Tempos Interessantes: Uma Vida no Século XX
Eric Hobsbawm,Tempos Interessantes: Uma Vida no Século XX,Porto, Campo das
Letras, 2005.
Com 88 anos, Eric Hobsbawm é hoje o mais conhecido historiador mundial. Entre
outros livros, escreveu quatro obras importantes sobre um longo período da
história europeia (1789 a 1991), preocupando-se em dar-nos explicações
acessíveis numa prosa capaz de extravasar os muros da universidade. Nunca
sentiu a necessidade de se especializar. Foi capaz de nos dar uma visão da
história da Europa, e das suas ramificações universais, abordando, com aparente
facilidade, temas económicos, sociais, políticos e culturais. Daí que a sua
obra tenha sido traduzida como nenhuma outra. Até os portugueses dispõem, em
edições da Presença (nem sempre bem traduzidas), de A Era das Revoluções (a sua
obra--prima), A Era do Capital, A Era do Império e A Era dos Extremos.
Eis que em 2002 saiu em Inglaterra a sua autobiografia, Interesting Times: A
Twentieth-Century Life, dada agora a lume em Portugal pela editorial Campo das
Letras, numa excelente tradução de Miguel Serras Pereira. Estas memórias
merecem ser lidas tanto pelo que o autor diz sobre os ambientes em que viveu
como sobre si próprio. Logo no início alerta para o facto de a obra se afastar
das memórias clássicas: «Acrescente-se que este livro não foi escrito no
registo confessional, hoje tão vendável, o que em parte acontece porque a única
justificação para uma tal viagem ególatra é o génio e eu não sou nem um Santo
Agostinho nem um Rousseau e em parte porque ninguém que escreve a sua
autobiografia poderá revelar a verdade privada acerca de assuntos relacionados
com outras pessoas vivas sem ferir injustificadamente os sentimentos de algumas
delas [ ] O que procuro é a compreensão histórica, e não o acordo, a aprovação
ou a simpatia do público.» Aqui reside uma das ambiguidades da obra. O autor
quis escrever uma autobiografia sem estar no centro do livro, o que faz com que
fique a meio caminho entre o género memorialista e o relato histórico.
Adoptando a posição de «participante-observador», Hobsbawm surge como uma
espécie de antropólogo do século xx, olhando, supostamente de fora, coisas que
viveu por dentro.
Já o fizera em anteriores livros e, na minha opinião, até com mais sucesso.
Veja-se a brilhante «Abertura» de A Idade do Império,sobre os anos 1875-1914,
quando nos fala das suas origens familiares. O facto de ter optado agora por
nos falar apenas do homem público é um desapontamento porque o homem particular
seria certamente tão ou mais interessante do que aquele. Poder-se-ia pensar, e
o autor parece indicá-lo, que o fez por modéstia, mas, como veremos, o autor é
tudo menos modesto.
Isto não é uma reserva radical. O livro lê-se de um fôlego, é interessante e
tem capítulos bons. Veja-se, por exemplo, a evocação, que faz no capítulo iv,
da cidade de Berlim durante os últimos meses da República de Weimar. Sem a dura
experiência por que então passou, provavelmente, não teria optado, como refere,
pelo caminho que escolheu. Eric Hobsbawm decidiu, muito jovem ainda, ser
comunista. E assim quer morrer. Não existem factos que o demovam nem argumentos
que o abatam. Mesmo reconhecendo os crimes do estalinismo, prefere este regime
ao capitalismo. Não hesita em escrever: «Dou-me hoje conta de que continuo a
tratar a memória e a tradição da URSS com uma indulgência e uma ternura que não
sinto pela China comunista, porque pertenço a uma geração para a qual a
revolução de Outubro representava a esperança do mundo, coisa que a China nunca
significou.»
Hobsbawm escreveu estas memórias para tentar responder à pergunta feita em
todas as entrevistas que concedeu em tempos recentes: como era possível que um
homem inteligente, culto e razoável pudesse continuar a declarar-se, como ele
se declarava, comunista? Eis a resposta: «Escrever uma autobiografia supõe que
reflictamos a nosso propósito como nunca antes o fizemos. No meu caso, isso
consiste em limpar três quartos de século dos seus depósitos geológicos e em
recuperar, ou descobrir e reconstruir, um estranho aí sepultado. Quanto mais
recuo no passado e me esforço por compreender esse rapaz desconhecido e
longínquo, mais chego à conclusão de que, se ele tivesse vivido noutras
circunstâncias históricas, ninguém lhe teriaadivinhado um futuro de compromisso
político apaixonado, embora quase toda a gente pudesse ter-lhe profetizado um
futuro de intelectual.» Infelizmente, a explicação que fornece ao leitor para a
sua opção partidária não é convincente, ou antes, é-o pelas piores razões.
Leia-se o que afirma no capítulo 12, intitulado «Estaline e os pós-
estalinismo», onde explicitamente diz que continuou a ser comunista a fim de
provar ao establisment que fora capaz de construir uma carreira académica
apesar da sua filiação partidária. Ora isto é uma mistificação.
Ninguém nega que, desde o início, a universidade foi atravessada por lutas
feudais e que, durante a guerra fria, alguns intelectuais de esquerda foram
afectados, por motivos ideológicos, nas suas carreiras. Mas actualmente nada
disso é verdade, nem o é desde os finais da década de 1960. Não é pacífico,
como Hobsbawm pretende fazer crer, que um intelectual de esquerda tenha menos
oportunidades do que um de direita. É possível que nos anos 1950 lhe tivesse
sido difícil ou até impossível obter uma cátedra numa das universidades da Ivy
League. Mas, como ele sabe, o clima intelectual mudou. A vitimização fica-lhe
mal. Na América Latina, na Europa e até nos EUA, Hobsbawm é um historiador
popularíssimo, como o próprio constatará, se olhar com atenção para a
contabilidade relativa aos seus direitos de autor.
Mesmo depois da invasão da Hungria, quanto muitos dos seus amigos deixaram o
partido, EricHobsbawm decidiu ficar não só porque, como afirma, detesta a
companhia dos intelectuais ex-comunistas, mas por um grau de orgulho quase
impensável. Eis, nas suas palavras, a explicação: «Desembaraçar-me do handicap
da pertença ao partido poderia ter melhorado as minhas possibilidades no plano
profissional, sobretudo nos Estados Unidos. E ter-me-ia sido mais fácil fazê-lo
sem alarde. Mas consegui provar a mim próprio que era capaz de ser bem sucedido
[ ] sem deixar de ser reconhecidamente comunista e vencendo esse handicap em
plena guerra fria.» No fundo, a sua ligação ao comunismo está mais relacionada
com a teimosia serôdia do que com o marxismo. Apesar de não ter modificado a
minha opinião quanto aos seus méritos como historiador, após ter lido este
livro fiquei com menos respeito pelo homem.
Maria Filomena Mónica