Dilemas da Civilização Tecnológica
Hermínio Martins, José Luís Garcia (coords.), Dilemas da Civilização
Tecnológica, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003, 377 páginas.
Susana Nascimento
A presente obra centra-se na temática da ciência e da tecnologia, enquanto
processos e estruturas centrais na actual civilização ocidental, segundo uma
linha problematizadora que procura debater, nos mais vários domínios sociais e
na própria "condição humana", as muitas encruzilhadas ou
"dilemas" suscitados pelo avançar exponencial do fenómeno
tecnocientífico. Tal é o traço comum do conjunto de catorze textos de autores
portugueses e estrangeiros de diferentes gerações e percursos intelectuais que
perfazem Dilemas da Civilização Tecnológica.
Os seus ensaios advêm de um debate entrecruzado destes mesmos autores no
Colóquio Internacional sobre Ciência, Natureza e Tecnoética, realizado em
Cascais em Setembro de 2001, por iniciativa do programa "Ciência,
Tecnologia e Vida Contemporânea" do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa (ICSUL), dirigido pelos coordenadores da obra.
Compreendendo a estrutura deste livro quatro secções, são privilegiados na
discussão: os "Dilemas teóricos" (caps. i a iv); os "Dilemas
da condição humana" (caps. v a vii); os "dilemas éticos"
(caps. viii a x); os "Dilemas do ciberespaço e da globalização"
(caps. xi a xiv).
Num esforço de síntese, coloca-se o início desta recensão no cap. i, no qual
Hermínio Martins (emeritus fellow do St. Antony's College da Universidade de
Oxford, investigador coordenador convidado do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa e um dos mais proeminentes pensadores portugueses sobre
a técnica) nos apresenta o texto "Aceleração, progresso e experimentum
humanum" através de excelentes "referências desviantes" sobre
a genealogia da temática da aceleração. O texto é composto por uma primeira
parte, denominada "População e aceleração", onde explora um
fenómeno característico do mundo actual de mudanças tecno-económicas
exponenciais, e por uma segunda parte, com o nome de "Aceleração para a
singularidade", em que problematiza uma corrente actual do pensamento nas
ciências da vida, da mente e do cérebro enunciadora de uma mutação ontológica
radical para o ser pós-humano a ocorrer num prazo de trinta a cinquenta anos e
que assim dispensaria a inteligência natural e o corpo biológico.
Hermínio Martins caracteriza esta posição dos "trans-humanistas" ou
"cibergnósticos" pelo desprezo que apresentam face a uma primazia
ontológica, cósmica ou epistemológica do ser vivo biológico (em particular do
homo sapiens), aliado a uma concepção de um faber hominis, um "homem
construtor do homem" que implica o "experimento-sobre-o-
homem" ou experimentum humanum, através de intervenções sobre o seu
próprio ser ou a sua própria natureza. Realizando um acentuado exercício
genealógico, o autor remete estes "aceleracionistas escatológicos"
para uma matriz original presente, de forma indirecta, nas obras do físico-
químico John Desmond Bernal (1929), do filósofo François Meyer (1953) e do
matemático I. J. Good (1965). De forma crítica, Hermínio Martins expõe um
paradoxo fundamental nesta corrente: os processos de transformação tecno-
económica e tecnocibernética, indispensáveis à nossa sobrevivência, levam à
interrupção dessa mesma existência humana biológica, passando por uma
ciborgificação, e em vista do verdadeiro pós-humano, o ens virtualissimum.
Esta transformação da natureza humana com vista à sua superação encontra uma
discussão aprofundada no cap. v, "Tecnologia e seleção. Variações sobre o
futuro do humano", da autoria de Laymert Garcia dos Santos, investigador
e docente brasileiro do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas. Para este autor existe uma distinção
conceptual entre a visão dos "aceleracionistas escatológicos"
(Hermínio Martins) e a apologia dos seres pós-humanos de suporte biológico ou
maquínico de N. Katherine Hayles (embora estreitamente ligadas). Laymert dos
Santos distingue fundamentalmente uma quarta variação do tema, formulada por
Gilles Deleuze e Keith Ansell Pearson, que radicaliza as perspectivas pós-
modernas anteriores através de uma defesa de uma condição trans-humana, de uma
"forma-além--do-homem". Numa nova concepção de evolução maquínica,
a vida passa a ser pensada pela vontade de potência (a natureza como invenção
ou técnica), dirigida para uma experimentação de excessos que atravessa os
homens, as plantas e as máquinas, dispensando qualquer pressuposto teleológico
da natureza humana.
O esforço de clarificação conceptual realizado pelos autores anteriores reenvia
igualmente para o cap. iii, "Sobre as origens da crítica da tecnologia na
teoria social. A visão pioneira e negligenciada da autonomia da tecnologia de
Georg Simmel", de José Luís Garcia (assistente de investigação do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa). O autor sustenta,
neste ensaio, a originalidade de Simmel
1
como fundador de um pensamento social crítico acerca do processo de
autonomização da tecnologia nas sociedades modernas, que prosseguiu num amplo
sentido em vários autores, como, por exemplo, Max Weber, Harold Innis, Lewis
Mumford, Herbert Marcuse, Hannah Arendt e Jacques Ellul.
Analisando exaustivamente as formulações de Simmel em vários trabalhos e
ensaios, em particular no estudo de 1900 A Filosofia do Dinheiro, José Luís
Garcia destaca a posição epistemológica inovadora de Simmel da "relação
movente entre os meios e as formas sociais" (p. 103) e afirma a sua
consequente concepção dialéctica da tecnologia não somente como um conjunto de
artefactos e meios instrumentais (que integram a cultura objectiva), mas como
exteriorização do espírito subjectivo na cultura (como estado da relação do ser
humano com o mundo), contrariando assim qualquer tipo de determinismo
económico, sociológico ou tecnológico.
No entanto, para José Luís Garcia, a originalidade de Simmel concretiza-se
também num diagnóstico da cultura do mundo moderno que apresenta uma
hipertrofia da cultura objectiva e um eminente recuo da subjectividade que o
autor designa por "tecnicização interior". Num mundo moderno
dominado por racionalidades calculistas, instrumentais, aritméticas,
quantitativas e utilitárias, Simmel denuncia como os processos e progressos
técnicos se tornam sistemas autónomos que atingem o estatuto de fim da própria
acção prática dos seres humanos. E assim ocorre a designada "heterogonia
dos fins", segundo a qual os meios encontram a sua transformação nos
próprios fins do homem que se vê alienado perante os instrumentos criados por
si. Em contraposição, a proposta filosófica simmeliana sintetizada por José
Luís Garcia procura "[g]uiar o mundo objectivo do homem por relação ao
homem, ou melhor, a uma ideia de homem [...]" (p. 134) que remete para um
agir ético.
No cap. ii, "Duas visões da civilização tecnológica", Langdon
Winner (professor de Ciência Política no Departamento de Estudos de Ciência e
Tecnologia do Instituto Politécnico de Renssellaer, Nova Iorque) desenvolve na
mesma linha as críticas formuladas por Hermínio Martins e José Luís Garcia
perante determinadas concepções de mudança tecnológica como impulsionadora de
forças contínuas e autónomas. Num enfoque eminentemente político, o autor
procura contrariar a ideia de inovação tecnológica dotada de um rumo definido
que não necessita ou não possibilita a discussão alargada das escolhas sociais
e políticas subjacentes. Colocando o acento no agir do homem enquanto ser
político, Winner pugna por um novo tipo de movimento social, um
"movimento da tecnologia profunda", que poderá desempenhar um
"papel promissor" ao promover a discussão dos problemas da
tecnologia de forma aberta, pública e controversa, questionando criticamente os
fins dos projectos de inovação tecnológica.
O texto anterior encontra possíveis pontos de conexão com Viriato Soromenho-
Marques (professor auxiliar do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa), que, no cap. xiv, "Técnica, cidadania e
globalização: forças e limites de uma relação complexa", defende também
uma "cultura política do exercício da cidadania" centrada nos
movimentos sociais, mas efectivamente ligada a um modelo federal de governação
em estreita relação com os cidadãos.
Num tom semelhante de valorização da cidadania, José López Cerejo (professor de
Filosofia da Ciência na Universidade de Oviedo, Espanha) toma como pressuposto
no cap. iv, "Governabilidade na sociedade de conhecimento", a
possibilidade de concretizar distintas trajectórias na evolução da tecnociência
numa "sociedade de conhecimento" e de "risco" para
colocar a questão fundamental da escolha do modelo de políticas públicas. Na
sua perspectiva, tal escolha deverá depender da participação alargada dos
cidadãos como condição necessária à governabilidade e legitimidade democrática
das sociedades contemporâneas com vista à construção de uma "sociedade de
sabedoria" apoiada numa consciência ética e moral.
No cap. vii surge José Esteban Castro (investigador principal do Centro de
Pesquisas sobre a Água da Universidade de Oxford) com o texto "Incertezas
manufacturadas, tecnociência e políticas de desigualdade: o caso da gestão dos
recursos hídricos", centrado num dilema político específico de grande
actualidade. Neste caso, o autor defende um equilíbrio entre os domínios
técnicos, sócio-económicos e políticos, salientando o papel dos cientistas
sociais em clarificarem os processos sociais determinantes nos conflitos no
acesso à água. Afirmando que nos conflitos intranacionais as dificuldades no
acesso a este recurso vital são resultado não só de limitações técnicas ou
físico-naturais, mas principalmente de sistemas de desigualdades sócio-
económicas estruturais que transfiguram assim estes conflitos numa "[...]
expressão da luta social mais alargada pela expansão e consolidação dos
direitos de cidadania" (p. 205).
Porém, o desenvolvimento de um modelo de organização e de acção política
consciente do carácter paradoxal da ciência e da tecnologia como potencialmente
benéficas, mas portadoras de riscos passados, presentes e futuros, pode remeter
para uma discussão do agir ético, moral e/ou religioso dos cidadãos e dos
cientistas (ou dos médicos e da sua "ética particularista" de
"atenção à vida"), como abordado no cap. vi, "O vinagre e a
monarquia. Pequena história das indiferenças em medicina", de Manuel
Silvério Marques (médico hematologista e membro do Centro de Estudos de
Filosofia da Medicina do Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil).
Neste mesmo sentido encontramos a proposta de Rafael Marques (professor
auxiliar do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de
Lisboa e membro do Centro de Investigação em Sociologia Económica e das
Organizações do mesmo Instituto) no cap. x, "Os fundamentos de uma ética
amoral: a sociedade da reciprocidade", apresentando-se porventura como
controversa na sua defesa de uma "ética sem moralidade", isto é,
sem estar baseada num ideal de perfeição da conduta humana, mas num esquema
universal de interacções sociais livres que pressupõe o dever de responder com
a ideia de transcender o que, por sua vez, se recebeu.
No cap. viii, "Ciência e religião: aproximação e distância à luz de uma
análise epistemológica", Maria Manuel Araújo Jorge (professora associada
do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e
membro do Instituto de Filosofia Moderna e Contemporânea da mesma Faculdade)
procura aprofundar os discursos científicos e religiosos frequentemente
considerados antagónicos. A seu ver, a compreensão da verdade, enquanto
demonstrabilidade científica, contudo também como experiência subjectiva, pode
ser realizada num diálogo entre ambos em zonas de mediação, onde se estabeleça,
por exemplo, a "bioética" enquanto "saber híbrido que tenta
aproximar o ser do dever ser" (p. 232) e que contribui para aproximar
ciência, ética, religião, tradições, etc. O campo disciplinar controverso da
bioética encontra uma análise aplicada no cap. ix, "Ética e religião na
sociedade técnico-científica. A visão dos jesuítas portugueses", de
Helena Mateus Jerónimo (assistente do Instituto Superior de Economia e Gestão
da Universidade Técnica de Lisboa e membro do Centro de Investigação em
Sociologia Económica e das Organizações). Esta autora analisa o debate nas
páginas da revista Brotéria (da qual Maria Manuel Araújo Jorge é uma das
colaboradoras), publicação de influência e divulgação científica da
responsabilidade de uma ordem religiosa da Igreja católica. Embora destacando a
sua importância no campo do debate, Helena Jerónimo critica de forma geral o
centramento exclusivo da revista na reflexão moral, teológica e axiológica
sobre o conhecimento científico, privilegiando o campo da bioética e
secundarizando outras abordagens éticas, como as desenvolvidas por Hans Jonas e
Jürgen Habermas.
Por fim, a última secção da obra introduz o debate sobre os dilemas
tecnológicos associados à "revolução informática" nas tecnologias
de informação e de comunicação e a sua influência nas várias esferas da vida
social. Neste âmbito é-nos apresentado, no campo económico e cultural, no cap.
xiii, de José Afonso Furtado (director da Biblioteca de Arte da Fundação
Calouste Gulbenkian e membro do Conselho Superior de Bibliotecas), o texto
"A edição no mundo digital: questões de código e de controlo", onde
o autor se debruça sobre algumas das dificuldades no advento de livros
electrónicos, como a gestão da propriedade intelectual e os novos modelos de
negócio.
Num campo distinto de discussão teórica, no cap. xi, "Uma teoria da
globalização avant la lettre. Tecnologias da comunicação, espaço e tempo em
Harold Innis", Filipa Subtil (assistente da Escola Superior de
Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa) procura recuperar as
intuições pioneiras de Harold Adams Innis, uma das maiores influências de
Marshall McLuhan, pela sua análise crítica da relação entre comunicação,
tecnologia, tempo, espaço e globalização. Se, por um lado, reconhece uma
continuidade de pensamento entre os dois autores, por outro lado, Filipa Subtil
enfatiza as suas diferenças fulcrais no tom mais crítico de Innis a respeito da
colonização do espaço e da comercialização do tempo pelos modernos meios de
comunicação e o consequente declínio das formas de democracia participativa.
O relativo esquecimento da visão de Innis, denunciado pela autora, pode ser
contraposto à expansão das teorias de McLuhan, embora no cap. xii,
"Teoria criogénica. Remediar McLuhan como ícone da cibercultura",
Chris Horrocks (senior lecturer de História de Arte na Universidade de
Kingston, Reino Unido) aponte traços revisionistas no tratamento de McLuhan por
parte da cibercultura nos anos 90. Com efeito, Horrocks expõe que, sobretudo
num primeiro momento de criação do seu léxico base, a cibercultura realizou um
decalque acrítico e uma aplicação directa das formulações de McLuhan,
transformado num "profeta mítico" desaparecido, marginalizado e
ressuscitado na era da Internet.
Os debates aprofundados em Dilemas da Civilização Tecnológica revelam
controvérsias centrais nos campos ambientais, políticos, económicos e culturais
potenciadas pelos avanços tecnológicos contemporâneos. Como problema primordial
encontra-se a definição que a ciência realiza de si própria em função das
técnicas, esquecendo a sua dotação original de conhecimento orientado para
finalidades a serem definidas pelo ser humano. Contrariando, por um lado, esta
"tecnociência" dominante e, por outro, certas tendências nos
estudos sociais sobre a ciência que desembocam em anticienticismos ou
assentimentos acríticos, urge um pensamento social radical que defenda a sua
liberdade de reflexão e de crítica, mas sempre em diálogo com o campo da
ciência e com os seus especialistas.
1
De salientar que alguns dos seus ensaios foram publicados em 2004 pela Relógio
d'Água sob o título Fragmento sobre o Amor e Outros Textos.