Conflitos territoriais em áreas protegidas de pequenas ilhas: a “ilha montanha”
do Pico (Açores - Portugal)
1.Introdução
O artigo aborda os conflitos territoriais relacionados com as áreas protegidas
em contextos insulares exíguos, tendo a ilha do Pico (Açores, Portugal) como
caso de estudo. Esta ilha representa um contexto emblemático para a conservação
da natureza, devido à extensão de espaço protegido (cerca de 35% do seu
território) e à implementação dum novo sistema de gestão da natureza na Região,
em 2007, que criou o conceito de Parque Natural de Ilha (PNI). Apesar de
inovadora, esta política regional de conservação da natureza ao nível local e
os múltiplos interesses dos atores socioeconómicos e político-administrativos
podem agudizar conflitos existentes ou gerar novos. Os objetivos do artigo são:
identificar, interpretar e espacializar os conflitos territoriais e os atores
envolvidos, analisar o contexto de aparecimento dos conflitos e dar contributos
para a sua resolução.
O texto está estruturado em seis pontos: para além da introdução, o ponto 2
problematiza os conflitos territoriais em contextos insulares exíguos; o ponto
3 introduz o caso de estudo e uma breve descrição da evolução da política
regional de conservação da natureza; o ponto 4 descreve a metodologia adoptada
para identificar e localizar os conflitos; o ponto 5 apresenta os resultados e
o ponto 6 discute-os e avança com as principais conclusões.
2.Problematização: Conflitos territoriais em contextos insulares exíguos
As pequenas ilhas são ecossistemas muito vulneráveis, devido às características
biofísicas, demográficas e socioeconómicas (espaço e recursos limitados, maior
exposição a alterações climáticas e riscos naturais, economias pequenas), que
constituem desafios adicionais para o desenvolvimento sustentável e a
conservação da natureza e da paisagem (Calado et al., 2007; Calado, 2008;
Lagabrielle et al., 2011). As atividades humanas representam aí umas das
maiores pressões sobre os ecossistemas (van Beukering et al., 2007; Lagabrielle
et al., 2009). Portanto, o estabelecimento de áreas protegidas está considerado
entre as medidas mais eficientes para a conservação e a gestão da natureza, da
paisagem e dos recursos escassos neste contexto (Kerr, 2005; Niles &
Baldacchino, 2011).
Todavia, as áreas protegidas não são lugares isentos de conflitos (Lewis,
1996), especialmente quando o acréscimo de restrições relacionado com o seu
regime de proteção afeta a base económica local (Borrini-Feyerabend, 1996;
Castro & Nielsen, 2003). No que respeita aos contextos insulares, os
conflitos nas áreas protegidas podem agudizar-se devido à maior competição
pelos espaços e recursos limitados (Lagabrielle et al., 2011). Um conflito
surge quando as partes envolvidas são interdependentes, isto é, quando as
expectativas de uns condicionam as dos outros. As situações mais comuns para a
emergência de conflitos territoriais estão associadas: ao processo de
(re)apropriação do espaço geográfico e à disputa de recursos escassos; à
diversidade de valores em presença; às diferentes territorialidades dos
envolvidos; às relações de poder, refletidas nos processos de decisão (Schmid,
1998; Carrero Canela, 2009). Em contextos de profundas transformações
económicas, sociais e territoriais, os conflitos são quase inevitáveis, mas não
são necessariamente negativos, constituindo uma oportunidade para identificar e
resolver problemas (Lewis, 1996; Lockwood, 2010). O planeamento territorial,
sobretudo quando alicerçado em modelos colaborativos, pode constituir um
instrumento para a prevenção ou para a resolução de conflitos.
Assim, a gestão das áreas protegidas será mais eficiente se for adotada uma
abordagem inclusiva, baseada na colaboração dos atores e das comunidades locais
(Borrini-Feyerabend, 1996). O envolvimento efetivo dos atores no planeamento e
na gestão pode facilitar a identificação e localização proativa dos conflitos,
minimizando trade-off negativos entre conservação e desenvolvimento económico e
aumentando a perceção pública sobre os benefícios proporcionados pelos
ecossistemas e pelo estatuto de proteção (Lewis, 1996; Jamal, 2004).
3. Caso de estudo: o PNI do Pico
3.1 Enquadramento biogeográfico
O Arquipélago dos Açores, Região Autónoma de Portugal, localiza-se no Atlântico
Norte. Tem 9 ilhas habitadas, de origem vulcânica, distribuídas por três grupos
geográficos: Ocidental, Central e Oriental. O Pico pertence ao grupo Central e
é a segunda maior ilha dos Açores, com uma extensão de 447 km2 e 152 km de
costa. Na parte ocidental situa-se a montanha homónima, com altitude de 2351
metros, que lhe confere um valor paisagístico singular.
Em 2011, a população residente rondava os 15000 habitantes. As áreas urbanas,
de pequena dimensão, localizam-se na faixa costeira. A base económica está
suportada na agro-pecuária (fileira do leite e da carne). O turismo de natureza
está em crescimento, sendo a montanha um dos focos da atração turística, que
justificou o investimento do governo regional numa "casa da montanha", a meia
encosta (1100 metros), para controlar e apoiar o único acesso ao trilho que
permite a subida.
A combinação entre isolamento geográfico e fatores geofísicos (clima, natureza
do solo) originou grande variedade de sítios e habitats naturais dotados de
elevado interesse conservacionista (turfeiras, zonas húmidas, campos de lava)
onde abundam espécies endémicas. A ilha do Pico distingue-se também pela
Paisagem Protegida da Cultura da Vinha, resultante da transformação antrópica
de parte da zona costeira, a partir do século XV. Esta adaptação da viticultura
a características territoriais adversas (ausência ou reduzida espessura de
solo, terreno repleto de pedra, ventos com salsugem) deu origem a um património
histórico-cultural único, classificado como Património da Humanidade pela
UNESCO em 2004 (UNESCO, 2004). A zona inclui um notável padrão de muros
lineares, paralelos e perpendiculares à linha de costa, onde as vinhas são
cultivadas em chão de lava negra em milhares de pequenos e contíguos lotes
rectangulares (currais ou curraletas), e um diversificado património edificado,
de apoio à vitivinicultura. A partir dos anos 50, a escassez de mão-de-obra, a
deslocação da população para meios urbanos e os elevados custos de produção
inerentes à especificidade desta cultura (impossibilidade de mecanização),
provocou o abandono dos sistemas tradicionais de produção de vinha em currais e
das áreas de cultivo, fragmentando parte das grandes propriedades em pequenas
parcelas com um elevado número de proprietários privados (UNESCO, 2004). Nos
últimos anos a produção de vinha foi retomada, potenciando a adega cooperativa.
A qualidade do ambiente e dos recursos naturais, assim como o património
paisagístico, levaram à designação de um conjunto de áreas com diferente
estatuto de proteção na Região, como veremos de seguida.
3.2 A política regional de conservação da natureza
Ao longo dos anos o enquadramento jurídico das áreas protegidas sofreu
alterações, refletindo a evolução nacional da política de conservação da
natureza. Após a criação de reservas pontuais, a adaptação da legislação
nacional que estabelece uma Rede Nacional de Áreas Protegidas[1] ao contexto
regional constituiu o primeiro enquadramento global para a criação duma rede de
áreas protegidas nos Açores[2], integrando reservas florestais e naturais. Mais
tarde foram incluídas as áreas da Rede Natura 2000 classificadas em 2004[3], as
áreas designadas ao abrigo de convenções internacionais para a proteção da
natureza e as Zonas Húmidas de Interesse Internacional (Convenção de Ramsar).
A administração produziu legislação também para proteção de espécies endémicas,
como a Erica Azorica (Urze), protegida pela Convenção de Berna e pela Diretiva
Habitat.
A pouca adequação do regime nacional à estrutura insular e as dificuldades de
gestão das inúmeras áreas referidas (com objetivos e orientações de gestão
diferenciados) levaram a administração regional a criar o conceito de Parque
Natural de Ilha (PNI) em 2007[4], procedendo à revisão e reclassificação da
rede de áreas protegidas de acordo com o regime de categorias de gestão da
União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) (Dudley, 2008;
Calado, 2008; Fonseca et al., 2013).
Em consequência da aplicação deste regime jurídico e de gestão, a Rede de Áreas
Protegidas dos Açores é atualmente constituída por um sistema de nove Parques
Naturais terrestres (um por cada ilha) e um Parque Marinho. Cada Parque será
dotado de um plano de natureza especial e terá uma entidade gestora própria
(órgão de gestão de área protegida por ilha).
No Pico as áreas protegidas mais emblemáticas são a Reserva Natural da Montanha
(classificada em 1982[5]), a Paisagem Protegida de Interesse Regional da
Cultura da Vinha da Ilha do Pico[6], as áreas integradas na Rede Natura 2000 e
um Sítio Ramsar.
Em 2008 foi instituído o Parque Natural da Ilha do Pico (PNI), incluindo as
áreas protegidas existentes e criando outra. O PNI do Pico constitui, assim,
uma unidade integrada de 22 áreas protegidas, pautada por objetivos de gestão e
conservação que contempla espaços com particulares aptidões para a conservação
da natureza, da paisagem e dos recursos naturais. A sua extensão cobre 35% da
ilha, abrangendo sobretudo: áreas ocupadas pela montanha e pelo planalto
central com aspetos geológicos e ecológicos notáveis; troços litorais
fundamentais para a conservação dos recursos marinhos; e uma área de elevado
valor cultural e paisagístico, ocupada pela cultura da vinha.
Apesar do esforço da administração regional em criar um modelo inovador de
gestão das áreas protegidas, o processo de planeamento, ainda não iniciado,
deverá ponderar aspetos que indiciam dificuldades de gestão, nomeadamente:
áreas com valias ambientais diferentes, às quais estão associados objetivos de
preservação distintos; pressões de ocupação diferenciadas, geradoras de
conflitos territoriais pela disputa de recursos escassos; múltiplos atores
envolvidos na gestão, nem sempre em sintonia.
4. Metodologia
A pesquisa desdobrou-se na identificação e espacialização dos conflitos
territoriais, no posicionamento dos atores e na análise crítica dos planos de
ordenamento em vigor.
4.1 Identificação dos conflitos
A perceção dos conflitos apoiou-se na abordagem aos atores e na análise crítica
dos planos de ordenamento. No primeiro caso foi questionada a perspetiva dos
atores em relação ao PNI. No segundo caso, foram identificados os problemas
associados aos instrumentos de ordenamento do território da responsabilidade da
administração regional, com objetivos direcionados para a conservação da
natureza, pois parte das áreas do PNI já estão sujeitas a orientações
específicas de planeamento.
4.1.1 Abordagem aos atores
A abordagem aos atores envolveu duas etapas:
* Classificação dos atores. Os principais atores foram identificados pela sua
natureza ou área de atividade, apresentando interesses diretos ou indiretos
na área do PNI e/ou sendo suscetíveis de serem afetados pelas medidas de
gestão. Assim, foram selecionados os representantes de entidades
governamentais (administrações municipais e autoridade gestora do PNI), da
organização não-governamental regional para a defesa do ambiente (com
representação formal na ilha) e das associações relacionadas com as
atividades económicas (pesca, agropecuária, vitivinicultura e laticínios). Na
ausência de uma estrutura organizada para representar os interesses do setor
do turismo, foram selecionadas empresas de alojamento turístico (hotel e
turismo rural), de animação turística e de atividades náuticas. Para além
disso, foram escolhidos os representantes de associações ligadas a atividades
lúdicas (pesca desportiva, caça, guias de montanha) e a outras atividades que
interagem com turistas (taxistas). Foram ainda incluídos órgãos de
comunicação social, quer pelo seu conhecimento da realidade local, quer pelo
seu contributo na divulgação de informação e na formação de opinião (lista
dos atores no Anexo_I). Subsequentemente, os atores foram classificados em
quatro categorias: administrações municipais; autoridade gestora do PNI;
atores económicos - estruturas associativas e/ou empresários ligados aos
setores económicos (agricultura/vinha, pecuária, indústria agroalimentar,
pesca e turismo); e atores socioculturais (ONG, associações lúdico-
recreativas e media);
* Auscultação dos atoresatravés de entrevistas semiestruturadas (Julho de
2011), que focaram: opinião geral sobre o PNI e os seus limites; benefícios e
constrangimentos do Parque para a ilha e para a atividade de cada ator.
O tratamento apoiou-se em três matrizes: expectativas/atores; benefícios/
atores; constrangimentos/atores, para identificar os interesses conflituosos e
os interesses conciliáveis/sinérgicos, condição essencial para posterior
mobilização dos atores em redor da sua superação/minimização ou promoção,
respetivamente.
4.1.2 Análise crítica dos planos de ordenamento
O ordenamento do território em Portugal dispõe de instrumentos com diferentes
funções: i) desenvolvimento territorial; ii) planeamento territorial; iii)
política setorial com incidência territorial; e, iv) natureza especial. Os
planos de natureza especial são dirigidos à gestão dos recursos naturais. A
análise crítica dos planos de ordenamento que incidem no PNI considerou apenas
os de responsabilidade da administração regional, vocacionados para a
preservação do ambiente e biodiversidade[7]:
* Plano de Ordenamento das Bacias Hidrográficas das Lagoas (POBHL, 2009), -
orientado para a preservação da funcionalidade ecológica das Bacias
Hidrográficas das Lagoas e a gestão dos seus recursos hídricos;
* Plano Sectorial da Rede Natura 2000 (PRN2000, 2004), que define o âmbito e as
medidas de conservação das áreas integradas na Rede Natura 2000;
* Plano de Ordenamento da Paisagem Protegida de Interesse Regional da Cultura
da Vinha da Ilha do Pico (POPPVIP, 2006), que visa a conservação do
património cultural através da valorização do património paisagístico e o
fomento da atividade vitivinícola.
A análise incidiu sobre a identificação dos objetivos definidos pelos planos,
os problemas aí apontados e as soluções preconizadas.
5. Resultados
Os resultados integram a interpretação das entrevistas aos atores, a análise
crítica dos planos selecionados e a espacialização das áreas com objetivos
conciliáveis e conflituosos em áreas protegidas na ilha de Pico.
5.1 Perspetiva dos atores
As entrevistas permitiram evidenciar as expectativas dos diferentes atores
sobre o PNI bem como os benefícios e constrangimentos que associam à sua
criação (Anexo_II). A sua interpretação mostra os posicionamentos diferenciados
por parte dos atores (administração local e regional, económicos e
socioculturais).
Nas expectativas declaradas pelos atores face ao PNI (Tab._1) constata-se:
* a revisão dos limites do parque (devido à perceção negativa da sua extensão
excessiva), pretendida por diversos atores (8 de 18);
* outras expectativas, relacionadas com interesses próprios ou particulares,
tais como abastecimento de água e captura de lapas, (referidas por 7 dos 18
atores).
A visão do PNI como instrumento de proteção da natureza e de gestão sustentável
dos recursos é escassa, sendo as expectativas E6 e E7 apenas mencionadas por 2
e 3 atores, respetivamente. Nos benefícios (Tab._2) observa-se a posição pouco
favorável das administrações locais face ao PNI, que não apontaram benefícios
(B5). Já os atores económicos e socioculturais reconheceram vantagens
associadas ao reforço do turismo (B2) (9 de 18) e à preservação dos recursos
naturais (B1) (6 de 18). Nos constrangimentos (Tab._3), os que recolhem
unanimidade dos atores económicos e socioculturais e da administração regional
são: redução das pastagens (C4); limitações à construção (C9) e proteção da
urze (C6) na área de pasto e na vinha.
5.2 Análise crítica dos planos em vigor
Na área do PNI incidem três planos, com objetivos focados na preservação dos
recursos naturais e na valorização da paisagem: dois planos especiais e um
plano setorial.
O Plano de Ordenamento das Bacias Hidrográficas das Lagoas (POBHL, 2009)
estabelece orientações para as bacias hidrográficas das principais lagoas
(Caiado, Capitão, Paul, Peixinho e Rosada). Segundo a classificação do PNI,
todas as lagoas são abrangidas pela Área de Paisagem Protegida da Zona Central.
As lagoas do Caiado e do Paul estão também incluídas noutras áreas do PNI.
O Plano Sectorial da Rede Natura 2000 (PRN2000, 2004) define o âmbito e o
enquadramento legal das medidas de conservação dos habitats e das espécies da
fauna e flora selvagens nas áreas integradas na Rede Natura 2000, todas
abrangidas pelo PNI.
O Plano de Ordenamento da Paisagem Protegida de Interesse Regional da Cultura
da Vinha da Ilha do Pico (POPPVIP, 2006) incide na respetiva área de paisagem
protegida, que ocupa 3.078ha, dos quais 987ha estão classificados como
Património da Humanidade e os restantes designados como área tampão. O PNI
abrange a totalidade desta área.
Em termos gerais, os objetivos do POBHL e do PRN2000 são conciliáveis: reduzir
as áreas de pastagem, combater a eutrofização das massas de água (lagoas) e
conservar espécies e habitats endémicos. As medidas propostas são diversas,
nomeadamente: cessação das práticas de pastoreio nas bacias hidrográficas e
renaturalização destes espaços, recuperação de áreas naturais degradadas,
interdição da utilização de água das lagoas para fins agropecuários
(abeberamento de animais e extração por auto-tanques).
Os objetivos e as medidas do POPPVIP têm um caráter menos conservacionista,
visando a manutenção da paisagem cultural da vinha, através da recuperação e
reabilitação da atividade vitivinícola e dos seus elementos peculiares, e o
incremento da atividade, em complementaridade com o turismo e outros setores
económicos.
A Tabela_4 resume os objetivos de planeamento e gestão consagrados nos três
planos, os problemas/conflitos nas respetivas áreas de intervenção aí apontados
e as soluções preconizadas.
5.3 Localização dos conflitos
Em termos espaciais, os pontos críticos associados aos conflitos territoriais
estão referenciados a quatro subáreas: montanha, zona central, coroa intermédia
e faixa costeira (Fig._1). Embora o PNI abranja todos os anéis, as áreas
protegidas concentram-se maioritariamente na faixa costeira, na zona central e
na montanha.
Os conflitos ligados ao uso do espaço rural e natural ocorrem sobretudo no
núcleo central da ilha (zona central e montanha). Aí destacam-se:
* a intensificação do uso da montanha para lazer com potencial alteração da sua
capacidade de carga, associada quer ao incremento da exploração das
atividades turísticas ao longo do ano, quer à possibilidade de criação de
novos trilhos (Anexo_II) que pode entrar em conflito com os objetivos de
conservação do sítio;
* a expansão das pastagens, com consequente aumento das pressões sobre as áreas
de maior valia para a conservação da natureza e da biodiversidade (planalto
central), induzidas por atividades agropecuárias e outras possíveis
conversões de uso do solo (de natural ou seminatural em floresta de
proteção). A conversão de áreas naturais de altitude (como zonas húmidas,
turfeiras e prados naturais) em pastagens resulta em conflito explícito com
os objetivos de conservação de espécies e habitats[8] e com os problemas mais
evidenciados pelos planos que abrangem a zona central (POBHL; RN2000).
Contudo, o impedimento do alargamentodas pastagens, com conseguinte redução
da rentabilidade das explorações agropecuárias e da unidade industrial
(fábrica de queijo), foram constrangimentos relevados por muitos atores;
* a degradação da qualidade da água, devido ao uso múltiplo dos recursos
hídricos (abeberamento de animais, extração de água para apoio a lavoura e
produção de energia). Estes problemas, tratados pelo POBHL, encontram-se em
resolução, estando já implementadas algumas das medidas aí propostas
(reconversão das pastagens em espaços renaturalizados, construção de tanques
para abeberamento dos animais fora das bacias hidrográficas das lagoas).
As áreas de pastagem na zona central aproximam-se dos 18.000ha, estando 35% em
áreas protegidas (zona de conflito). Outros 19% foram identificados como zona
de potencial conflito, devido ao risco de uma futura conversão das áreas
naturais.
Os conflitos com incidência na coroa costeira estão associados a:
* restrições à construção na zona de Paisagem Protegida. Este conflito
manifestou-se através da perceção negativa ligada às limitações da capacidade
edificatória. Os proprietários das explorações vitivinícolas expressaram
interesse de construção/ampliação quer de instalações de apoio à sua
atividade (adegas, armazéns, solares, etc.) quer de construção para
residência (principal ou secundária); os operadores turísticos defenderam
índices menos restritivos para a edificabilidade em espaço rural, como
condição para assegurar empreendimentos de qualidade (Anexo_II);
* rentabilidade da vitivinicultura (recuperação e reabilitação) e preservação
da paisagem cultural. A exploração da atividade vinícola resulta em conflito
com a presença de espécies vegetais (urze) e animais (coelho), citadas pelos
atores como pragas que comprometem a viabilidade da produção. A restrição à
caça (coelho) nas áreas protegidas e o estatuto de conservação de algumas
espécies (urze) incrementam este conflito (o corte da urze para a plantação
de vinha é admitido, mas o processo burocrático requerido desincentiva os
agricultores a adotar os procedimentos exigidos). A combinação entre a
ausência de práticas agrícolas e as condições geomorfológicas e climáticas da
ilha levaram à colonização dos currais abandonados por comunidades ecológicas
com elevada biodiversidade de espécies endémicas e invasoras.
6. Discussão e conclusões
A análise das entrevistas evidenciou a posição das quatro categorias de atores
face ao PNI. Os constrangimentos associados ao PNI foram os mais apontados
pelos atores, ao contrário dos eventuais benefícios. Dado o caráter inovador do
conceito de PNI, a administração regional deveria ter colocado particular
atenção na sua divulgação e nos seus propósitos, pré-requisito essencial para
um melhor acolhimento pela população. Apesar da discussão pública efetuada na
fase de reclassificação e delimitação das áreas protegidas, a pouca tradição de
participação da população exigia da administração uma atitude mais proativa
para cativar os atores locais, demonstrando o potencial intrínseco do PNI para
o desenvolvimento local, e o incremento de ações continuadas de divulgação e
promoção para uma eficaz concretização ao longo do tempo.
A análise efetuada distinguiu diferentes conflitos, existentes e potenciais/
latentes, induzidos pelo PNI, todos em redor da relação conservação da
natureza-biodiversidade/desenvolvimento da economia local. Esta apoia-se em
três atividades - agro-pecuária (agricultores e fábrica de queijo); turismo de
natureza, associado sobretudo à montanha e circunscrito a uma pequena parte do
ano; e vitivinicultura (produtores e adega cooperativa). Entre os diferentes
atores económicos não há conflitos diretos, pois nos processos de
(re)apropriação não disputam recursos naturais e as atividades desempenhadas
não são concorrenciais, embora os valores que os mobilizam sejam diferenciados.
Assim, sobressaem relações de neutralidade, sendo a conflitualidade focada na
entidade gestora do parque. As autoridades locais (municípios) tendem também
para a defesa dos interesses dos agentes económicos, embora procurem alguma
aproximação àquela entidade, de quem dependem para a resolução de problemas
específicos (nomeadamente abastecimento público de água). No entanto, apontam-
lhe um poder hegemónico, pouco abertura ao diálogo, focagem (exclusiva) em
objetivos de conservação. O consenso local encontrado está alicerçado no
entendimento que a Administração Regional com a tutela do ambiente impõe
restrições às atividades de terceiros, sem que ela própria demonstre capacidade
de cumprir aquilo a que se propõe ou de não o fazer da forma mais adequada (a
este propósito foi apontada, por exemplo, a deficiente gestão da "casa da
montanha"). Esta leitura é corroborada pelos media: defendem a
preservação do ambiente, por ser um recurso vital para a ilha, mas, sendo
insuficiente para sustentar a base económica local, não pode inviabilizar o
incremento das atividades instaladas.
Em termos espaciais, na faixa costeira concentram-se os conflitos gerados pelas
limitações à construção na zona da Paisagem Protegida. Além disso, a defesa do
património cultural conflitua com o incremento da atividade vitivinícola e, por
arrastamento, com o bom desempenho da adega cooperativa. Embora a exploração
das vinhas seja fundamental para a manutenção do estatuto de património da
humanidade, os interesses entre os pressupostos para a conservação e
recuperação da paisagem cultural (só mantida se economicamente rentável) estão
em tensão permanente. A esta conflitualidade acrescem os conflitos com a
conservação da natureza. De facto, a prática da atividade vinícola conflitua
com espécies protegidas ao abrigo de convenções internacionais (Convenção de
Berna), europeias (Diretiva Habitat e Diretiva Aves) e espécies predadoras
protegidas (pombo torcaz dos Açores) e não protegidas (melro, coelho),
apontadas como pragas pelos agricultores, devido aos danos que provocam nas
vinhas. Esta proteção pode constituir um desincentivo para a exploração
agrícola, levando ao abandono e subsequente degradação da paisagem,
comprometendo, no limite, a sua classificação. Perante os dois objetivos
estratégicos, de conciliação difícil, é indispensável definir prioridades. A
opção a favor da conservação do património cultural parece evidente, dada a
exiguidade, concentração e caráter identitário único da área ocupada pela
vinha. O problema pode residir na competência da entidade gestora do PNI,
focada na conservação da natureza e não no desenvolvimento sustentável duma
atividade económica e na gestão duma paisagem de valor cultural peculiar.
Para a resolução dos conflitos identificados, a entidade gestora do PNI deveria
adotar uma atitude mais colaborativa, envolvendo nos processo de decisão os
interessados e co-responsabilizando-os com os resultados, e mais flexível: por
um lado, reavaliar a área classificada e retirar da classificação de património
da humanidade os currais onde a vinha já foi substituída por agrupamentos de
espécies endémicas e com estatuto de conservação atribuído; por outro, em
articulação com os vitivinicultores, acompanhar o controlo das espécies que
comprometem a atividade. A espacialização e avaliação das áreas em causa podem
facilitar o diálogo com os atores, apoiando a definição de medidas consensuais.
Os benefícios alcançados seriam positivos para o turismo (mais área de vinha
reabilitada e cuidada), para a atividade económica em si mesma (maior produção,
mais empregos), e para a construção de um modelo de governança (cooperação dos
atores assente na confiança e reciprocidade). Embora pouco abordada, a
propriedade do solo é também crítica para o sucesso das exploração, sendo
fundamental encontrar mecanismos de aproximação entre proprietários da terra
não interessados na exploração e potenciais vitivinicultores sem terra.
No que respeita às restrições da capacidade edificatória na área da Paisagem
Protegida, o PNI deveria fazer uma reflexão crítica sobre as regras em vigor,
ponderando os ganhos e perdas. Tal podia ser equacionada em sede de revisão do
POPPVIP ou de elaboração do plano de ordenamento do PNI (neste caso em
coordenação com os objetivos e parâmetros estabelecidos em conjunto com a
UNESCO para a área classificada como património da humanidade). Assim, as
condições para a implantação de unidades de apoio ao turismo rural poderiam ser
revistas, mas sem comprometer o património natural e paisagístico, essenciais
ao desenvolvimento da atividade turística e à redução dos conflitos.
Outro conflito prende-se com a diminuição das áreas de pastagem na zona
central, em benefício de áreas naturais. Para os atores ligados à agropecuária,
apoiados pelas autoridades locais, esta circunstância penaliza a rentabilidade
económica das explorações e o funcionamento da indústria leiteira, com
prejuízos manifestos para a economia da ilha. Para minimizar este conflito
admitem-se como soluções:
* avaliação da possibilidade de conversão de área com predominância de espécies
invasoras em pastagem, por exemplo em zonas sem estatuto de proteção da coroa
intermédia;
* condicionar o alargamento das pastagens em altitude (na zona central) e
aplicar incentivos à extensificação agro-pecuária (por exemplo, integrando as
medidas do PRN2000 ) para não comprometer a rentabilidade económica da
agropecuária;
* integração do modelo de ordenamento do POBHL para o controlo do processo de
eutrofização das lagoas, suportando a cooperação dos atores para a
reconversão das pastagens nas bacias hidrográficas em espaços
renaturalizados;
* reforço das alternativas de abeberamento dos animais propostas no POHBL
(tanques localizados fora das bacias hidrográficas).
Tendo em conta a combinação destas medidas, a gestão do PNI deverá ponderar a
possibilidade de expansão da área de pastagem e a sua localização. No entanto,
a intensificação da atividade agropecuária pode ter, além da perda da
biodiversidade, outras consequências ambientais relevantes (maior risco de
erosão; reforço do consumo de água e diminuição da sua qualidade; aumento de
eutrofização das lagoas). Assim, deve ser efetuada uma cuidada avaliação
ambiental suportada no diálogo com os atores, que pode ser facilitado com o
recurso a metodologias de espacialização e ferramentas de visualização. De
facto, no aumento de pastagens a localização deveria ser criteriosamente
ponderada, pois há propriedades em solo com escassa vocação para a reconversão
(características geomorfológicas ou pedológicas).
O turismo foi o setor que melhor acolheu o PNI. Todavia, emergiram problemas
que deverão ser acompanhados e superados, para evitar a sua transformação em
conflitos. As principais críticas incidiram sobre: i) diminutas condições para
a instalação de unidades do turismo de natureza resultante do excesso de
restrições à edificabilidade; ii) gestão deficiente da casa da montanha
(insuficiência dos serviços prestados aos turistas); iii) subutilização da
montanha como recurso turístico (um único acesso, num curto período do ano). A
crescente divulgação da ilha como destino de excelência de turismo de natureza
estimula a ambição de ampliar as condições de subida À montanha (mais trilhos,
em todas as estações do ano). Porém essa intensificação pode vir a alterar o
equilíbrio de posições entre os agentes turísticos e a entidade gestora do
parque.
Por fim, a escassez dos recursos hídricos para as necessidades humanas e a
agropecuária não pode estar ausente das preocupações de gestão do PNI. Algumas
soluções foram já consensualizadas (bebedouros para o gado fora das bacias
hidrográficas, reconversão das lagoas do Capitão e do Paul para abastecimento
público) e estão em implementação, cabendo ao PNI acompanhar o seu reforço e
monitorização.
Em conclusão: o artigo aborda os conflitos territoriais relacionados com as
áreas protegidas em contextos insulares pequenos. A exiguidade territorial, a
par das políticas e medidas de conservação da natureza, estimulam os conflitos
associados à disputa pela utilização dos recursos escassos e protegidos. A
"ilha montanha", com características geográficas peculiares e parte do
território tutelado, é um caso de estudo emblemático.
A implementação da nova política de conservação da natureza definida pela
administração regional, consubstanciada na criação do PNI, agudizou ou
reconfigurou os conflitos locais, que tendem a gerar tensão crescente entre
atores e, no limite, podem condicionar os objetivos de partida. A audição dos
atores evidenciou as contradições entre os objetivos (conservacionistas) da
política regional e os interesses locais (de incremento da base económica)
perante a utilização de recursos escassos e permitiu sistematizar conflitos,
processos que os originaram, complementaridades e incompatibilidades. Dada a
importância da natureza como motor de desenvolvimento num arquipélago onde os
recursos naturais escasseiam, a reconfiguração da política de conservação
reuniu um consenso alargado da comunidade regional face aos objetivos e ao
instrumento adotado (PNI). Mas a aplicação do conceito a uma realidade
específica encontrou resistências e obstáculos inesperados. Por um lado, a
instalação da entidade gestora do Parque na ilha tornou mais evidente o atrito
com os atores locais, focados nos recursos enquanto suporte da base económica
da ilha; por outro, a conservação da natureza não pode inviabilizar a
utilização mínima dos recursos para a sustentabilidade económica local. O cerne
do conflito está neste desequilíbrio. A sua superação é indispensável para que
os envolvidos vejam as suas expetativas atingidas, embora nunca otimizadas
individualmente.