Os desvios financeiros e temporais nas empreitadas de obras públicas em
Portugal: uma análise de 1999 a 2011
O aumento do investimento público em infraestruturas a nível mundial, e a maior
complexidade dos projetos (assumindo muitas vezes o conceito de mega-projetos
[1]), tem levantado questões sobre a eficiência do setor público. De facto,
muitos dos projetos de obras públicas acabam por ser executados com
significativos níveis de desvios financeiros e temporais. Porém, a literatura
económica ainda é escassa e confinada a um conjunto reduzido de países. O
principal estudo pertence a Flyvbjerg et al. (2002, 2003b). Analisando 258
projetos de diferentes países, o autor chegou a um desvio financeiro de 28%.
A nível internacional existem poucos estudos sobre a temática abordada (Morris,
1990; Morris e Hough, 1991; Mackie e Preston, 1998; Nijkamp e Ubbels, 1999;
Flyvbjerg et al., 2002, 2003a, 2003b, 2004; Bruijn et al., 2007; Van Marrewijk
et al., 2008; Cantarelli et al., 2010), pretendendo-se com este artigo dar um
contributo para o estudo da mesma.
A ineficiência do setor público em Portugal é um tema de aceso debate. Assume-
se, tal como noutras realidades, que o setor público é menos eficiente que o
setor privado. Contudo, está por demonstrar, por um lado, uma maior eficiência
do setor privado. Por outro lado, é necessário aferir qual o nível de
ineficiência, medido pelas derrapagens financeiras e temporais das obras
públicas, quando executadas pelo método de empreitada tradicional.
O objetivo deste trabalho consiste, assim, em medir o nível de desvios
financeiros e temporais nas empreitadas de obras públicas. Para esse efeito,
foi recolhida uma amostra de 164 projetos com dados de desvios financeiros,
cobrindo o período de 1999 a 2011. Adicionalmente, recolheu-se uma amostra de
59 projetos com desvios temporais, durante o período de 2000 a 2011.
A amostra de desvios financeiros permite-nos concluir que, em média, os desvios
financeiros nas obras públicas são de 32%. Simultaneamente, identifica-se como
anos de maiores desvios financeiros os anos de 1999, 2002, 2004, 2005 e 2009.
Pese embora 2004 se deva aos estádios do Europeu e outras obras públicas de
dimensão significativa, os restantes anos indicam uma tendência para maiores
desvios financeiros em anos de eleições. Embora em 2002 e 2005 a amostra seja
muito reduzida, para 1999 e 2009 é já significativa, sendo os desvios
relevantes[2]. Relativamente aos grandes projetos (com investimento final
superior a 50 milhões de euros), o desvio médio é de 40%. A maior parte dos
projetos apresentam desvios entre 0% e 50%. No entanto, os desvios financeiros
apresentam uma linha de tendência que se reduz ao longo do período de análise.
As limitações encontradas ao longo da elaboração do estudo prendem-se com o
facto de a amostra ser reduzida (164 projetos), da amostra apresentar uma
tendência (bias), pois é sobretudo feita a partir da análise de relatórios do
Tribunal de Contas e por apenas analisar a ineficiência do setor público, não
havendo comparação com o setor privado.
Este artigo está organizado da seguinte forma: a secção seguinte apresenta a
literatura sobre o tema; depois aborda-se a metodologia e os dados usados; os
resultados são apresentados na penúltima secção; e finalmente expõem-se as
conclusões.
A ineficiência das obras públicas: uma abordagem teórica
O estudo dos desvios em obras públicas tem sido pouco abordado na literatura
económica (Flyvbjerg et al., 2002). Poucos estudos comparam custos estimados e
reais na construção de infraestruturas.
Os diversos autores consideram que, devido ao reduzido número de amostras e
pelo facto de estas serem desiguais, os pesquisadores discordam sobre a
credibilidade das estimativas de custo, pois diferentes estudos apontam em
direções opostas. Assim, Pickrell (1990) conclui que as estimativas de custos
são muito imprecisas e que os custos reais são tipicamente muito superiores aos
custos estimados, enquanto Nijkamp e Ubbels (1999) afirmam que as estimativas
de custos são bastante fiáveis.
Com o seu estudo, Flyvbjerg et al. (2002) pretendem mostrar o seguinte: o
padrão de subestimação de custos descoberto por Pickrell (1990) é de
importância geral e é estatisticamente significativo; o padrão mantém-se para
diferentes tipos de projetos, diferentes regiões geográficas e diferentes
períodos históricos; o padrão de grandes amostras de subestimação de custos
descoberto pelos autores dá apoio estatístico para as conclusões sobre a
mentira e a subestimação de custos; e, ao estudarem uma grande amostra de
projetos de infraestrutura de transporte, é possível estabelecer se o erro
sistemático acontece, quem é o culpado e porque ocorre.
Este estudo, com base em 258 projetos, cobrindo um período desde os anos 1920
aos 1990, apresenta dados para a América do Norte, Europa e resto do Mundo. Os
autores calculam que 9 em cada 10 projetos apresentam desvios com um valor
médio de 28%. Trata-se de um fenómeno global, não tendo os autores identificado
melhorias ao longo do tempo. A falta de informação, o erro e a manipulação dos
custos/benefícios são as causas apresentadas para a existência de desvios.
Outros estudos chegaram também a valores médios de desvios: Morris e Hough
(1991) referem que os grandes projetos têm desvios entre 40 e 200%. Noutro
estudo, Morris (1990) apresenta derrapagens médias de 82%. Já Nijkamp e Ubbels
(1999) concluíram em sentido diferente. As estimativas tendem a ser fiáveis,
com desvios entre 0 e 20%.
Várias razões são apontadas na literatura para a existência de desvios
financeiros nas obras públicas: por um lado estimativas de custos pouco
precisas (Pickrell, 1990); por outro lado, Morris (1990) refere o aumento de
preços, atrasos na execução, pobre conceção e implementação do projeto,
burocracia e falta de coordenação. Já Mackie e Preston (1998), que estudaram
projetos de transporte no Reino Unido, referem como causas dos desvios:
objetivos pouco claros, planeamento tendencioso e o modelo de erro, com
subestimação dos impactos dos riscos. A falta de realismo nas previsões de
custos, as alterações ao projeto, os custos de expropriação, segurança e
ambiente são as causas apontadas por van Marrewijk et al. (2008). Os autores,
em conjunto com Flyvbjerg et al. (2003a), também apontam a inovação tecnológica
como um potencial foco de desvios.
Como forma de explicar as causas para a superação de custos dos projetos,
Flyvbjerg et al. (2004) descobriram que o aumento de custos depende fortemente
do cumprimento da fase de implementação, dos atrasos e das longas fases de
implementação, pois estas traduzem-se no aumento de custos do projeto. Os
autores acrescentam que os projetos crescem ao longo do tempo e que os projetos
de maior dimensão necessitam de melhores processos de planeamento. O aumento de
custos é elevado para todos os tamanhos e tipos de projetos, embora os projetos
de maior dimensão causem mais problemas em termos orçamentais, fiscais,
administrativos e políticos do que os de menor dimensão.
Segundo Cantarelli et al. (2010), as explicações políticas são consideradas na
literatura como a principal causa para o aumento de custos. Enquadram-se nesta
categoria geral a subestimação de custos deliberada e a manipulação das
previsões. Os custos são deliberadamente subestimados com o intuito de aumentar
as hipóteses do projeto ser aceite. Flyvbjerg et al. (2002) conclui que a
subestimação de custos não pode ser explicada pelo erro mas sim por falsas
declarações estratégicas, ou seja, pela mentira.
Para Bruijn et al. (2007), a informação de qualidade é a chave para a tomada de
boas decisões sobre grandes projetos. Para os autores, não importa que a tomada
de decisão diga respeito aos aspetos técnicos da implementação, aos impactos
económicos e ecológicos ou aos riscos do projeto, pois essa informação é
altamente sensível e deve ser tida em consideração na tomada de decisão.
Em Portugal, este tema tem tido um aceso debate público. Porém, não existem
estudos completos e globais que permitam aferir do nível de desvios em projetos
públicos. Este trabalho procura dar um contributo para superar essa lacuna.
Metodologia
De forma a medir os desvios nas obras públicas em Portugal, recolhemos uma
amostra de 164 projetos com dados de execução financeira e 59 projetos com
dados de execução temporal. A fonte destes dados são os relatórios do Tribunal
de Contas e da Inspeção-Geral de Finanças. O horizonte temporal é de 2000-11
para a execução financeira e para a execução temporal. Este tipo de dados são
por norma de difícil recolha, dado as limitações de informação que são
disponibilizadas pelo setor público. Assim, esta amostra tem naturalmente
limitações do ponto de vista estatístico, nomeadamente na representatividade da
amostra face à população (que deveria ser de todos os projetos de obras
públicas em Portugal).
Desta forma, procurou analisar-se o desvio por ano, qual o impacto de anos
eleitorais e se ao longo dos anos existiu uma melhoria no desempenho das obras
públicas, melhoria essa consubstanciada em menores desvios financeiros e de
tempo. Adicionalmente, procurou-se compreender se os desvios em projetos de
maior dimensão eram maiores (em percentagem).
O Quadro_I apresenta, por ano, os dados financeiros da amostra. Os anos mais
significativos na amostra são 1999, 2004, 2008, 2009 e 2010. A administração
central é responsável por 65% dos projetos (106 de 164), sendo que a Região
Autónoma dos Açores e a Região Autónoma da Madeira são responsáveis por 5% (8
de 164) e 7% (11 de 164), respetivamente. A administração local representa os
restantes 24% (39 de 164).
Para aferir dos desvios financeiros, optou-se por considerar como ano do desvio
o ano de conclusão da obra. Isto porque não é possível medir o desvio pelos
anos em que os projetos ocorreram, já que tipicamente estes projetos ocorrem ao
longo de vários anos, mas apenas no final se apura o seu custo real. Mesmo
considerando que o processo de decisão de uma obra prolonga-se no tempo, é
possível identificar um momento de decisão e o custo orçamentado. Daí a
relevância dos dados terem sido objeto de auditoria por parte das duas
entidades atrás referidas.
Por desvio financeiro entende-se a diferença entre o custo orçamentado no
início da obra e o seu custo real, no final da execução. Sobre este aspeto, os
relatórios do Tribunal de Contas são bastante detalhados, já que as auditorias
incidem particularmente em entender os fatores que conduziram a um acréscimo de
custos financeiros numa determinada obra pública. Para efeitos do cálculo do
desvio financeiro por ano, foram usados os valores a preços correntes. Porém,
para efeito do cálculo do desvio médio e extrapolações subsequentes, os valores
tiveram de ser ajustados para preços de 2012. Ou seja, os valores iniciais e
finais foram capitalizados (a uma taxa de desconto de 6%) para 2012. Desta
forma, assegurou-se duas coisas: os desvios são ponderados pelo peso individual
de cada projeto e, simultaneamente, os valores são comparáveis. Este último
aspeto é crítico, uma vez que se trata de valores em anos diferentes. Como tal,
é necessário ter esses valores numa base comum.
Embora não formalmente reportado neste estudo, esta amostra (one sample size)
foi testada (com base na variável de desvios em %), através de F-test e t-
tests, não se rejeitando a hipótese nula (p values inferiores a 0,01%). Foi
usado o teste Shapiro-Wilk para testar a normalidade dos dados, tendo reportado
um valor que permite considerar os dados como seguindo uma distribuição normal.
Também o teste de Skewess/kurtosis para normalidade foi realizado, tendo
mostrado normalidade das variáveis. O teste Jarque-Bera mostrou que os resíduos
seguem uma distribuição normal (p value = 0,0000). O teste Breusch-Pagan
mostrou que não existe heteroscedasticidade nos dados.
Resultados
· Desvios financeiros
Conforme se constata pelo Gráfico_1, o desvio médio financeiro dos 164 projetos
é de 32%. Contudo, se excluirmos os 38 projetos da Parque Escolar[3], o desvio
é de 36%. Os anos de maiores desvios correspondem a anos de eleições
legislativas, à exceção de 2004. Em 2004 o impacto pode ser explicado pela
construção dos estádios do Euro 2004 e pela Ponte Rainha Santa Isabel, em
Coimbra (11 projetos dos 19 existentes nesse ano).
O desvio médio obtido no presente estudo encontra-se nos 32%, o que não difere
significativamente dos resultados obtidos por Flyvbjerg et al. (2002, 2003b),
cuja média dos desvios corresponde a 28%.
O Gráfico_2 apresenta o número de projetos por intervalo de desvio. A maioria
dos projetos tem desvios situados entre 0 e 50% (123 projetos, que correspondem
a 75% da amostra). Existem, todavia, 15 projetos com desvios negativos e 18 com
desvios acima de 100%.
O Gráfico_3 apresenta a evolução temporal dos desvios, excluindo os outliers. A
escolha de 300% como outlier prendeu-se com dois aspetos: por um lado, a grande
maioria dos projetos situa-se abaixo dos 100%, e, por outro lado, alguns
projetos apresentam desvios muito elevados, o que dificulta a análise. No
Gráfico_3 constata-se que o valor dos desvios (reta de tendência) é
negativamente inclinado. Isso representa uma melhoria no nível de desvios ao
longo do tempo da amostra.
· Desvios temporais
O desvio médio do tempo de execução dos projetos é de 100%, ou seja,
corresponde a duas vezes o tempo previsto. Os dados relativos aos desvios
temporais encontram-se no Quadro_II.
Os anos com maiores desvios são os de 2001, 2004 e 2011, de acordo com o
Gráfico_4. Apenas o ano de 2004 coincide com os maiores desvios financeiros. Os
anos de 2002, 2005 e 2009 correspondem a anos de eleições onde se verifica que
existem elevados desvios financeiros mas desvios temporais menores.
No Gráfico_5 pode verificar-se que o valor dos desvios observados através da
reta de tendência vai diminuindo ao longo do tempo.
De acordo com o Gráfico_6, a maioria dos projetos tem desvios entre 0 e 100%, o
que corresponde a 34 dos 59 projetos analisados, 16 projetos encontram-se entre
50 e 100% e 20 têm desvios superiores a 100%.
· Conclusões
Conclui-se que os 164 projetos analisados apresentam um desvio médio de custos
de 32%, aumentando para 36% se a análise não contemplar os 38 projetos da
Parque Escolar, por serem pouco significativos.
Relativamente aos anos de eleições (1999, 2002, 2005 e 2009) pode observar-se
que estes são os anos com os maiores desvios financeiros; contudo, são anos com
baixas derrapagens temporais inferiores à média. No entanto, em 2002 e 2005, o
número de projetos analisados é bastante inferior aos projetos analisados em
1999 e 2009, de acordo com a amostra.
Em relação aos desvios financeiros, constata-se que a reta de tendência diminui
ao longo do tempo. Com esta conclusão, uma pergunta surge: será que a
Administração Pública está mais eficiente? O impacto das regras de contratação
pública aprovadas nos últimos anos e a limitação nos trabalhos adicionais é uma
possível resposta. Outra é o facto de existir um maior controlo por parte do
Tribunal de Contas.
Outro dado significativo diz respeito aos desvios de custos dos anos de 2010 e
2011 (39 projetos em 164) que apresentam valores residuais (1 e 3%,
respetivamente); no entanto, a maioria dos desvios financeiros encontra-se
entre 0 e 50%.
Relativamente às derrapagens temporais, pode concluir-se que o desvio médio em
tempo é de 100%, ou seja, os projetos demoram o dobro do tempo estimado, que a
reta de regressão linear que representa os desvios de tempo diminui muito pouco
ao longo dos anos, e que a maior parte dos projetos apresenta desvios de tempo
entre 0 e 100%.
O Quadro_III apresenta um conjunto de conclusões finais, das quais destacamos
as seguintes: a média dos desvios financeiros em anos eleitorais representa
80%, diminuindo para 20% quando os anos eleitorais são excluídos e a média dos
desvios financeiros dos grandes projetos apresenta um valor de 40%, diminuindo
para 16% quando os grandes projetos são retirados da análise. De salientar que
a média dos desvios após 2006 apresenta um valor de 47%, e que, excluindo o ano
de 2009 para o cálculo da média, o valor diminui para 16%.
Com base nestes resultados, verifica-se que os anos de eleições, os grandes
projetos e o ano de 2009, pelo seu elevado valor, são os principais causadores
da subida da média dos desvios de custo.
· Limitações e investigação futura
Este ponto tem por objetivo evidenciar as limitações encontradas ao longo da
elaboração do presente estudo, bem como fornecer ideias que possam ser
utilizadas em investigações futuras.
Assim, podemos destacar que, apesar de a amostra ser significativa, uma maior
dimensão daria uma análise mais robusta, sobretudo na análise das derrapagens
temporais.
Outra das limitações encontradas prende-se com o facto de a amostra ser
sobretudo feita a partir da análise de Relatórios do Tribunal de Contas,
existindo um enviesamento (bias) contra a eficiência real. Com uma amostra
superior, o desvio poderia ser menor.
Este estudo analisa a ineficiência do setor público nas obras públicas, mas não
compara com a eficiência do setor privado; esta será pois outra das limitações
a apontar.
Existe, todavia, a necessidade de se perceber por que razão a reta de tendência
diminui ao longo do tempo ' tal facto verifica-se predominantemente nos desvios
financeiros em oposição aos desvios em tempo de execução. Estará a
Administração Pública a tornar-se mais eficiente?
Há a necessidade de analisar, na evolução decrescente de desvios financeiros e
de tempo, o impacto do controlo e das recomendações do Tribunal de Contas '
neste caso seria feito um trabalho de cariz qualitativo, que complementaria o
nosso estudo, o qual teve claramente uma abordagem quantitativa.
Por último, são necessários estudos mais aprofundados - nomeadamente com
recurso a métodos econométricos ' para perceber: por um lado, a correlação
entre os desvios financeiros e os anos de eleições (maior número de dados
relativos aos anos de eleições: 1995, 1991, 1987, 1985, etc.), e,
simultaneamente, perceber se são gerados desvios de tempo significativos; e,
por outro, perceber se os grandes eventos geram desvios de custos
significativos (necessidade de estudar Expo' 98, Lisboa Capital da Cultura em
1994, Porto Capital da Cultura em 2001, etc.). Estes poderão ser alguns
exemplos de temas pertinentes para futuras investigações.