O Novo Panóptico Russo: A Vigilância na Rússia do Século XVIII à Era Digital
Introdução
Este artigo está organizado em quatro grandes áreas. Na primeira, temos um
texto introdutório ao tema do Panóptico e o que este representa enquanto
objecto de poder. São apresentados os factos históricos mais relevantes, o seu
modo de funcionamento, diferentes aplicações do conceito em outros tipos de
construção institucional e é apresentado um esquema desenhado pelo pai do
conceito arquitectónico, Jeremy Bentham.
Numa segunda área, é introduzida a contextualização histórica do Panóptico. Os
actores envolvidos, o seu percurso geográfico e motivos da presença na cidade
de Krichev, a cultura do século XVIII na antiga Rússia Branca (hoje República
da Bielorrússia), a necessidade de contratação de mão-de-obra especializada em
Inglaterra e as suas consequências sociais na relação com os trabalhadores não
especializados russos, a cultura religiosa vivida na época e suas consequências
e influências directas na criação espacial do Panóptico, conceitos de
disciplina e omnisciência e a clarificação dos pontos convergentes entre estes
dois.
Quanto à terceira área, é feita a transição do modelo arquitectónico para a
génese do pensamento moderno através da explicação da análise de Foucault
relativamente ao conceito aqui exposto e a apresentação da sua própria Teoria
do Poder, onde define a dualidade poder/conhecimento.
Relativamente à quarta e última parte, são apresentadas algumas teorias de
diferentes académicos, relativamente ao tema em desenvolvimento. É também
apresentada a contextualização relativa à Federação Russa, sua envolvente
política, cultural e social e a evolução do Panóptico localizado ao Panóptico
de massas.
Depois de analisadas muitas das condicionantes e envolventes do conceito de
Panóptico é ainda formulada uma teoria sobre o suporte por parte dos media à
vigilância praticada na Rússia e sobre como esse suporte ajuda a
consciencializar e incrementar o efeito do Panóptico como forma de poder
social.
No final, é apresentada a conclusão do tema onde são relacionados os diferentes
tópicos abordados ao longo do artigo e onde são dados alguns exemplos dos
Panópticos actuais e futuros (os que estão em estudo ou em implementação neste
momento) no espaço geográfico da Rússia.
O conceito de Panóptico é relevante nos estudos sociais, porque permite a
compreensão do fenómeno da vigilância que todos vivemos nos dias de hoje.
Entender como foi introduzido e como funciona este conceito, é entender o modo
como a simples consciencialização da constante observação pode mudar o nosso
comportamento individual, mas, sobretudo, social e como esta forma de poder
actua numa estrutura de dentro para fora e não de fora para dentro. As novas
formas de poder actuam assim sobre o indivíduo duma forma auto-regulatória e,
sem necessidade de imposição, são aceites pela sociedade como um dado
adquirido.
O Novo Panóptico Russo: A Vigilância na Rússia do Século XVIII à Era Digital
Panóptico é um termo utilizado para definir um conceito de edifício
institucional desenhado por Jeremy Bentham, no final do século XVIII. Este
edifício, que teria como função ser uma prisão, tem a particularidade de ser
construído numa forma circular, permitindo assim a vigilância de um maior
número de prisioneiros através de um menor policiamento e menor utilização de
recursos administrativos, reduzindo os custos de manutenção da instituição
prisional.
A sua forma circular em torno de uma torre central de vigilância, permitia que
os guardas vigiassem mais facilmente todos os prisioneiros nas suas celas,
independentemente da posição das mesmas, mas, ao mesmo tempo, impedia que os
próprios prisioneiros tivessem uma visão inversa da sala de controlo, local
onde se situaria o responsável pela vigília.
Jeremy Bentham foi um filósofo e sociólogo inglês que estudou este conceito e
que tentou aplicá-lo, não apenas como edifício prisional, mas também a outros
níveis como, por exemplo, escolas, hospitais, creches e outras instituições
onde se impunha um certo nível de vigilância sobre os seus utilizadores.
Segundo Bentham, a grande vantagem do Panóptico residia no facto da observação
(neste caso vigilância) poder ser efectuada mais facilmente sem que o
prisioneiro soubesse se estava a ser observado ou não. Esta configuração actua
ao nível físico, através da observação directa sem possibilidade de
reciprocidade, mas, consequentemente, também ao nível psicológico, levando a
uma consciencialização no indivíduo da omnipresença do olhar vigilante.
Segundo Bentham, em teoria, esta consciencialização da vigilância omnipresente
confere um novo modo de obter o poder da mente sobre a mente, num grau nunca
atingido até àquele momento (Bentham, 1787, p. 31).
Como o próprio refere, na sua carta intitulada Letter V - Essential Points of
the Plan:
You will please to observe, that though perhaps it is the most
important point, that the persons to be inspected should always feel
themselves as if under inspection, at least as standing a great
chance of being so, yet it is not by any means the only one. If it
were, the same advantage might be given to buildings of almost any
form. What is also of importance is, that for the greatest proportion
of time possible, each man should actually be under inspection. This
is material in all cases, that the inspector may have the
satisfaction of knowing, that the discipline actually has the effect
which it is designed to have: and it is more particularly material in
such cases where the inspector, besides seeing that they conform to
such standing rules as are prescribed, has more or less frequent
occasion to give them such transient and incidental directions as
will require to be given and enforced, at the commencement at least
of every course of industry. And I think, it needs not much argument
to prove, that the business of inspection, like every other, will be
performed to a greater degree of perfection, the less trouble the
performance of it requires.
Not only so, but the greater chance there is, of a given person's being at a
given time actually under inspection, the more strong will be the persuasion -
the more intense, if I may say so, the feeling, he has of his being so. How
little turn soever the greater number of persons so circumstanced may be
supposed to have for calculation, some rough sort of calculation can scarcely,
under such circumstances, avoid forcing itself upon the rudest mind.
Experiment, venturing first upon slight transgressions, and so on, in
proportion to success, upon more and more considerable ones, will not fail to
teach him the difference between a loose inspection and a strict one.
(Bentham, 1787, pp. 43-44).
O poder exercido pretende prevenir o comportamento desviante, evitando o
castigo e tem como base a auto-aplicação do poder como resultado da
consciencialização individual de cada pessoa sujeita ao espaço interior do
Panóptico. Assim, é importante compreender que o poder é constantemente
exercido, duma forma colectivamente auto-aplicada, não sendo detido por uma
única entidade, no contexto em que se insere, deixando, assim, de ser
importante qualquer medição de poderes, mas sim o modo como actua e que efeitos
práticos tem no prisioneiro. Os resultados produzidos são efeitos ao nível da
obediência, disciplina e conhecimento sistematizado da população prisional
(Sadan, 2004, pp. 62-63).
Bentham dedicou mais de vinte anos da sua vida a estudar o conceito do
Panóptico e, em teoria, aplicou-o a outros tipos de construção. No entanto, o
Panóptico tão desejado por Bentham, a prisão em Inglaterra, nunca chegaria a
ser construído, tornando-se num dos melhores exemplos da Teoria das Ficções do
próprio Bentham.
Where Bentham goes beyond these literary theories is in recognising
that, at least outside the realm of literature, fictions do as much
to create the probabilities they presume as probabilities do to
create them. In other words, he recognises the prescriptive aspect of
fictions: the regulative power they have to induce people to behave
in conformity with the announced norms. In this essentially
legislative capacity, Bentham saw, fictions make statements about
what is probable into self-fulfilling prophesies, thereby turning
subjective probabilities into observably objective ones - literally
turning fictions into facts. (Stolzenberg, 1999, p. 238)
Contextualização Histórica
Jeremy Bentham (1748-1832) foi um jurista, filósofo e reformista social inglês,
nascido em Londres, que desenvolveu uma série de teorias, a maioria das quais
relacionada com o sistema legal. É considerado o pai do Utilitarismo, teoria
filosófica das éticas normativas que advoga o princípio do bem-estar de todos
os seres, considerando apenas apropriado aquele resultado de uma acção que
maximiza a felicidade em detrimento do sofrimento. Nos dias de hoje, esta
teoria é considerada como uma forma de Consequencialismo2.
No final do século XVIII, Bentham viaja para a Rússia Branca (hoje a República
da Bielorrússia) para encontrar o seu irmão Samuel Bentham. Samuel vivia na
cidade de Krichev sendo gestor de vários empreendimentos industriais e outros
projectos a convite do príncipe Potemkin.
Durante a sua permanência em Krichev, Jeremy Bentham teve oportunidade de
contactar com a arquitectura absolutista russa do século XVIII. A ideia do
Panóptico foi, inicialmente, mencionada pelo seu irmão Samuel, referindo este a
vontade de construir um complexo industrial em formato circular que ajudasse a
reduzir o número de supervisores necessários para controlar os trabalhadores
sem qualificações e, assim, poupar nas despesas. Esta ideia foi continuada por
Jeremy, mas pensada para aplicação em prisões, local onde a vigilância é uma
constante. Os primeiros esboços do Panóptico foram desenhados em 1786 (Werret,
1998) e Jeremy iniciou uma série de escritos, em formato de carta, que enviava
para Inglaterra ao cuidado de um amigo (Bentham, 1787, p. 29).
É neste contexto cultural da Rússia do século XVIII que surge a ideia para o
Panóptico. Uma sociedade pouco letrada, na qual é difícil encontrar
trabalhadores qualificados, onde existe uma enorme disponibilidade de recursos
humanos para trabalhar, mas poucos recursos qualificados que possam controlar o
trabalho, onde existe indisciplina entre os trabalhadores e entre os
trabalhadores e os gestores dos projectos e onde chegou a ser necessário
importar mão-de-obra especializada, saída das Universidades de Inglaterra, para
conseguir, efectivamente, alcançar resultados práticos nos trabalhos que eram
desenvolvidos.
Muitos estudos referem, assim, a origem do Panóptico na Rússia, embora não
existam muitos que mencionem os verdadeiros motivos para o seu surgimento.
No entanto, como mais tarde se verificou, não foi devido ao facto de ser
necessário controlar os trabalhadores iletrados russos que surgiu a ideia do
Panóptico. Devido a esta falta de especialização, os irmãos Bentham
necessitaram de chamar vários trabalhadores especializados de Inglaterra para
trabalhar em Krichev e, assim, passar o seu conhecimento aos camponeses,
formando-os para a construção industrial. Algum tempo depois, Samuel Bentham
apercebeu-se de que, ao contrário dos trabalhadores russos, eram os ingleses os
trabalhadores mais problemáticos de todo o complexo industrial. Estes bebiam,
eram preguiçosos, roubavam e causavam distúrbios entre todos os trabalhadores.
Sabendo que, em certa medida, o Panóptico não era muito produtivo ao nível do
controle da formação dos trabalhadores russos, parece mais provável que a sua
ideia original não tenha surgido da necessidade de contratar e controlar
trabalhadores ignorantes, mas sim da necessidade de controlar os formadores
ingleses.
The Panopticon offered no significant development on the usual
method of a trainer overseeing his workforce. So Bentham's invention
was not so much an attempt to employ 'ignorant Russian peasants
effectively', but rather a solution to the immediate and very real
problem of 'who will guard the guards?' (Werret, 1998).
Não existindo ainda um estudo que consiga provar a relação directa entre a
arquitectura do Panóptico e a arquitectura absolutista ortodoxa da Rússia do
século XVIII, existe, no entanto, a possibilidade de observar as semelhanças
entre estas duas realidades. Para Bentham, o Panóptico representava uma forma
de controlar os ingleses que foram contratados para trabalhar em Krichev. Para
a classe nobre russa, o Panóptico representava uma forma de controlar os
plebeus russos. A relação surge duma forma clara, quando analisado o meio como
os plebeus russos eram controlados na Rússia do século XVIII, através do poder
exercido pela Igreja Ortodoxa3.
Neste período, os russos aprendiam sobre a sua posição e função terrenas
através da sua relação com Deus, mediada, claro, pela Igreja Ortodoxa. O local
de adoração era, portanto, a igreja onde, segundo a influência bizantina, a
visibilidade desempenhava um papel fundamental. Para os ortodoxos, o edifício
da igreja é uma extensão do corpo de Cristo sendo também uma extensão do Seu
poder na Terra. Os sacramentos, dos quais a Eucaristia é o mais importante, são
considerados mistérios divinos e a arquitectura ortodoxa reflecte bem esta
categorização. Em contraste com a Igreja ocidental, a Igreja Ortodoxa mantém
uma tela de separação entre a nave central, local onde os fiéis se posicionam,
e o santuário, onde a Eucaristia é realizada, evitando assim a visualização dos
procedimentos religiosos dos padres. Esta tela contém uma série de desenhos
religiosos chamados ícones. Enquanto os padres efectuam estes procedimentos
religiosos sem que possam ser vistos, os plebeus, do outro lado da tela, podem
admirar os vários ícones dispostos no tecido, sendo um deles Cristo, o Olhar
Zangado ou Cristo Pantokrator (imagem ao lado), que representa a
omnisciência e julgamento divinos. Os ícones na tela servem, assim, para manter
o secretíssimo dos mistérios divinos, tornando-os invisíveis ao olhar dos
plebeus e, ao mesmo tempo, representam um olhar omnisciente e controlador sobre
os fiéis. Esta assimetria da visibilidade é a doutrina do mistério na Igreja
Ortodoxa.
Relacionando o Panóptico de Bentham com as considerações expostas sobre a
Igreja Ortodoxa, é possível verificar os pontos comuns entre a arquitectura e
os procedimentos de ambos. Segundo Bentham, o Panóptico tinha também um lugar
central reservado apenas ao inspector e, na consciência dos vigiados, este
representava uma visão constante e omnisciente (Werret, 1998). Esta
vigilância representa então uma nova forma de poder, tal como na Igreja
Ortodoxa, que proporciona ao vigilante a imposição, sobre o vigiado, de um
determinado comportamento ou actuação no decorrer desta relação vigilante-
vigiado. A questão da assimetria da visibilidade desempenha também um papel
fundamental nesta relação de poder, levando a uma imposição de comportamento
bastante mais fácil e fisicamente pacífica do que aquela que impõe o
comportamento através do castigo como exemplo.
Segundo Werret, Bentham era conhecedor da Igreja Ortodoxa e tinha estudado
atentamente a sua arquitectura:
It may seem unlikely for Samuel Bentham to devise a 'secularised
church' at Krichev. Yet the designs which he prepared with Jeremy in
1786 bear a close resemblance to the church architecture of the time.
Compare, for example, the Krichev Panopticon with Starov's design for
the Cathedral of the Trinity finished in 1782 . Bentham was certainly
well informed about the Orthodox church. During a tour of Siberia in
1781 Bentham collected information on the activities of the
Raskolniki or Old Believers for the government: precisely a
surveillance operation undertaken to undermine the power of a section
of the Orthodox community. (Werret, 1998).
Fica assim clara, a relação entre o surgimento do Panóptico e a sociedade russa
dos finais do século XVIII. Na verdade, a Rússia foi o país onde se construíram
mais panópticos. Depois de Bentham ter construído a 'Panopticon School of Arts'
em São Petersburgo, o Czar ordenou a construção de panópticos por toda a
Rússia, não apenas edifícios para uso particular, mas também edifícios
públicos.
Do Panóptico Físico à Teoria do Poder de Foucault
O Panóptico dos irmãos Bentham detém, ainda hoje, a responsabilidade por grande
parte do pensamento moderno sobre as questões da vigilância e da teoria do
poder.
Foucault considera que existe um momento histórico, precisamente o século
XVIII, que determina a mudança de paradigma na história da repressão. A
passagem do castigo à imposição da vigilância. No entanto, Foucault não
considera que o impulso na génese desta mudança seja proveniente da evolução
comportamental para um instinto mais humanitário, por parte daqueles que impõem
a disciplina social, mas apenas devido à economia de meios e ao lucro daí
proveniente, como ele designa, economia do poder. Foucault confirma, assim, o
nascimento da nova forma de poder da vigilância no século XVIII que ele designa
como forma de poder sináptica (Gordon, 1980, pp. 38-39; Sadan, 2004, p. 55).
Foucault relaciona ainda o surgimento da economia do poder com uma mudança de
localização do poder dentro da sociedade. Este passa a ser exercido dentro do
corpo social e não acima deste. Verifica-se, deste modo, um certo
desempoderamento das instituições tradicionais que exercem o poder antes
deste novo paradigma e uma mistificação/arcaísmo dos personagens soberanos,
tais como, o rei ou o tribunal.
A história tem proporcionado mais atenção às relações de poder na sociedade, ao
modo como estas se processam e àqueles que detêm o poder, mas não deu muita
atenção aos mecanismos de execução do poder. Ainda menos estudado, segundo
Foucault, foi a relação entre poder e conhecimento e o modo como um articula ou
afecta o outro. Tradicionalmente, a Humanidade sempre associou o poder à falta
de conhecimento. O poder cega e, aqueles que governam ficam cegos durante o
exercício das suas funções. Foucault tenta sempre realçar a constante relação
entre poder e conhecimento, não apenas no sentido de que o poder necessita
desta ou daquela descoberta ou desta ou daquela forma de conhecimento, mas
também no sentido de que o exercício do poder cria novas formas de conhecimento
e novas fontes de informação (Gordon, 1980, pp. 51-52).
O estudo levado a cabo por Foucault, relativamente ao Panóptico, começou quando
este estudava as origens da medicina clínica. Durante este estudo, Foucault
analisou diversas plantas de hospitais do século XVIII e notou que a principal
preocupação da época era a observação constante e centralizada dos pacientes,
mesmo em condições em que o contacto físico era proibido, por motivos de
contágio e outras variáveis e onde era ainda necessário manter a separação de
doentes e de pessoal médico. Mais tarde, ao estudar a problemática do sistema
penal notou que as preocupações eram, em muitos casos, semelhantes e, noutros,
as mesmas. No entanto, nos estudos relacionados com o sistema penal, o nome
Bentham surgia constantemente em praticamente todas as leituras que Foucault
estudava (Gordon, 1980, pp. 146-147). Nas próprias palavras de Foucault:
Bentham didn't merely imagine an architectural design calculated to
solve a specific problem, such as that of a prison, a school or a
hospital. He proclaimed it as a veritable discovery, saying of it
himself that it was 'Christopher Columbus's egg'. [...] He invented a
technology of power designed to solve the problems of surveillance.
One important point should be noted: Bentham thought and said that
his optical system was the great innovation needed for the easy and
effective exercise of power. (Gordon, 1980, p. 148)
Foucault apercebe-se, então, de que os problemas espaciais relacionados com a
geo-política começam a surgir nos finais do século XVIII, como preocupação
fundamental dos governantes e de outros participantes da decisão/estratégia
económico-social. Nas palavras de Perrot, em conversa com Foucault, no mesmo
livro,
Here we are [...] preventing people from wrong-doing, taking away
their wish to commit wrong. In a word, to make people unable and
unwilling (Gordon, 1980, p. 154).
Ao contrário de alguns autores como, por exemplo Semple (Semple, 1987, pp. 314-
315), e incluindo o próprio Bentham, Foucault não reconhece as boas intenções
de Jeremy Bentham, classificando-as como maquiavélicas e estando na origem de
uma engenhosa e cruel jaula:
The Panopticon presents a cruel, ingenious cage. The fact that it
should have given rise, even in our own time, to so many variations,
projected or realised, is evidence of the imaginary intensity that it
has possessed for almost two hundred years. But the Panopticon must
not be understood as a dream building: it is the diagram of a
mechanism of power reduced to its ideal form; its functioning,
abstracted from any obstacle, resistance or friction, must be
represented as a pure architectural and optical system: it is in fact
a figure of political technology that may and must be detached from
any specific use. (Foucault, 1975, p. 205)
No discurso de Foucault é possível encontrar inúmeras referências à constante
relação entre o conhecimento e o poder. Quando Foucault fala do Panóptico de
Bentham, refere sempre que desempenha uma função de laboratório do poder onde
são analisados todos os comportamentos humanos observáveis e onde são aplicadas
formas de os controlar ou, mesmo, suprimir.
Sendo um laboratório, podemos afirmar que existe um método experimental que, à
semelhança do método científico, reúne, processa e analisa informação de modo a
obter conhecimento sobre o objecto em análise. Esta é a relação entre exercício
do poder e obtenção de conhecimento que Foucault tanto refere no seu pensamento
e que diz serem indissociáveis (Foucault, 1975, pp. 195-228).
A Relação Poder-Vigilância como Garante do Regime
Como já tivemos oportunidade de ver em (Ramos, (in press)), a Rússia do século
XXI apresenta-se como uma democracia em que as liberdades e direitos dos
cidadãos não são propriamente os mesmos das democracias ocidentais. Neste país,
existe um regime político que exerce o poder da governação de uma forma mais
próxima do totalitarismo, em detrimento dos princípios que definem o ideal
democrático de países como aqueles da União Europeia. Tal realidade pode ser
definida como uma democracia mitigada (Cardoso, 2006, p. 39) ou uma democracia
musculada (Ramos, (in press), p. 1) dependendo do lado a partir do qual se
observa e relaciona o termo, cidadãos ou governo, respectivamente.
A evolução do Panóptico, enquanto construção arquitectónica, até ao
aparecimento do Panóptico Digital, é também óbvia. O número de pessoas que é
necessário vigiar e monitorar, quando se trata de um país inteiro, é
substancialmente maior do que aquelas que o Panóptico original, enquanto
edifício, permite controlar. Neste sentido, depois da entrada na Era Digital, a
evolução dos meios de observação e controlo tem sido significativa, permitindo
a cobertura de um vasto número de pessoas e instituições com utilização
diminuta de meios humanos e financeiros.
Já sabemos, pelos tópicos anteriores, que um dos instrumentos do poder é a
vigilância. Sabemos também que, na Rússia do século XXI, o poder é exercido
duma forma mais centralizada em torno dos governantes e menos representativa
das vontades dos cidadãos, tornando-se, assim, um poder não representativo ou
mesmo anti-democrático por natureza.
Ainda foi possível verificar em (Ramos, (in press), p. 10) que os russos têm,
cada vez mais, a consciência de que não vivem em total liberdade democrática,
mas, contrariamente ao que refere David Lyon (Lyon, 2003, p. 8) relativamente à
aceitação ou resistência da vigilância consoante esta é interpretada como algo
que proporciona, ou não, melhores condições de vida, não se identificam
movimentações significativas no sentido de mudar o regime estabelecido ou
contrariar a vigilância em prática. Tal aceitação estará relacionada com a
cultura e o nível de egoísmo digital dos russos, mas é também possível
argumentar que o Panóptico Digital exerce aqui um papel fundamental de fonte de
poder no controlo da população e no evitar de movimentações que possam conduzir
a uma situação de instabilidade, afectando o regime estabelecido.
Existe assim a ideia de que o poder e a vigilância na Rússia são duas
realidades indissociáveis para a continuidade, estabilidade e alimentação
informativa do regime em vigência actualmente.
A Era Pós-Soviética e a Explosão das TIC
Durante os últimos anos de Gorbachev4 no poder, a Rússia tentou aderir à
massificação das TIC, no entanto, foi na Era de Putin que a Internet sofreu a
sua maior explosão de crescimento na Rússia. Contudo este crescimento explosivo
não aconteceu sozinho. Houve sempre uma tentativa de acompanhar as TIC com leis
e vigilância governamental direccionada especificamente aos utilizadores da
Internet (Saunders, 2009, p. 17). Rheingold (1993, pp. 9-10) afirma que a
esfera da Internet pode ter chegado para servir de Agora virtual ou de
Panóptico virtual, tudo depende de qual destes dois lados a controla.
A justificação é sempre a mesma, em quase todos os países onde existe um
elevado nível de vigilância: protecção dos cidadãos contra os conteúdos
extremistas e a guerra ao terrorismo. Veja-se, por exemplo, o Patriot Act dos
Estados Unidos da América (Andrejevic, 2006, p. 245) e o Terrorism Act do
Reino Unido, aprovados em Outubro de 2001 e em Março de 2006, respectivamente,
que permitem o uso de todas as ferramentas ao dispor das entidades competentes
com o objectivo de combater e parar actos de terrorismo que possam afectar a
segurança nacional. Nos Estados Unidos da América, esta lei foi publicada
semanas depois dos famosos ataques do 11 de Setembro, em Nova York.
Na Rússia, foi aprovada a Lei Federal de 12 de Agosto de 1995 Nº144-FZ "Sobre
as Actividades de Investigac¸a~o", que legitima as actividades do FSB
relativamente a` vigila^ncia das comunicac¸o~es. Muitas organizac¸o~es ligadas
a` defesa dos direitos humanos consideram que esta lei e´ inconstitucional por
entrar em conflito com a lei fundamental russa, aprovada em 1993, que expressa
claramente no seu artigo 23º:
1. Todos tera~o o direito a` na~o violac¸a~o da vida privada,
segredos pessoais e de fami´lia e a` protecc¸a~o da sua honra e bom
nome.
2. Todos tera~o o direito a` privacidade de corresponde^ncia,
conversas telefo´nicas, mensagens postais, tele´grafo e outro tipo de
mensagens. Qualquer limitac¸a~o a estes direitos devera´ apenas ser
permitida mediante uma decisa~o do tribunal. (Federac¸a~o Russa,
1993).
As motivações russas não diferem muito das motivações dos EUA e do Reino Unido
mas, de certo modo, em lados opostos. Existe um sentimento de defesa contra os
inimigos internos e externos que possam ameaçar o país e também contra a
propaganda mediática dos Estados Unidos da América (Sakwa, 2004, p. 106).
Assim, durante este período iniciado com a escolha de Putin para o Kremlin, a
Internet passou de novidade a um Panóptico participatório, promovido pelo
governo, em constante crescimento e alimentado pelo ressurgimento do
nacionalismo russo (Dennis, 2008, pp. 347-357).
Desde a chegada de Putin, o Kremlin tem sido inflexível e extremamente
autoritário relativamente à liberdade de imprensa. Todas as estações privadas
de televisão foram nacionalizadas e, apesar da imprensa escrita e das rádios
não terem sido tão afectadas como a televisão, os seus directores de informação
e editores são bastante pressionados para publicar dentro da linha política do
actual governo. A imprensa na Internet e as agências noticiosas agem dentro de
uma certa liberdade mas a intimidação é uma constante.
Neste momento, a Rússia não tem meios técnicos para bloquear o acesso, via
Internet, a determinadas fontes ou sites com conteúdo que desagrada ou ataca as
políticas do governo. Ao contrário da China, a infra-estrutura de
telecomunicações russa não assenta num formato centralizado que permitiria o
seu controlo quase total a partir de uma única localização geográfica. Assim,
como podemos ver em (Ramos, (in press), pp. 9-10), tem-se provado mais
eficiente o aparecimento de gatekeepers e de vigilantes virtuais, como lhes
chama Dennis (2008), cujo trabalho, muitas vezes suportado financeiramente pelo
Kremlin, é navegar pela Internet em busca de sites ou conteúdos que, de alguma
forma, ofendam ou sejam contrários às ideologias russas e atacar esses mesmos
sites, tentando por todos os meios prejudicar os seus criadores ou mesmo
retirá-los do ar, impedindo o acesso aos conteúdos em causa (Dyakova, 2006).
Conclui-se, assim, que a infra-estrutura russa de TIC está a ser usada, tanto
ao nível estatal como não estatal, para a afirmação do poder geopolítico da
Federação Russa.
O Olho Digital Invade a Esfera Privada
O mundo das tecnologias é complexo e, muitas vezes, usado sem plena consciência
do que se passa dentro da nossa própria esfera privada. É certo que a maioria
das pessoas não detém um nível de literacia digital5 que lhes permita
compreender os meandros do computador que operam em suas casas. Tal como
Morozov refere no seu livro e os especialistas em segurança informática
atestam, é mais fácil minimizar os riscos do uso das tecnologias ao nível da
infra-estrutura do que tentar domesticar os utilizadores de uma determinada
tecnologia (Morozov, 2011, pp. 146-147). Sendo completamente ingénuas, também
devido à sua iliteracia digital, muitas pessoas aceitam executar programas que
recebem no seu email, porque o nome constante no remetente é um conhecido ou
amigo ou porque descarregam estas aplicações de sites que, supostamente, são
confiáveis. Estas pessoas nem imaginam que este email ou o site foram
manipulados de modo a fazer passar-se por alguém conhecido ou por um site de
confiança e, no entanto, o programa que estão prestes a executar não é mais do
que um Cavalo de Tróia que será instalado, em segredo, no seu computador e
enviará todo o tipo de informações a quem o desenvolveu. Trata-se de um
panóptico digital bastante elaborado que permite a recolha de informação
relativa à pessoa que o instalou sem saber da sua verdadeira função. Como
refere Morozov, estas pessoas executam o software, supostamente enviado pelo
amigo, da mesma forma que aceitariam jantar na sua casa sem medo de serem
envenenados. Deste modo, quem cria e envia estes emails está, na realidade, a
criar uma rede de mini-panópticos que invade a nossa esfera privada,
espalhando-se por milhares de pessoas em todo o mundo. Relativamente a este
tópico, a Rússia demonstra já ter adquirido uma grande mestria, como se provou
com os ciberataques à Estónia e outras antigas Repúblicas da União Soviética,
na utilização de Cavalos de Tróia e outras tecnologias semelhantes.
Tal como descreve Morozov, e em termos comparativos, podemos observar como as
tecnologias televisivas totalitárias do Panóptico no romance de Orwell (1949),
intitulado 1984, podem tornar-se realidade e entrar em nossas casas, pelas
nossas próprias mãos sem necessidade de consentimento.
Evolução da Vigilância para a Auto-Vigilância Colectiva
Depois dos ataques do 11 de Setembro em Nova York, tem sido comprovado que o
modelo da Guerra Fria, de construção de um escudo anti-míssil em redor da
Federação Russa, não tem qualquer tipo de eficácia contra um tipo de guerra que
é, cada vez mais, individualizada. A adaptação aos modelos actuais de guerra
demonstra que a eficácia de uma super rede de informação, num formato
superpanóptico, é bastante superior aos modelos de guerra convencional. A Era
da Informação demonstra que o que é necessário é um conceito de uma mega base
de dados, constituída por muitas outras bases de dados, gerida e mantida por
uma entidade do tipo Instituto de Gestão da Totalidade da Informação, onde
toda a informação relativa aos cidadãos possa ser mantida e constantemente
actualizada, desde transacções bancárias até à marca do leite que é comprado no
supermercado e, finalmente, cruzado com registos do estado por forma a traçar
os perfis de toda uma população e procurar por padrões de comportamento
suspeitos, não apenas colectivamente, mas também individualmente (Andrejevic,
2006, p. 245).
A junção de bases de dados privadas e públicas, e muitos outros tipos de
informação já disponível em bases de dados espalhadas por várias entidades,
juntas numa super base de dados, prova ser mais eficiente do que um escudo
anti-míssil e pode prevenir o acontecimento em vez de retaliar.
Uma das evoluções verificadas na Era Digital é a vigilância em rede. Já todos
conhecemos o conceito de Big Brother, mas uma das consequências da
proliferação das tecnologias digitais é a introdução do conceito de Little
Brothers.
Tal como vimos um pouco acima, no tópico O Olho Digital Invade a Esfera
Privada, existe uma forma de violar a esfera privada dos cidadãos, colocando
pequenos olhos digitais nas suas casas e mãos, utilizando para esse efeito os
seus próprios computadores e telemóveis. Este é o conceito de Little Brothers
que, em conjunto com o Big Brother que recebe e processa todas as informações
enviadas pelos Little Brothers, cria uma rede de informação distribuída e
descentralizada (Andrejevic, 2006, p. 337). Este tipo de rede não é mais do que
uma apropriação da tecnologia de modo a permitir uma tarefa de vigilância de um
para muitos, tornando-se mais eficaz e mais rápido recolher informação.
Uma outra evolução do conceito original de Panóptico, na Era Digital, é o
conceito de Panóptico participativo de duplo sentido ou Auto-Vigilância
Colectiva. Andrejevic (2006) refere no seu livro este conceito de Reg Whitaker.
O princípio é simples. Representa a forma de submissão consensual à vigilância,
porque os vigiados também vigiam. Como Mark Crispin Miller refere, numa simples
reformulação do conhecido slogan Big Brother is watching you, citado por
Andrejevic, Big Brother is you, watching.
Andrejevic refere ainda que, actualmente, com as tecnologias a permitirem a
emergência da vigilância distribuída, a amplificação do modelo de Panóptico
depende sobretudo da relação entre ser vigiado e vigiar.
Um exemplo deste modelo é precisamente o modelo imposto pelo Facebook Chat em
que para visualizar quem está online, o utilizador necessita de também estar
online e, assim, também ser visto. Existe uma certa troca necessária para que o
acto de vigiar possa ser efectuado.
Este tipo de modelos não está apenas a habituar as sociedades a um regime de
vigilância em que todos sabemos que em determinado momento podemos ser
vigiados, mas também está a criar uma cultura de habituar as pessoas a
vigiarem-se umas às outras (Andrejevic, 2006, p. 337).
Teoria dos Media como Suporte do Panóptico Russo
Já vimos no tópico A Era Pós-Soviética e a Explosão das TIC que os anos Putin
no Kremlin têm sido bastante duros sobre a imprensa televisiva, menos duros com
a imprensa escrita e, de alguma forma, mais brandos com a imprensa e fontes de
informação online. Sabemos também que a imprensa online está a suplantar a
imprensa escrita, não apenas na Rússia, mas em todo o mundo, e que são os mais
letrados e os jovens os maiores consumidores de notícias online.
No entanto, quem vive, ou permanece na Rússia por algum tempo, apercebe-se de
que o governo é flexível no que respeita a notícias ou conteúdos sobre vários
aspectos da vigilância existente no país. O próprio facto de existir uma lei
federal que permite diversas actividades proibidas pela constituição, demonstra
claramente que o governo de Putin não faz um grande esforço para esconder as
suas actividades.
Tal como Morozov (2011, p. 147) refere, a simples passagem de uma informação,
mesmo que falsa, sobre as novas tecnologias estarem a ajudar o governo a
implementar ferramentas de vigilância que, por sua vez, ajudam a apanhar
criminosos, é suficiente para que a consciência daqueles que poderiam cometer
algum tipo de comportamento não aceite, os condicione a não agir.
Sendo parte fundamental do conceito de Panóptico a consciência da existência da
vigilância, este cenário demonstra um claro objectivo em manter a população
informada sobre a possibilidade constante de vigilância, incrementando, assim,
a já existente consciencialização do ideal de Panóptico.
Conclusão
Uma nova forma de poder nasceu, durante o século XVIII, na Rússia e continua
nos dias de hoje em actividade plena. O poder da vigilância.
Nos finais do século XVIII, estavam reunidas as condições para o surgimento
desta revolução: os irmãos ingleses Bentham viviam em Krichev e trabalhavam
para o príncipe Potemkin como gestores das suas indústrias, tendo, assim, a
possibilidade de realizar construções arquitectónicas. Para esse objectivo
importaram trabalhadores ingleses, especializados nesta área, que iriam formar
os camponeses russos iletrados. Seria necessário uma forma de controlar os
formadores ingleses que, por sua vez, necessitariam de controlar os
trabalhadores russos.
A Igreja Ortodoxa era a forma vigente do poder divino na terra e a arquitectura
das suas igrejas reflectia (e reflecte) uma forma de controlo sobre a
população, separando os actos religiosos divinos dos actos terrenos. Os Bentham
estudaram a sua arquitectura e aplicaram os seus princípios às construções
realizadas, de modo a obter um maior controlo sobre os trabalhadores. Esta
revolução arquitectónica está na base do pensamento moderno sobre a vigilância.
Estudando esta nova forma de vigilância e poder social, Foucault escreveu uma
série de textos em que analisa em detalhe as formas e espaços usados pelos
Bentham e as suas consequências sociais. Uma das mais importantes teorias é a
dualidade da relação entre o conhecimento e o poder, dualidade essa que está na
base do Panóptico moderno da Era Digital. A recolha em massa de conhecimento
sobre uma população. Esta é a nova forma de vigilância e controlo social que
está em prática em muitos países, mas, sobretudo, na democracia musculada
russa, onde o governo parece não ter qualquer relutância em mostrar a sua
vontade de vigiar, monitorar e controlar os media e a população, usando para
isso todos os meios ao seu dispor. A implementação da Lei Federal de 12 de
Agosto de 1995 Nº144-FZ, "Sobre as Actividades de Investigac¸a~o", que permite
todas as actividades de vigilância, descartando por completo os princípios da
Constituição Russa, é bem o exemplo disso.
Nenhum estado consegue vigiar todos os bloggers em simultâneo. Não existem
recursos financeiros para essa tarefa. Assim, à semelhança do conceito do
Panóptico, basta prender alguns indivíduos e tornar claro que todos os outros
podem ser vigiados e sofrer as mesmas penalidades. A consequência será a auto-
regulação dos restantes indivíduos, estes não cruzarão a linha que os separa da
liberdade e estas acções anularão qualquer pensamento crítico. Exemplo de tal
detenção é bem descrita neste artigo da Gazeta.Ru (Gerasimenko, 2007).
No entanto, em 28 de Julho de 2012, Putin assinou uma nova lei que estende as
possibilidades da lei anterior e coloca em prática um plano, ainda mais
intenso, de vigilância na Federação Russa. Com este novo plano, os serviços
secretos passam a ter mais liberdade e capacidade técnica de, em tempo real,
filtrar toda a informação que circula na Internet e conseguem, por exemplo,
construir listas detalhadas de quem visita o quê e quem procura que informação.
Além disso, conseguem ainda copiar e armazenar em gigantescas bases de dados
todo o tráfego internet de todos os cidadãos e entidades podendo,
posteriormente, analisar com mais detalhe a informação já filtrada
automaticamente. Relativamente à censura, este novo desenvolvimento técnico
permite ainda filtrar os conteúdos por peça sem necessitar de bloquear um site
inteiro. Por exemplo, podem anular a existência de um video específico no
Youtube sem ter de bloquear todo o site. Este novo sistema entrou em vigor na
Rússia nas últimas semanas de 2012 (Soldatov e Borogan, 2012) e representa uma
clara aproximação ao sistema centralizado de censura usado na República Popular
da China.
Não satisfeito com este novo Panóptico, Putin decidiu ainda aprovar outra lei
que permite ao estado a geolocalização de todos os veículos existentes na
Rússia e a obrigatoriedade de colocação de um dispositivo localizador em todos
os veículos que sejam produzidos na Rússia ou importados para ser vendidos
neste país. Este novo projecto, designado Era GLONASS (em russo: ), é
composto de um sistema de satélites russos de geolocalização com cobertura
mundial (idêntico ao sistema GPS dos EUA e, actualmente, único competidor deste
sistema), dispositivos de localização para os veículos e um centro de análise
de informação que recebe e processa as coordenadas de todos os dispositivos de
localização (Beilin, 2012).
O Panóptico russo continua, assim, a expandir-se e a aumentar a sua abrangência
sobre a população. Passou de uma forma de poder social localizado no século
XVIII para um Panóptico digital de massas no século XXI, composto por vários
mini-panópticos em cada lar e cada instituição, utilizando para isso a
apropriação da rede da Internet e o caminho da sua expansão indica que, em
breve, todos os pormenores da vida privada serão detalhadamente armazenados e
processados de modo a encontrar padrões de comportamento social reprováveis e,
consequentemente, serem alvo de repressão por parte do estado.
No entanto, a forma como temos conhecimento desta vigilância é, no mínimo,
curiosa. Todas estas implementações tecnológicas e leis são publicadas nos
media digitais, não sendo alvo de censura, levando a acreditar na Teoria dos
Media como Suporte do Panóptico Russo. É simples acreditar que parte deste
novo modo de poder é exercido pela consciencialização de que a vigilância
existe e pode afectar qualquer cidadão. À semelhança do princípio original do
Panóptico do século XVIII, em que o conhecimento da omnisciência da observação
representava, per se, uma forma de poder, a intenção do governo de Putin em
permitir que os media informem a população sobre todas estas novas formas de
vigilância, representa também uma forma de poder cada vez mais absolutista e
característico da evolução da democracia musculada para uma forma de estado
totalitário.
O Panóptico nasceu na Rússia absolutista do século XVIII e é na democracia
musculada da Rússia do século XXI que continua a desenvolver-se numa das suas
mais originais, extensas e tecnologicamente avançadas formas.