional por Amostras de
Domicílio constitui o principal instrumento de avaliação de como anda a
situação das famílias no país. A PNAD 2006 entrevistou 410 241 pessoas em 145
547 domicílios. Tal levantamento apresenta a situação real de maneira
confiável, ainda que desagregável apenas por grandes regiões ou de estados, o
que encobre desigualdades locais, perdidas nas médias. Os dados estão
disponíveis online, nos «Comentários 2006», em http://www.ibge.gov.br/home/
estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2006/comentarios2006.pdf.
2. Ver os dados na Síntese de Indicadores Sociais 1996-2006, do IBGE, Gráfico
4.1 e páginas seguintes. O documento completo, «Síntese de Indicadores Sociais
2007 ' Uma análise das condições de vida da população brasileira 2007» está
disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/
indicadoresminimos/sinteseindicsociais2007/indic_sociais2007.pdf. Sobre as
tendências de desagregação da família, ver o nosso artigo «Economia da
Família», na seção Artigos Online do site http://www.dowbor.org.
3. Vale a pena consultar o sistema de seguimento dos 149 programas sociais
distribuídos entre vários ministérios, disponível em «Geração de Emprego e
Renda» no site http://www.mds.gov.br. Cada programa é apresentado com os seus
objetivos e custos, além de contato para quem precisar de mais informação.
4. Para o conjunto de propostas relativas à dinamização do andar de baixo' da
economia, ver «Política nacional de apoio ao desenvolvimento local», em htttp:/
/www.dowbor.org, na seção Artigos Online.