Entre história e ficção: O fracasso do homem de exceção. Une saison au Congo
(Aimé Césaire) e Lumumba (Raoul Peck)
A literatura e a história
Conseguirão a peça de Césaire e o filme de Peck dizer a história? Colocar esta
questão implica não só perguntar o que distingue uma tragédia e um filme de
ficção de uma obra histórica sobre o mesmo tema, mas igualmente o que esta
última pode fazer em relação à ficção. Com esta reflexão sobre a relação da
história com a ficção, sobre a maneira como a literatura consegue, num outro
patamar de verdade, dizer a história, tocamos o cerne de um debate essencial
que tem ocupado as ciências sociais e humanas. Não se trata aqui de pôr em
evidência a relação entre literatura/cinema e história, mas de questionar
especificamente a natureza desta relação hoje.
Desde finais do século xx assistimos, no campo da história, à aceleração de uma
mudança de paradigma, uma mudança iniciada nos anos 70. As noções emergentes
sublinham a magnitude da crise: "crise do tempo", isto é,
"crise do futuro" e "clausura do futuro" são expressões
que remetem para o que está em jogo. Se a história se interroga regularmente,
desde o século xix, sobre os seus pressupostos teóricos, a sua filosofia, as
bases da sua epistemologia, essa mesma história foi levada, no final do século
passado, a duvidar da impermeabilidade das suas fronteiras a práticas afins, da
sua capacidade de exprimir todo o passado, de apreender a natureza de certos
acontecimentos violentos.
É certo que as regras da crítica histórica e as técnicas de investigação
garantem ao historiador a possibilidade de trabalhar sobre um tópico apoiando-
se nos pressupostos da sua ciência, mas, em determinados pontos,
questionamentos precisos põem em causa as certezas. Dever-se-á notar, entre
outras, a questão da escrita da história, a natureza e os limites da verdade
resultante da operação histórica, o estatuto do testemunho e dos arquivos, a
relação da história com a literatura. Este questionamento, simultaneamente
epistemológico e filosófico, surge nos primeiros anos deste século no momento
em que jovens romancistas investigam a história traumática do século xx,
nomeadamente a Segunda Guerra Mundial e a Shoah, com o objetivo de dizer uma
história que esses próprios autores não conheceram. Os escritores em causa
voltam à história, apropriam-se de certas técnicas de investigação, trabalham
os arquivos, num contexto social em que as testemunhas diretas praticamente já
desapareceram. Esta literatura diz a história de maneira particular, revelando
uma outra relação não com o tempo, mas com a memória do tempo que passa, com o
que essa memória passou a significar para uma sociedade onde abundam os traços
materiais do passado. Restam poucas dúvidas de que a literatura - mas o
mesmo poderia ser dito sobre o cinema - investe no campo da história
quando esta é confrontada com os seus limites epistemológicos.
Será um pouco vão, a partir deste ponto de vista, querer constituir história e
literatura como par antitético, pois o que as distingue são, antes de tudo,
regimes de verdade diferentes aos quais o recetor não atribui o mesmo alcance.
Um romance, uma peça de teatro ou um filme sobre a Shoah apropriam-se de uma
série de acontecimentos e de atores sociais a fim de os transformar em intriga
e em personagens e, ao fazê-lo, criam discursos inscritos num contexto
histórico que explica, em parte, o que esses discursos significam. A verdade de
um tal texto de ficção é frequentemente acoplada às fontes históricas sem, no
entanto, se tornar numa obra identificada como histórica. Quanto aos
historiadores, confrontados com o acontecimento violento, socorrem-se da ficção
com o objetivo de tornar sensível a palavra muda, nomeadamente a da vítima
anónima.
É neste contexto de mistura de géneros e de práticas que se coloca com
premência a questão da verdade, tanto a da história como a do romance. A
verdade existe por si só, ou existirá uma verdade histórica e uma verdade
literária (Coquio, 2013)? Não se esgotará a questão da natureza da relação da
literatura com a história a tentar responder-lhe pois, como se sabe, estamos
perante dois regimes de verdade diferentes, dois regimes de verdade que
respondem a dois tipos de relação com a escrita, o que corresponde a um ponto
central. A suposta neutralidade da escrita histórica, baseada numa confusão
entre os pressupostos científicos que o historiador adota e a transposição para
a escrita, não passa de uma miragem pois não existe uma escrita-tipo comum ao
conjunto dos historiadores. É justamente isso que defende Patrick Boucheron,
historiador da Idade Média, num contributo sobre a relação entre ficção e
história:
A maneira com que o discurso do historiador garante a sua própria
cientificidade e se demarca da invenção ficcional (ou simplesmente da
suspeita que pesa sobre a possível indistinção entre o discurso
verdadeiro e o discurso inventado) não é nada mais do que um processo
narrativo [...]. (Boucheron, 2011: 49)
Por isso, o historiador escreve, utiliza processos narrativos, um estilo sóbrio
e académico, sem dúvida, mas tratar-se-á de uma escrita do mesmo estilo da do
romance? Pierre Nora tentou responder a esta questão apontando para um certo
número de diferenças entre a escrita da história e a escrita romanesca. O
problema é que, à semelhança dos que se debruçaram sobre esta questão, o que
Nora propõe a propósito da especificidade da escrita histórica poderia, sem
dificuldade, ser aplicado ao género romanesco.
Assim, argumenta que "[…] a história é o produto de um lugar social do
qual emana, tal como os bens de consumo são produzidos por uma empresa: há uma
fábrica da história" (Nora, 2011: 10). Poder-se-ia dizer precisamente o
mesmo, por exemplo, de um romance policial ou de ficção científica, ou mesmo
histórico. O autor acrescenta na mesma ocasião que "esta relação com o
corpo social é o próprio objeto da história"; ora, o romance existe
também e fundamentalmente em relação com o corpo social. Além disso, certas
afirmações do historiador causam problemas num outro âmbito. Quando afirma, por
exemplo, que "a história, de maneira distinta do romance que se pode
escrever apenas com a finalidade da distração, certifica a existência de um
mundo comum", poder-nos-emos questionar sobre que linha lógica Nora vê
entre esse romance escrito com a finalidade da distração e a história que,
essencialmente, confirma que partilhamos o mundo. Além disso, embora pretenda
abordar a especificidade da escrita, fala da história não como escrita mas como
disciplina e do romance não como prática literária mas como intenção (distrair
o recetor).
Nota-se que, quando se trata de distinguir a história da literatura, não é raro
o experiente historiador, ao reivindicar ser capaz de o fazer, contribuir ainda
mais para a confusão. Mona Ozouf, por sua vez, julga ter encontrado a principal
distinção entre as duas práticas na noção de verosimilhança. As benevolentes de
Jonathan Littell serve aqui de contraponto. Se existir um só erro neste
romance, defende Ozouf, então o leitor deve desconfiar do conjunto.
Aqui há uma fronteira cruzada, uma transgressão que abala a nossa
crença de leitor. E esta simples observação basta para mostrar toda a
distância que separa o discurso romanesco do discurso histórico: o
historiador não pode fazer Danton casar com qualquer uma. O
romancista pode, mas paga esta liberdade com o ceticismo do seu
leitor. (Ozouf, 2011: 14)
Uma vez mais é o historiador que confunde aqui os dois níveis de verdade. O
recetor, esse, sabe onde se encontra, sabe que tem um romance nas mãos, bem
documentado certamente, mas um romance. Quando se trata, no mesmo lugar, de
distinguir as práticas literárias e romanescas, Ozouf apoia-se primeiro em
critérios de cientificidade (e.g. o historiador não pode evitar o referente, as
datas e os feitos, as notas) antes de admitir que, no final de contas, tal
pouco importa pois estamos perante dois tipos de relação com a verdade (Ozouf,
2011: 22). Quanto à escrita, Ozouf e Nora parecem não ver o essencial,
nomeadamente que, se o historiador desenvolve um estilo - a "bela
linguagem", isto é, a eloquência fruto do ensino, de trabalhos
universitários, de leituras -, este distingue-se do trabalho literário
sobre a língua.
Neste âmbito, a literatura e o cinema dizem a história, mas num contexto
particular onde a memória (o lado afetivo da relação do homem com o seu
passado) importa tanto como a história (a abordagem científica ao passado). E,
se a noção de verdade está de regresso nos discursos e nas preocupações
epistemológicas, fá-lo acompanhada de outras noções tais como memória
justamente, mas também catarse, justiça, reparação (Coquio, 2013). A Europa no
século xx, esse continente de trevas, como lhe chamou o historiador Marcus
Mazower, pôs-se, sob o efeito da justiça, a voltar ao seu passado tanto através
da memória como da história. Ricoeur identificou este momento de confusão em
que emerge a noção de dever de memória, esta "memória compelida"
posta em concorrência com a história concebida como disciplina científica. Esta
injunção parece fixar os termos da alternativa: lembrar-se, através de uma
multitude de comemorações e de cerimónias, ou estudar o passado em toda a sua
complexidade. Ricoeur via neste dever um aspeto duplo, "como se impondo
de fora ao desejo e como exercendo uma coação sentida subjetivamente como
obrigação" (Ricoeur, 2000: 107). É do âmbito então da justiça conjugar
estes dois aspetos a fim de permitir ao corpo social retirar da rememoração um
ensinamento, bem como uma nova ética para o futuro. É certo que Ricoeur
considera o dever de memória perante a Segunda Guerra Mundial, e nunca em
relação ao colonialismo e aos seus crimes; contudo, as reflexões do filósofo
ajudam a pensar uma França, uma Bélgica ou um Portugal pós-coloniais onde o
Estado reconheça os seus crimes perante o Outro, o que - além da
possibilidade de fazer justiça - favorece a emergência de uma história
partilhada que deixe de ser uma história em conflito (ibidem: 108).
Recordar as vítimas da Shoah, sem dúvida, mas é necessário igualmente recordar
o sofrimento ignorado, produzido em grande parte como não existente, desses
Outros brutalizados pela Europa durante o período colonial. Como lembrou
Raphaëlle Guidée (2013), é por as vozes das vítimas se apagarem que está
emergindo a injunção imperiosa: é necessário contar, pois o esquecimento é
quase tão monstruoso como o próprio crime. Face ao crescimento do número de
vítimas e de oprimidos, acrescenta, tornou-se impossível para a história ter
garantia exclusiva da verdade; o recurso à arte em geral, e à literatura em
particular, torna-se indispensável se quisermos aproximar-nos um pouco mais da
realidade do sofrimento. A literatura e o cinema encontram-se, desta maneira,
na confluência das noções de regime de verdade, de memória e de história. Como
veremos mais à frente, ambos participam da história, dizem parcialmente a
história, e ao mesmo tempo coagem o recetor a lembrar-se de um passado mal
conhecido e frequentemente manipulado por um discurso anterior.
Parece claro que Aimé Césaire e Raoul Peck dizem a história a partir de um
outro ponto de vista, sem jamais perderem de vista a história hegemónica, mas
- e esta questão é essencial - dizem-na num contexto diferente: o
primeiro pega em Lumumba quando ainda não tinha tido lugar o ato de reparação
da parte do opressor, o segundo quando o Estado belga analisa aprofundadamente
a sua participação no crime e apresenta o seu pedido de desculpas à família e
ao povo congolês (a reparação moral do crime cometido em relação aos outros de
que falava Ricoeur). A partir deste ponto de vista, Césaire e Peck são ambos
apanhados (e empenhados) na história fazendo, ao mesmo tempo, parte da história
das suas práticas respetivas.
A importância do contexto histórico para entender o propósito de Césaire e de
Peck
Para responder à questão colocada no início deste artigo é preciso ter em conta
as especificidades dos dois meios, mas igualmente o contexto no qual as duas
obras foram produzidas. A primeira versão da tragédia de Césaire data de 1966,
momento em que Mobutu assegura o seu poder sobre o Congo, após o esmagamento da
rebelião no Leste do país com a ajuda de tropas belgas. Contemporânea dos
factos que servem de base à peça, esta descreve a queda de Lumumba, o homem de
exceção, e a emergência de um poder neocolonial. Césaire conhece o papel
desempenhado pelo Estado belga na morte do primeiro-ministro, sabe que sem esse
papel teria sido difícil a Mobutu a ascensão ao poder e a sua manutenção.1
Quando apresenta a versão definitiva da peça em 1973, Mobutu, que seria em
breve considerado "o dinossauro" por causa da sua longevidade
política (Braeckman, 1992), reina incontestado sobre o Zaire, sempre com o
apoio dos Estados Unidos, da França e, em menor grau, por causa das
nacionalizações consecutivas à política de autenticidade, da Bélgica. Torna-se
assim necessário reler esta peça à luz das descolonizações, das intervenções
armadas das ex-potências coloniais e da instauração de regimes fortes
estruturados em torno de partidos únicos.
Além disso, Une saison au Congo não faz realmente sentido se não for integrada
no que denominamos dramaturgias da descolonização, um conjunto de textos, a
maioria tragédias, que colocam em cena personagens de exceção empenhadas na
luta pela independência dos seus países respetivos. Como outros dramaturgos dos
mundos africanos e das Caraíbas, Césaire descreve uma personagem, neste caso
Lumumba, resistindo, em nome do coletivo, à opressão colonial e neocolonial.
Se, na sua tragédia, capta Lumumba no momento em que começa a sua vida pública
em Léopoldville - Peck fará o mesmo - é por ter decidido descrever
a curta carreira política e a morte daquele socorrendo-se da estrutura da
narrativa messiânica. A sucessão de acontecimentos que conduzem à queda do ser
de exceção - em fidelidade com a realidade - tendem a dotá-lo de um
significado para a comunidade. Dito por outras palavras, a maioria destas
personagens são apanhadas num jogo de tensões dialéticas, das quais não
conhecem todas as regras e, por isso, acabam por morrer, mas esta morte, pelo
seu lado sacrificial, acaba por apontar para a possibilidade de uma síntese
superior, a da nação unida vivendo num Estado democrático. A figura, oscilando
entre história e mito, dá assim sentido à coletividade.2
Se, em certos pontos, o filme de Peck segue a tragédia de Césaire, nomeadamente
no que diz respeito à transformação de Lumumba em personagem messiânica, o
contexto no qual se inscreve é diferente. Os anos 1990 marcam de facto uma
viragem nas relações entre o Estado belga e a República Democrática do Congo
(RDC). Uma série de fatores ocorridos na última década do século passado
explica em grande parte a natureza dessas mudanças. Em primeiro lugar, deu-se
em 1997 a queda do regime autoritário de Mobutu, através da pressão de uma
rebelião dirigida por Laurent-Désiré Kabila e apoiada por países vizinhos, em
que se incluía o Ruanda. Se a história das relações ambíguas entre o potentado
pós-colonial e uma parte do mundo político belga ainda está por escrever,
podemos já afirmar que as ligações entre os dois polos se tinham deteriorado
fortemente depois do início dos anos 90, em consequência, entre outros, do
massacre de estudantes na Universidade de Lubumbashi (11-12 de maio de 1990). É
também necessário ter em conta a mudança, na Bélgica, da maioria política a
nível federal em 1999, com a passagem dos democratas-cristãos para a oposição e
a criação de uma coligação inédita entre liberais, socialistas e ecologistas,
mais inclinados do que os seus predecessores a uma revisão do passado colonial
e claramente a favor de um tipo de relação diferente com Kinshasa. É neste
contexto que o sociólogo Ludo De Witte (2000) publica a sua investigação sobre
as circunstâncias da morte do primeiro-ministro congolês,3 publicação que está
na origem da comissão de inquérito parlamentar visando estabelecer oficialmente
a responsabilidade do Estado belga nesses acontecimentos. Para compreender o
contexto sociopolítico da criação desta comissão de inquérito, aparentemente um
caso único na história recente dos países colonizadores, é necessário ter em
conta a transformação institucional do Estado: uma estrutura federal em que
cada entidade federal se reposiciona em relação à história nacional. Por fim,
de maneira concomitante, uma série de manifestações culturais e de livros
desses anos interrogam o passado colonial de maneira crítica e informada
(Gillet, 2007: 73-75).
Contemporâneo dos acontecimentos políticos acima sublinhados, Lumumba de Raoul
Peck (coprodução franco-belga-alemã) estreia em 2000 e participa desse vasto
conjunto de textos de diversos tipos que regressam ao passado colonial. Torna-
se assim necessário ter em conta este contexto particular a fim de captar em
parte os significados da peça e do filme. É preciso também atender às suas
especificidades respetivas, pois a análise de uma peça e de um filme numa
perspetiva comparada convoca ferramentas narratológicas diferentes, adaptadas
ao seu objeto. Contudo, ambos os bens simbólicos têm em comum o facto de terem
evidenciado a importância, por um lado, das representações hegemónicas oriundas
das antigas metrópoles e, por outro lado, os jogos de tensão entre a cena
oficial construída como tal pelas representações mediáticas dominantes e os
bastidores da ação política, onde uma série de atores prepara a queda do
governo de Lumumba.
À semelhança do que se passa numa tragédia, a peça e o filme descrevem a queda
de um homem de poder, captando-o no momento em que, preso numa rede complexa de
causas, está prestes a cair. A escolha da palavra é essencial aqui, pois, se
Césaire e Peck basearam as suas produções respetivas num importante trabalho de
documentação, transformaram o ator político em personagem de ficção, mais
especificamente em personagem de tragédia. Embora Peck tenha iniciado o filme
com um cartão em que anuncia que se trata de "uma história
verdadeira", tudo na obra contribui para a ficcionalidade: a montagem, a
música de fundo, a voz-off de Lumumba a dirigir-se à mulher após a execução.
Tanto Une saison au Congo como Lumumba abrem respetivamente com uma cena e uma
sequência que assumem o seu estatuto de ficção.
Assumir a ficção para dizer a história
Sabemos que a cena de abertura numa tragédia tem uma função informativa: ainda
que se destine ao duplo recetor de qualquer texto de teatro, visa sobretudo o
espetador. Algumas personagens são assim incumbidas de o informar sobre o
cronótopo, a identidade e a função das personagens principais. A didascália
inicial de Une saison au Congo situa a ação num "bairro africano de
Léopoldville" e, do ponto de vista temporal, pouco antes da
independência. Césaire trabalha de maneira a induzir um efeito de veracidade ao
emaranhar a sua ficção com elementos verídicos. Assim, Lumumba é apresentado
como um caixeiro-viajante, isto é, o representante comercial encarregado de
vender cerveja Polar, o que a figura histórica foi de facto. Note-se que o
dispositivo textual duplica o dispositivo cénico virtual: o bonimenteur está em
cena, ator encarregado de vender a sua mercadoria, posição que ele aproveita
para resvalar do domínio do comércio para o da política. Dois polícias belgas
vigiam esta cena dentro da cena e informam o recetor da identidade do
revendedor. O teatro assume-se aqui como lugar de ficção, como ficção a ser
feita. Assim, a didascália da cena II indica que, entre idas e vindas, se
instala um bar africano enquanto a voz do tocador de sanza, cuja função é a do
comentador crítico da ação em curso ou então de anunciador do que se seguirá,
se ouve no fora de cena.
Por seu lado, a longa sequência de abertura do filme de Peck divide-se
claramente em duas partes. A primeira tende a mostrar, por um lado, que as
populações locais foram objeto de espoliação e de violências por parte das
autoridades coloniais e, por outro lado, através da montagem paralela, que a
origem do Estado pós-colonial deve ser procurada no Congo colonial. A sucessão
de representações fotográficas e fílmicas é reveladora da intenção inicial do
realizador. O filme começa com fotos da época a preto e branco, acompanhadas de
uma música de fundo, mostrando a Force Publique em manobras, seguida de uma
outra, também a preto e branco, de uma família anónima com ar triste a olhar
fixamente para a objetiva. A esta sucede-se, através da figura do esbatimento
encadeado, uma curta sequência fílmica mostrando, em grande plano, mãos a
segurar um copo de champanhe. Um novo esbatimento encadeado leva o recetor para
o período colonial com uma foto de trabalhadores negros a empurrar um carrinho
de mão, vigiados por brancos. É de sublinhar que se trata de um postal com a
seguinte legenda em francês e neerlandês: "Congo belga: os primeiros
meios de transporte". Um outro esbatimento encadeado leva-nos à festa
antes da passagem a uma nova foto de um anónimo tirada de frente. Sempre
através do esbatimento encadeado passamos a um grande plano de uma mão a cortar
um pedaço de carne de uma cabeça de porco. Sucede-se uma série de duas
fotografias, a primeira a mostrar duas mulheres agrilhoadas sob a guarda de um
soldado da Force Publique e a segunda um homem anónimo frente à câmara. A
sequência retorna então à festa, através do esbatimento encadeado, com homens e
mulheres, brancos e negros, a comer e a beber. Uma nova série de fotografias da
época intervém como contraponto à festa, primeiro a de um homem prostrado no
chão, algemado, submetido ao chicote; a esta sucede-se uma que representa três
funcionários coloniais com um negro sentado no chão frente a uma mesa sobre a
qual jazem dois crânios humanos. Note-se que - algo essencial no âmbito
desta análise - o grupo olha para a objetiva da máquina fotográfica. Uma
terceira imagem conclui a série: trata-se da execução de um negro anónimo por
enforcamento que foi objeto de um postal com a seguinte legenda "Execução
de um negro em Boma". A montagem leva então o recetor à cerimónia -
vemos aí Mobutu no seu trono rodeado de soldados e de convidados, os da festa
vislumbrados no início da sequência. O final desta sequência alterna uma foto,
a preto e branco, de um grupo de soldados da Force Publique com os seus
oficiais brancos, o retorno ao público da festa frente a Mobutu e uma última
foto a preto e branco de um outro público captado numa posição semelhante
(trata-se de uma cerimónia colonial). Um esbatimento a negro encerra esta
complexa sequência inicial.
Vê-se, desde o início, que Peck põe em cena, à medida que a interroga, a
questão da representação. Para o Norte colonial, o Outro colonizado
praticamente não existiu, a não ser através da representação fotográfica e
fílmica (lembranças de família, postais, reportagens). Lumumba não escapou a
este vasto sistema de representações e de construções mediáticas, tendo sido
apresentado ao público belga como um agitador perigoso vendido aos interesses
de Moscovo. Como foi sublinhado por Lassi e Tcheuyap, retornar à figura de
Lumumba significa igualmente retornar ao discurso mediático hegemónico a fim de
o desconstruir:
A questão central, é preciso dizê-lo, é a da palavra, da narração e
da representação. O discurso que justifica o empreendimento
imperialista mascarando todas as atrocidades coloniais de obras de
beneficência, tal como é ilustrado pela locução do rei dos Belgas, é
necessariamente desconstruído. (Lassi e Tcheuyap, 2009: 88; ver
igualmente Barr, 2011: 87)
Ter-se-á notado a importância do olhar nas fotos selecionadas por Peck:
sujeitos coloniais, todos anónimos, olham fixamente a objetiva da máquina
fotográfica e, através dela, o recetor. Que dizem os olhares tristes? Como
interpretar a foto de família em que ninguém esboça um sorriso? É a isso que
nos convida, igualmente, Peck ao mostrar-nos finalmente o público da festa da
qual tivéramos até então apenas segmentos: um grupo, também ele anónimo, fixa a
câmara com ar sério, frente a um Mobutu com postura hierática, face
imperturbável, separado do público por um cordão de soldados. A figura do
esbatimento encadeado, simultaneamente figura de retórica fílmica e efeito de
montagem frequentemente associado a uma cinematografia mais clássica (Vernet,
1988: 59-88; Villain, 1991: 114-116), permite aproximar duas épocas, mas
igualmente dois níveis de verdade, o da foto a preto e branco do período
colonial e o do filme a cores de Peck. Cabe assim ao recetor apreender o
sentido produzido pela aproximação: a montagem instaura uma relação lógica de
causa efeito entre a situação colonial exibida nas fotos e a situação pós-
colonial mostrada pelo filme. Por outras palavras, estamos na representação,
mas uma representação próxima, pelo menos após esta abertura, da realidade. O
presente explica-se aqui pelo passado.
Ao escolher uma montagem baseada numa figura de referência bem como numa
ligação lógica de causalidade, Peck insere Lumumba simultaneamente no cinema da
lisibilidade (Aumont e Marie, 2008: 45) e num subgénero cinematográfico, o
biopic, fundado nos mesmos princípios narrativos (Bingham, 2010). O pacto entre
esta prática e o seu recetor baseia-se, em grande parte, na credibilidade que
este dá às informações dadas ao longo do filme, pois terá de acreditar na
realidade dos acontecimentos (a conspiração contra Lumumba) sabendo-os
falsificados (trata-se de uma ficção). É esta exigência que explica a inserção
de um cartão no final desta primeira parte da introdução, que resume a história
do Congo em duas datas: 1885 (o Congo torna-se propriedade pessoal do rei
Leopoldo II) e 1960 (Lumumba torna-se primeiro-ministro). A afirmação que fecha
o cartão - "Esta é uma história verdadeira" - tende
evidentemente a reforçar a veracidade da narrativa fílmica que se seguirá, uma
narrativa que, para provar o seu respeito pela história, tenderá a reforçar a
sua lisibilidade, a fazer esquecer que se trata de uma ficção, algo que
constitui uma das marcas da cinematografia clássica (Aumont e Marie, 2008:
106). Ora, representar uma parte da vida de Lumumba coloca a questão do que se
mostra, e consequentemente do que se oblitera e da maneira de como se mostra.
Césaire, por seu lado, multiplicará os efeitos de distanciamento, de mise en
abyme, nomeadamente através dos comentários do tocador de sanza, da alternância
entre diálogos e partes cantadas, o que obriga o recetor a uma maior
vigilância, uma vez que lhe lembram constantemente que está perante uma ficção.
A segunda parte da introdução do filme representa um Lumumba ferido no interior
do carro que o leva para o local da sua execução. O que nos é dado aqui é o
ponto de vista narrativo que se encarregará da diegese. A personagem
autodiegética descreve, através de focalização interna, o que acontecerá ao seu
corpo: um plano aproximado mostra Lumumba com a boca fechada, o olhar fixando o
vazio, como que dirigido para si próprio, a sua mensagem provindo da banda
sonora como se se tratasse do seu espírito.4 Este endereçamento tem um duplo
recetor: de facto, para lá do tempo, através da ficção, Lumumba dirige-se à sua
mulher, mas também, através dela, ao recetor do filme. Duas prolepses de
estatuto diferente acompanham as palavras de Lumumba: a primeira mostra os dois
mercenários belgas encarregados de desmembrar e fazer desaparecer o corpo de
Lumumba e dos seus companheiros; a segunda, alicerçada em imagens de arquivo a
preto e branco, representa alguns planos breves de manifestações pró-Lumumba em
cidades anónimas na Europa ou nos Estados Unidos. A aproximação entre os dois
espaços-tempos através da montagem induz o recetor a conferir-lhes um estatuto
de veracidade semelhante, embora a primeira prolepse pertença ao domínio da
ficção, ainda que, no essencial, se aproxime do que se passou na altura,
enquanto a segunda remete para um outro regime de verdade, o das imagens
gravadas logo após o anúncio da morte de Lumumba.
A esta sucede-se uma analepse bastante surpreendente para o recetor, pelo menos
para o recetor pouco conhecedor de uma história que envolve múltiplos atores.
Reencontramos Lumumba em Léopoldville, pouco após o seu regresso de Accra, em
plena discussão com os seus adversários políticos do Katanga. As ameaças de
Moïse Tshombe ao futuro Primeiro-Ministro permitem, através da ligação da
causalidade, a montagem com a sequência seguinte, onde, sempre em focalização
interna, Lumumba relata a sequência de eventos (as palavras acompanham o plano
da traseira do camião que transporta os cadáveres dos três homens assim como o
material destinado a fazer desaparecer os corpos). É após esta introdução
complexa que começa a vasta analepse que conduz o recetor da chegada de Lumumba
a Léopoldville até à sua morte.
A partir deste instante, o filme de Peck e a peça de Césaire representam, em
parte, o que foram os últimos meses de vida de Lumumba, um e outro dando um
ponto de vista sobre a história do Congo independente. As duas obras
contribuem, com os meios do teatro e do cinema, para a edificação de um
discurso histórico relativo às razões que conduziram à queda do dirigente
congolês. Seria errado desvalorizar os textos com base no seu estatuto de
ficção: o regime de verdade da ficção difere certamente do da historiografia,
como vimos no início, mas não deixa de se tratar de uma verdade, que deve
apenas ser analisada com instrumentos diferentes. Como sinalizava há pouco, é
necessário compreender que a verdade da ficção depende do contexto no qual essa
ficção foi produzida. Por outras palavras, analisar uma peça ou um filme faz
sentido, em parte, se tivermos em conta o contexto de enunciação; em parte,
pois os significados de um texto (neste sentido tanto importa se se trata de um
filme ou de uma tragédia) jogam-se também na análise das suas características
formais e simbólicas. Assim, a análise de cenas da peça de Césaire e de
sequências do filme de Peck apenas fazem sentido quando inscritas numa
totalidade que envolva simultaneamente o texto e as suas estratégias narrativas
e retóricas e o contexto da enunciação. Este trabalho sobre a maneira com que a
arte produz ela própria discursos sobre a história faz ainda mais sentido
quando se trabalha a partir de uma perspetiva comparada, reveladora das
características inerentes a uma e outra prática artística.
Sabemos que a fonte de enunciação em Lumumba coloca a diegese do lado da
verdade, reivindicando darrealmente conta dos acontecimentos, com os nomes e os
lugares a remeter, por exemplo, para referentes identificáveis, com as
consequências que podemos bem imaginar quando um ator ainda vivo não se
reconhece no seu alter ego da ficção.5 Com Une saison au Congo, Césaire não
pretendia reproduzir mais ou menos fielmente a realidade, ainda que o trabalho
de preparação tenha sido importante, mas dar conta, utilizando a estrutura da
tragédia, da ascensão, da queda e da morte de Lumumba. Teve o cuidado de
modificar a maior parte dos nomes de personagens o que é certamente uma maneira
de tentar evitar certos aborrecimentos,6 mas que se pode igualmente perceber no
contexto de uma tragédia que pratica constantemente o distanciamento. Com
Césaire - no que é uma grande diferença em relação ao filme de Peck
- não se verifica uma linha narrativa clássica, ansiosa por atenuar os
sinais mais visíveis da ficção. O teatro de Césaire é, pelo contrário, todo
marcado pelo selo da mise en abyme, o teatro dentro do teatro, o recurso à
artificialidade assumida como tal. Por outras palavras, fale do rei Christophe,
de Lumumba ou reescreva Shakespeare, o dramaturgo impede o seu recetor de
aderir de maneira acrítica à fábula. Os diversos artifícios levam o mesmo
recetor a questionar os pontos de vista, o discurso dominante, as atitudes e as
tomadas de posição, em suma, a envolver-se por e numa tragédia pouco inclinada
à catarse de emoções.7
A peça e o filme contam assim, em parte, a história e, em certos momentos,
contam-na de maneira semelhante, como se Pascal Bonitzer, o autor do guião de
Lumumba, se tivesse dedicado, nessas alturas, a uma releitura da tragédia de
Césaire. É assim na sequência da prisão, durante a qual Lumumba é insultado e
maltratado por dois guardas, cuja ação é interrompida pelo diretor da prisão
(16'23). Este último anuncia ao prisioneiro a sua libertação por ordem de
Bruxelas de modo a poder participar, enquanto presidente do Movimento Nacional
Congolês, nos trabalhos da Mesa Redonda. Uma aproximação minuciosa faz aqui de
Une saison au Congo o palimpsesto que perfura Lumumba: os dois carcereiros do
filme insultam Lumumba de maneira idêntica, um deles descobre um texto curto no
qual o prisioneiro reclama a sua libertação a fim de poder deslocar-se à
Bélgica para participar nas negociações relativas ao futuro da colónia, o que
induz um diálogo no qual as palavras trocadas, assim como os gestos, são
praticamente idênticos.8
Tanto a peça como o filme passam de seguida do espaço ficcional congolês para o
de Bruxelas, durante as negociações belgo-congolesas de janeiro-fevereiro de
1960. Para indicar a mudança espacial, Césaire utiliza uma técnica recorrente
na linguagem teatral: "Um aviso cai da varanda; lê-se: 'Bruxelas,
sala da Mesa-Redonda'" (Césaire, 1973: 22). Este tipo de artifício
faz parte dos códigos do teatro e não impede a adesão do recetor, quer seja o
leitor ou o espetador. O espaço teatral tem, de facto, como particularidade
precisar apenas de uma convenção para funcionar: se uma didascália técnica,
como é o caso nesta ocorrência, indica que a ação tem lugar em Bruxelas, o
espaço ficcional surge imediatamente como tal. Este espaço dramático começa a
existir mesmo junto de um leitor que, neste ponto, não se distingue do leitor
de uma obra histórica sobre o mesmo tema. O cinema, por sua vez, não consegue
fazer a economia da representação detalhada do espaço ficcional realista
(existem certamente exceções da parte do cinema de autor). Peck construirá o
seu cenário de maneira a tornar plausível - o fazer como se do cinema da
ilusão - o salto no espaço e no tempo (os meios de transporte, a roupa,
os móveis pretendem invocar a Bélgica de início dos anos 1960). Ora, trata-se
de apresentar o plausível, não o verdadeiro: o espetador aceita acreditar ainda
mais por isso (o cenário, a história, as personagens) parecer plausível. É
possivelmente neste ponto que o trabalho do cineasta e da sua equipa técnica se
aproxima mais do trabalho do historiador quando este tenta devolver uma época
através da descrição tão fiel quanto possível do que ela foi materialmente.
No que diz respeito à Mesa Redonda, Césaire e Peck optam por representar não a
versão oficial das negociações mas as acomodações, os compromissos, as tensões
presentes nos bastidores. Além disso, Césaire coloca os seus
"banqueiros" na "antecâmara" da sala de negociações,
uma vez que é precisamente ali que, segundo o seu ponto de vista, se joga o
futuro do Congo. Para o capitalismo belga e o mundo da finança, a independência
não representa mais do que uma vicissitude que teria de ser gerida de acordo
com os seus interesses. O "quarto banqueiro" resume numa tirada o
que será o neocolonialismo no contexto de um Estado que dispõe de sinais
exteriores de independência. Notar-se-á que, no original francês, a personagem
se exprime em alexandrinos, forma poética de referência para a cultura
burguesa. Césaire salienta assim que a forma poética nunca é neutra e comporta,
ela também, a marca da cultura colonial:
Siga a ideia: o que querem eles? Postos, títulos,
Presidentes, deputados, senadores, ministros!
Finalmente o matabich! Bem! Carro, conta no banco
Vivendas, salários chorudos, não vou poupar.
Axioma, e isso é o importante: empanturrem-nos!
Resultado: o coração amolece-lhes, o humor torna-se-lhes suave.
Estão a ver pouco a pouco aonde o sistema nos leva:
Entre o povo deles e nós, ergue-se a sua tropa.
Se, pelo menos, com eles, na falta de amizade
Neste século ingrato sentimento obsoleto
Sabemos amarrar os nós da cumplicidade.
(Césaire, 1973: 24)
Após esta explicação poética, o coro dos banqueiros grita "Hurra! Hurra!
Viva a independência!". Toda a quarta cena do primeiro ato condensa,
segundo uma estética do domínio do grotesco, a emergência de um novo regime de
dependência que é posto em prática em numerosas antigas colónias: o
neocolonialismo, cujos mecanismos Nkrumah descreve no momento em que Césaire
prepara e escreve Une saison au Congo. Nesta cena, como em toda a tragédia, o
texto produz mudanças tanto no âmbito do que é representado (os quatro ou cinco
homens da didascália técnica estão "disfarçados de banqueiros de
caricatura: casaco, chapéu alto, grande charuto") como do modo de
representação (os banqueiros exprimem-se em alexandrinos), o que, impede a
adesão completa à ficção e desperta o sentido crítico do recetor. Este fica
assim mais inclinado para se interrogar sobre o que se joga nos bastidores das
negociações belgo-congolesas: Césaire parece dizer-nos que nem tudo é o que
parece nesta cena grotesca com implicações éticas ainda mais importantes, já
que a cena seguinte é a da festa da independência em Léopoldville. A
"multidão aplaudindo e alegre" celebra a sua independência ao ritmo
de Indépendance Cha Cha,rumba famosa de Grand Kallé e do African Jazz, enquanto
o recetor já sabe, após a cena anterior, que a festa será de curta duração.
Neste ponto, Peck procede de maneira distinta, pois a sequência da Mesa Redonda
é estruturada em torno de três espaços: a sala onde os representantes
congoleses negociam, aquela em que negoceiam os representantes do governo belga
e o espaço das cozinhas e dos servidores. Esta última representa
metaforicamente os bastidores da cena principal, isto é, junto da instância da
receção, a presença do terceiro espaço significa ao mesmo tempo pelo que é, mas
mais fundamentalmente remete parcialmente para o projeto de Peck: dar acesso
aos bastidores da história. Se a estética é sempre a da lisibilidade, do
apagamento das marcas da ficção, não deixa de permanecer uma ficção com os seus
efeitos de acentuação, omissão e ainda de elipse. Além disso, ao recorrer à
montagem alternada, Peck passa de um espaço a outro e, confrontando os pontos
de vista belga e congolês, induz junto do recetor a tomada de consciência de
que se, de um lado, se canta e se festeja, do outro se prepara já uma eventual
intervenção neocolonial. A sequência da Mesa Redonda fecha-se com a delegação
congolesa a cantar e dançar ao ritmo de Indépendance Cha Cha, música que
permite a ligação com a sequência seguinte em Léopoldville na véspera da
independência. Mais uma vez, a proximidade entre os dois textos é notória,
tanto na estrutura (semelhanças na transição entre Bruxelas e Léopoldville)
como no corpo do próprio texto, onde as ameaças de intervenção belga no Congo
são formuladas de maneira bastante idêntica.
Considerações finais
Após esta análise, podemos afirmar que Lumumba e Une saison au Congo, no que é
um reflexo da sua complexidade, significam em diversos níveis e requerem, se
quisermos pôr em evidência essa riqueza polissémica, a utilização de diversos
utensílios analíticos. Para captar o que nos dizem da relação da tragédia e do
filme de ficção com a história, é necessário, como vimos, circular
constantemente entre leitura interna (para, por exemplo, pôr em evidência a
importância de uma figura cinematográfica como o esbatimento encadeado) e
leitura externa (para ter em conta os contextos diferentes em que se inscrevem
as duas obras). Se a ficção diz a história tal como nela participa, impõe
igualmente uma distância, a da crítica, em relação à história oficial, ao
arquivo colonial, e, pelo seu poder de amplificação, consegue implicar (mas
também informar e comover) a comunidade de maneira distinta de um livro de
história.
Além deste trabalho de releitura do passado, a peça de Césaire e o filme de
Peck tendem igualmente a dar uma sepultura à figura sem sepultura, o que,
recordemos brevemente, é muito frequente na literatura e no cinema do trauma. A
partir deste ponto de vista, a arte desempenha um papel essencial pois permite,
com os meios que são os seus, figurar como um lugar de memória. Ora, no
contexto social de referência, como sublinha o historiador congolês Omasombo
Tshonda, a ausência de sepultura para Lumumba tal como a não transmissão da
história junto da população impediram o processo de luto coletivo (2004: 245).
Neste contexto, a literatura e o cinema veem-se dotados de um excedente de
significação, pois conseguem prestar testemunho de uma certa permanência do ser
ausente junto da comunidade. O regime de verdade inerente à história certamente
não tem por objeto principal servir de apoio à memória subjetiva e afetiva de
um grupo social, mas, ao evitar o debate com esta última, não favorece o
trabalho de luto necessário. É o que Gauthier de Villers censurou nos peritos
da comissão de inquérito parlamentar sobre as circunstâncias da morte de
Lumumba:
Os peritos da comissão, ao contrário do que tinha feito a comissão
sul-africana Truth and Reconciliation […], não tentaram permitir uma
confrontação entre a sua verdade de ordem factual ou jurídica e as
verdades imbuídas da subjetividade dos atores e testemunhas da época
e de todos os que hoje mantêm a sua memória, uma confrontação que,
todavia, só ela poderia ter permitido contemplar este trabalho de
"terapia " coletiva, portanto o luto [...]. (de Villers,
2004: 217)
Parece ser claro que a literatura e o cinema desempenham um papel importante
não apenas na transmissão de uma memória truncada, dominada durante muito tempo
por uma historiografia de origem colonial, mas também na edificação de um
discurso histórico. O facto de Césaire e Peck não serem congoleses dota as suas
obras de mais um significado. Oriundos das Caraíbas (Martinica no caso do
primeiro e Haiti no do segundo), inscrevem-se numa prática artística pós-
colonial com fronteiras permeáveis, onde o texto vem a significar fora e dentro
delas. É revelador, a partir desta perspetiva, que um historiador da literatura
congolesa integre sem qualquer problema a obra de Césaire na história do teatro
na República Democrática do Congo (Kadima-Nzuji, 2003). Se Fanon já pressentira
o que a morte de Lumumba viria a significar para o conjunto do continente
africano, ou seja, para lá das fronteiras estritas da RDC, Aimé Césaire e Raoul
Peck contribuem, pela sua ancoragem no Atlântico negro, para universalizar a
luta do homem de exceção. É possível considerar Une saison au Congo e Lumumba
tanto como testemunhos válidos não somente da memória congolesa contemporânea
mas igualmente de outras comunidades no mundo.9 Tal como se verifica com a
memória da Shoah, quanto mais o assassinato de Lumumba e os crimes do
colonialismo recuam no tempo, mais pertencem às novas gerações, cuja
responsabilidade moral é assim essencial, pois cabe-lhes a reativação, ou não,
da memória do trauma. É o que Ribeiro sublinha no contexto da memória
contemporânea da Shoah. Tarde ou cedo, a história dirá o conjunto dos factos
relativos ao acontecimento violento, descreverá as suas origens, o desenrolar e
as consequências, e é então, muito depois dos feitos e às gerações posteriores,
que se colocará a questão da natureza da ligação ao acontecimento:
As questões que permanecem e permanecerão em aberto, as perguntas
para as quais não haverá talvez nunca resposta satisfatória - e
que, por isso, demarcam abertamente os limites da teoria -, não
são, pois, da ordem da averiguação dos factos nem da simples
interpretação histórica, mas sim da ordem da memória e da pós-
memória, isto é, da ordem de uma relação com o passado estruturada a
partir do envolvimento presente de sujeitos concretos. (Ribeiro,
2010: 14)
A peça de Césaire e o filme de Peck reativam assim, em parte, a atualidade do
pensamento de Lumumba junto das novas gerações de recetores no interior e no
exterior das fronteiras congolesas, participando da emergência de uma memória
contemporânea do acontecimento violento. Se através da ficção, a biografia e os
textos do homem político ainda vierem a significar algo de essencial, é
igualmente porque Lumumba defendeu a emancipação não apenas para o seu país,
mas também para todos os oprimidos da terra. E lembrá-lo não é um dos méritos
menores da arte.