Constrangimentos organizacionais, distorção da comunicação e sofrimento ético:
o caso dos centros de atendimento telefónico
RESUMO DE TESE
Constrangimentos organizacionais, distorção da comunicação e sofrimento ético :
o caso dos centros de atendimento telefónico
Restricciones organizativas, distorsión de la comunicación y sufrimiento ético:
el caso de los centros de atención telefónica
Contraintes organisationnelles, distorsion de la communication et souffrance
éthique: le cas des centres d’appels téléphoniques
Organizational constraints, distorted communication and ethical suffering: the
case of call centers
Duarte Rolo*
*Equipa de Psicodinâmica do Trabalho e da Ac¸a~o, Conservatoire National des
Arts et Me´tiers, 41 rue Gay-Lussac, 75005 Paris, Franc¸a
duarte.rolo@gmail.com
Rolo, D. (2013). Contraintes organisationnelles, distorsion de la communication
et souffrance éthique. Thèse de doctorat, Conservatoire National des Arts et
Métiers, Paris.
A tese de doutoramento aqui apresentada teve por ponto de partida uma
interrogação sobre o impacto psicológico de modos de organização do trabalho
específicos, nomeadamente um conjunto de constrangimentos que instigam o uso da
mentira, tornando-a num elemento central da atividade dos operadores. A
descrição clínica de elementos relativos aos modos de organização do trabalho e
da forma como estes são vivenciados pelos operadores constituiu um dos
objetivos principais da tese. Nesse âmbito, levamos a cabo um estudo de caso
num setor profissional específico: as centrais de atendimento telefónico ou
call-centers. A recolha de material empírico foi feita de acordo com os
princípios metodológicos da psicodinâmica do trabalho, referencial teórico que
sustenta as discussões levadas a cabo ao longo da tese.
Abordar o trabalho na perspetiva da psicodinâmica
Herdeira dos estudos pioneiros da psicopatologia do trabalho e da ergonomia da
atividade (Wisner, 1995), a psicodinâmica do trabalho dedica-se atualmente à
análise e compreensão dos processos intersubjetivos gerados pela experiência do
trabalho. De entre as diferentes abordagens do trabalho existentes atualmente,
a psicodinâmica do trabalho confere um papel central à interação entre o
sujeito e a sua atividade concreta para tentar apreender o aparecimento de
novas formas de sofrimento no trabalho, pois o confronto entre o homem e o real
do trabalho - ou seja, tudo aquilo que resiste ao contrôlo, ao domínio e à
mestria do saber técnico ou científico - implica invariavelmente uma forma de
desestabilização. Por conseguinte, o confronto com o real traduz-se sempre, em
primeiro lugar, numa experiência desagradável. Isto porque o real se revela sob
a forma do acidente ou da avaria, impondo a qualquer indivíduo um fracasso.
Logo, o confronto com o real é antes de mais afetivo. A esta experiência
afetiva a psicodinâmica escolheu dar o nome de sofrimento. O sofrimento não é
apenas uma consequência negativa do trabalho. Pelo contrário, é aquilo que
conduz o trabalhador a procurar uma solução que lhe permitirá ultrapassar o
próprio sofrimento que o persegue. Assim sendo, este sofrimento não significa
forçosamente uma vivência patológica. Mediante certas condições, o dito
sofrimento pode revelar ser um motor para a criatividade.
Tendo em conta estes elementos, a compreensão da vivência subjetiva dos agentes
em psicodinâmica do trabalho focaliza-se nas manifestações de sofrimento no
trabalho. Os métodos de investigação concentram-se, portanto, na dimensão
propriamente subjetiva do trabalho, recolhida através do comentário feito pelos
sujeitos relativamente à sua própria atividade. Sendo assim, nesta área de
estudo os instrumentos de recolha de dados são invariavelmente qualitativos.
No nosso caso, foram utilizados três métodos de acesso ao trabalho real dos
operadores em centros de atendimento telefónico:
— em primeiro lugar, ainda numa fase exploratória, desenvolvemos uma série de
entrevistas individuais não diretivas com trabalhadores de call-centers;
— seguiu-se um período de observação participante enquanto teleoperador no seio
de uma plataforma de atendimento;
— por último, conduzimos um inquérito coletivo nos moldes da psicodinâmica do
trabalho (Ganem, 2011)[1].
O trabalho nos centros de atendimento telefónico e a mentira prescrita
Os elementos recolhidos junto dos teleoperadores revelam que a mentira se
tornou num aspeto central da sua atividade. Por mentira devemos entender
qualquer ato em que um sujeito enuncie como sendo verdadeiro aquilo que toma
todavia por falso. Dito de outra forma, mentir consiste em comunicar
intencionalmente a outrém uma visão da realidade diferente daquela que
consideramos verdadeira. No caso estudado, a mentira sob prescrição resulta de
uma combinação de fatores organizacionais que levam os operadores a adotar a
mentira como modo operacional. De uma forma geral, não existe uma prescrição
explícita nem uma ordem direta para mentir. No entanto, os teleoperadores estão
cientes de que os objetivos que lhes são impostos não podem ser atingidos sem
mentir (as metas de venda definidas são impossíveis de alcançar sem mentir aos
clientes, por exemplo). Consequentemente, embora não faça explicitamente parte
da tarefa, a mentira passa a constituir uma dimensão fundamental da atividade.
Na verdade, o inquérito conduzido revela que a mentira serve, na grande maioria
dos casos, como alavanca comercial. A sua utilização quotidiana reforça um
argumentário cujo objetivo é o aumento das vendas a qualquer custo. Mesmo que
isso implique enganar e ludibriar os clientes. Tais práticas não são, porém,
inofensivas. Muitos trabalhadores mostram-se incomodados com este tipo de
imposição que contradiz os seus princípios. O facto de a mentira se ter
infiltrado na atividade pode tornar-se problemático do ponto de vista da saúde
mental, pois nem sempre é possível conciliar este tipo de prescrição com uma
ética profissional que respeite os valores de um trabalho de prestação de
serviços. De facto, esta contradição nem sempre é fácil de suportar. O
sofrimento sentido pelos trabalhadores nestas circunstâncias está intimamente
relacionado com o conflito que se instala entre os seus próprios valores e os
valores subjacentes às práticas prescritas pela organização do trabalho.
Conflito de valores e sofrimento ético
Com efeito, estas imposições implicam por vezes a renúncia a um conjunto de
valores que até à data tinham pautado a conduta profissional de grande parte
dos teleoperadores. Levar a cabo ações ou executar ordens que, no final de
contas, estes desaprovam, pode gerar uma forma de sofrimento específico que a
psicodinâmica do trabalho apelidou de “sofrimento ético” (Dejours, 1998). O
sofrimento ético surge quando o sujeito chega ao ponto de executar ordens com
as quais não concorda. Dispôr-se a servir um sistema que o próprio agente acaba
por condenar dá origem a um conflito entre aquilo que o sujeito sabe que não
deve aceitar mas que ainda assim faz. Ao contradizerem os seus valores, os
trabalhadores correm o risco de perder a consideração que têm por si mesmos.
Porém, a traição de convicções ou ideais não origina forçosamente um sofrimento
moral ou um sentimento de culpabilidade e é ainda menos certo que constitua
sistematicamente uma causa de aparecimento de doenças ou de distúrbios
psicológicos. Diversos estudos em clínica do trabalho demonstram efetivamente
que o "trabalho sujo" (Hughes, 2010) é compatível com a realização
pessoal. Sendo assim, como podemos explicar que uma parte dos trabalhadores
entrevistados desenvolva sintomas relacionados com o conflito laboral que
enfrentam, enquanto outros não dão sinais significativos de sofrimento? É
impossível responder de forma satisfatória a esta questão sem recorrermos a uma
das descobertas fundamentais da psicodinâmica do trabalho, designadamente as
estratégias de defesa contra o sofrimento no trabalho.
Um conjunto de estratégias de defesa peculiares
Os primeiros inquéritos em psicodinâmica do trabalho demonstraram que os
trabalhadores desenvolvem estratégias de defesa que lhes permitem suportar os
aspetos mais penosos da sua atividade (Dejours, 1980). Para satisfazerem as
prescrições e corresponderem às expectativas da organização sem adoecerem, os
trabalhadores utilizam estratégias de defesa contra o sofrimento, tais como o
individualismo, a negação do perigo ou a hiperatividade.
Podemos definir estas estratégias como mecanismos através dos quais os
trabalhadores buscam modificar, transformar e minimizar a perceção da realidade
que os faz sofrer. Estas estratégias visam uma anulação simbólica dos perigos
reais, concretamente relacionados com as condições de trabalho. São
comportamentos intencionais, podem ser individuais ou coletivos (nesse caso são
sustentados pelo consenso de um grupo específico de trabalhadores e têm uma
função essencial para a constituição dos coletivos e das regras de trabalho),
operam num plano simbólico e têm um efeito considerável sobre os afetos, ideias
e comportamentos dos trabalhadores. Todas elas têm um impacto sobre a perceção
da realidade e sobre a cognição dos sujeitos: as estratégias defensivas alteram
os modos de pensar e de expressão. São estas estratégias de defesa que permitem
à grande maioria dos trabalhadores manterem-se "normais" ou seja,
evitarem a descompensação psicopatológica.
No caso do grupo profissional estudado, as ditas estratégias assumem diferentes
formas. Encontramos, por um lado, estratégias de defesa individuais, tais como
o ativismo, isto é, uma auto-aceleração solicitada e mantida pelos
trabalhadores. O ativismo permite uma “anestesia” parcial do pensamento, graças
a uma solicitação extrema do comportamento e da motricidade. O atendimento
frenético de telefonemas e uma entrega sem limites aos objetivos de produção
permitem a alguns teleoperadores sonegarem os eventuais conflitos éticos.
Manter uma azáfama comportamental serve precisamente para impedir o surgimento
de tais conflitos, afastando-os da consciência.
No plano coletivo, os trabalhadores parecem organizados em diferentes clãs
inimigos. A constituição de tais clãs tem por base o conflito de valores e de
práticas profissionais acima referidas e opõe os trabalhadores que consideram a
mentira um instrumento profissional legítimo, posto ao serviço de uma
finalidade produtiva, aos teleoperadores que preferem concentrar-se num
atendimento ao cliente desprovido de segundas intenções. A hostilidade entre os
dois grupos assim constituídos é patente, cada qual acusando o outro de ser a
origem das dificuldades vividas por todos. As recriminações, conflitos e
embates são frequentes, podendo até dar lugar a confrontos violentos entre
colegas. Segundo a psicodinâmica do trabalho, a focalização nos conflitos e
acusações interpessoais permite evitar um debate construtivo sobre o trabalho
real e as suas dificuldades. Este fenómeno coletivo é característico daquilo
que denominamos ideologias defensivas, cuja função é precisamente impedir
qualquer questionamento sobre as práticas profissionais em vigor.
Para além das estratégias acima referidas, é importante relatar um terceiro
tipo de estratégias defensivas, deveras surpreendente. Trata-se daquilo que
escolhemos apelidar de “estratégia defensiva da regressão infantil”.
Contrariamente às estratégias de defesa tradicionalmente estudadas em
psicodinâmica do trabalho, desde sempre consideradas como criações originais e
voluntárias dos trabalhadores, a estratégia da regressão infantil é promovida -
e poderemos até dizer proposta - pela direção, sob a forma de jogos e concursos
burlescos. Estes concursos ou challenges cumprem uma função claramente
produtiva, sendo que o seu objetivo é promover a concorrência entre os
operadores, cujo critério de avaliação passa pelo número de vendas realizadas.
As equipes ou teleoperadores melhor classificados poderão então beneficiar de
alguns minutos para jogarem com uma consola de videojogos ou pilotarem um
helicóptero miniatura. As recompensas e prémios são regularmente deste tipo,
remetendo os trabalhadores para aquilo que muitos interpretam como uma forma de
infantilização. Aparentemente, os jogos profissionais incitam a condutas
infantis e promovem uma forma de regressão ou imaturidade intelectual adotada
por uma grande parte dos teleoperadores. A nosso ver, este tipo de
comportamento contém uma vertente defensiva. A imaturidade intelectual à qual
impelem os ditos jogos acompanha-se de uma renúncia à capacidade reflexiva,
posta ao serviço das defesas. Ao abdicarem de um exercício pleno e independente
do seu intelecto, os teleoperadores podem assim subtrair-se à reflexão sobre o
carácter dúbio das suas práticas profissionais. Desta forma, a regressão
infantil serve para desresponsabilizar todos e cada um das consequências do uso
quotidiano da mentira, ou pelo menos para evitar qualquer interrogação sobre o
assunto.
Este conjunto complexo de estratégias defensivas permite a uma parte dos
trabalhadores manter o seu equilíbrio psíquico intacto, mediante uma dose de
sofrimento penosa mas suportável. No entanto, este dispositivo informal
desdobra-se em métodos de avaliação que fazem da capacidade de mentir com
eficácia um dos critérios da qualidade do trabalho.
Reconhecimento e avaliação do trabalho
As recompensas e prémios de desempenho são invariavelmente atribuídos aos
melhores vendedores do call-center, independentemente dos métodos utilizados
para atingir tais performances. Aparentemente, aqueles que são considerados
pelas chefias como sendo os melhores trabalhadores são também aqueles que
manejam a mentira com mais subtileza e com menos escrúpulos. Ou seja, aqueles
para quem a venda de novos produtos não implica forçosamente uma avaliação da
natureza do pedido do cliente, nem das suas necessidades reais. Os melhores
vendedores beneficiam igualmente de prémios e bónus comerciais que constituem
uma parte importante do seu sálario e que os diferenciam dos demais colegas. As
formas de remuneração e de reconhecimento do trabalho estão estreitamente
relacionadas com critérios quantitativos, traduzidos essencialmente por
indicadores numéricos (número de vendas, quantidade de telefonemas, etc.), mas
sem qualquer apreciação de critérios qualitativos, tais como o respeito pelo
pedido do cliente ou a sua satisfação com as respostas recebidas. Este sistema
de avaliação do desempenho acarreta, logicamente, consequências práticas
detalhadamente descritas na tese. Por um lado, estas incitações promovem
implicitamente as vendas forçadas, os abusos comerciais e a propagação da
mentira. Por outro lado, a instrumentalização do reconhecimento, aliada ao
sofrimento ético e às defesas adotadas pelos trabalhadores, produz mecanismos
de submissão pessoal tão inesperados quanto preocupantes.
Os elementos apresentados nesta tese sugerem uma necessidade de reavaliar os
modelos atuais de organização do trabalho em centros de atendimento telefónico,
isto se tivermos em conta a vivência subjetiva dos trabalhadores. A crítica
formulada fundamenta-se essencialmente nos efeitos nefastos observados em
termos de saúde no trabalho mas igualmente em considerações mais abrangentes
relacionadas com a restrição da autonomia dos trabalhadores.