Língua e hegemonia nas ciências sociais
Neste curto texto discute-se a questão da relação entre língua científica e
hegemonia global no campo das ciências sociais, alinhavando algumas propostas
estratégicas conducentes à melhor negociação da posição de comunidades
científicas como a portuguesa face à situação global actual.
Tendo em vista a hegemonia intelectual exercida no período após a queda do muro
de Berlim pelos Estados Unidos da América e tendo em vista que as comunidades
científicas com peso alternativo no período da guerra fria, tal como a
britânica ou a francesa, perderam muito rápida e marcadamente a relativa
centralidade cultural e independência que detinham, urge compreender que, a
nível global, só existem quatro comunidades linguísticas
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de cientistas sociais exprimindo-se em línguas outras que não a língua franca
internacional com peso significativo (tanto quantitativo como qualitativo): a
francesa, a espanhola, a germânica e a portuguesa. Repare-se que as comunidades
russófona e sinófona demorarão ainda previsivelmente pelo menos uma década a
reconstituir-se após a gravíssima perda de centralidade resultante do colapso
do modelo marxista-leninista.
Destas quatro, a de língua portuguesa é, porventura, a maior em termos
estatísticos, tendo em vista a quantidade de cientistas sociais brasileiros e a
vivacidade actual da comunidade científica portuguesa. A presença de dois
grandes países africanos com língua portuguesa (Angola e Moçambique) e de pelo
menos um país asiático em que se utilizará no futuro o português (Timor)
contribui mais ainda para dar ao desenvolvimento do pensamento sócio-científico
em português uma perspectiva de relevância global futura.
A comunidade francófona — que é cada vez mais reduzida quantitativamente —
detém, porém, um peso científico considerável, largamente devido à relevância
histórica da sua contribuição para a constituição intelectual da modernidade (a
sua preteridade). A comunidade hispanófona tem alguns pontos altos e é
quantitativamente vasta, mas não tem a vivacidade e a quantidade de trabalhos
que detém a lusófona ou o privilégio de preteridade da francófona. A comunidade
de língua alemã está em processo de reconstituição (já que só após a queda do
muro de Berlim lhe foi possível libertar-se das fortes heranças intelectuais do
início do século XX tanto a marxista como a romântica) e só dentro de alguns
anos poderemos julgar da sua capacidade de afirmação internacional.
Tendo em vista que a lingua franca continuará, previsivelmente, a ser o inglês
ainda por muito tempo e que, portanto, todos os cientistas sociais que queiram
ter qualquer impacto durável nas suas disciplinas se verão obrigados a, pelo
menos, ser receptores da lingua franca, poder-se-ia pensar que a existência de
comunidades científicas exprimindo-se noutras línguas seria largamente
irrelevante. Tal julgamento, contudo, é sociologicamente simplista porque não
toma em conta o facto de que as comunidades linguísticas funcionam como campos
de constituição de hegemonias
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científicas de médio alcance, isto é, como meios de veicularem disposições
teóricas e metodológicas que, não sendo incompatíveis com as praticadas na
lingua franca, têm, apesar de tudo, alguma autonomia. Assim, é lícito
argumentar que estas comunidades linguísticas são espaços de relativa autonomia
e, por conseguinte, poderosíssimos instrumentos de negociação da hegemonia mais
abrangente.
O problema principal que confronta as ciências sociais de língua portuguesa
hoje é o de criar as condições para que o trabalho que realizamos tenha
relevância, isto é, tenha capacidade de sobrevivência enquanto contributo
relevante para os debates futuros para simplificar, chamarei a esta qualidade
«futuridade»
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. Essa relevância futura do nosso contributo (a futuridade da nossa obra) não
pode ser só vista unicamente em termos globais, ela tem de ser vista em
primeiro lugar em termos locais. Contudo, as duas coisas estão interligadas
devido ao funcionamento dos processos automáticos de silenciamento que
caracterizam a própria natureza do processo de constituição de hegemonias
científicas e intelectuais. O que quero dizer, em termos práticos, é que os
nossos próprios alunos não terão razão para acharem relevante o que nós
escrevemos caso o que nós escrevemos não tenha alguma capacidade de afirmação
face a hegemonias mais abrangentes.
A tragédia das comunidades científicas marginais é a tragédia do silenciamento
perante si mesmas. Somos muitas vezes levados, por simplismo, a culpar os
colegas anglófonos pelo silenciamento dos nossos trabalhos (que, queixamo-nos
nós, eles não citam); os nossos colegas anglófonos, aliás, são muito dados a
atribuírem-se a si mesmos essa autocrítica, desculpando-se por "não terem
jeito para outras línguas". Mas essas declarações de mea culpa são vácuas
e até suspeitas, já que só servem para lhes atribuir a eles, reflexivamente, a
agencialidade sobre o silenciamento dos outros. Na verdade, não são os colegas
anglófonos os principais responsáveis pela falta de futuridade do que nós
fazemos nas margens.
Olhemos para nós próprios, cientistas sociais de língua portuguesa hoje, com
algum distanciamento e alguma franqueza. Só muito raramente somos levados a
atribuir significado aos cientistas sociais de língua portuguesa que nos
precederam (no caso do Brasil, apesar de tudo, verifica-se menos descuido pelo
cânon regional do que no caso português); só muito raramente somos levados a
dialogar uns com os outros de forma aberta, franca e contundente (mais uma vez,
o Brasil tem conseguido superar parcialmente este sinal de fraqueza); os nossos
alunos não acham "interessante"
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citar nos seus projectos e nas suas notas de rodapé as obras que nós
escrevemos; os alunos dos nossos alunos farão o mesmo com os mestres deles (eu
próprio já tive ocasião de verificar a perplexidade que isso causa a colegas
mais jovens que, no entanto, nas suas próprias obras, sempre foram os
principais silenciadores dos seus colegas mais seniores).
As antropólogas feministas nos gloriosos anos 80 repetiam muitas vezes que as
sogras eram pelo menos tão responsáveis pela opressão doméstica feminina quanto
os maridos. Também nós vamos descobrir que o silêncio que cai sobre as nossas
obras, e que nos transforma em cientistas sem relevância futura, é o produto
dos nossos próprios discípulos — de nós próprios enquanto jovens.
Ora, poder-se-ia dizer que só é possível ultrapassar a falta de
"futuridade " "publicando e sendo citado no índice
ISI"! Tal engodo, porém, só enganará quem deseje ser enganado. Há limites
muito claros para a constituição de futuridade por parte de cientistas sociais
que estão fora dos círculos de excelência global e estes últimos estarão sempre
ligados umbilicalmente aos centros hegemónicos de poder — qualquer outra noção
seria difícil de contemplar. A futuridade da actividade científica não é única
e simplesmente mensurável em termos de um qualquer impacto
"objectivo" sobre o conhecimento, nem em termos teóricos, nem
sequer em termos tecnológicos. Não basta "descobrir" coisas
importantes para ganhar prémios Nobel e fazer patentes milionárias — e nas
ciências sociais por maioria de razão. A actividade científica (e peço que não
interpretem esta posição historicista como uma declaração anticientivística —
só para os simplistas é que as duas coisas são incompatíveis) é uma actividade
social e como tal está imersa em todo um esquema de reprodução que passa pela
existência de hegemonias — o poder militar, político, económico e o poder
cultural, intelectual e científico cruzam-se.
Eu próprio tenho verificado — e o debate com colegas seniores brasileiros tem
confirmado esta opinião — que não basta publicar obras consideradas de valor em
língua inglesa para assegurar a futuridade do que publicamos. Mais cedo ou mais
tarde se revela que as coisas que os colegas citam (e que, portanto, têm
futuridade) têm menos a ver com o que lá está escrito e mais a ver com o que
eles próprios "ganham" ao citá-las. Ponho "ganham"
entre aspas para que se perceba que não falo de qualquer ganho financeiro (se
bem que esse aspecto esteja presente, está claro), mas sim de um interesse mais
vasto, que inclui até aspectos de natureza vagamente estética. Por exemplo, é
mais interessante/chique citar Foucault (e isto porque Foucault é a coqueluche
americana, nada a ver com francofilia) do que Thales de Azevedo, mesmo quando o
que se está a dizer tem mais a ver com a brilhante obra deste último — que,
aliás, a maioria de nós simplesmente desconhece.
Tanto eu próprio como os colegas brasileiros que, como eu, têm uma já longa
carreira marcada pela publicação desde o início em revistas e editoras
anglófonas temos observado empiricamente que o nosso "capital de
prestígio científico" não tem a mesma força de acumulação que a de
colegas americanos cuja obra foi até, por vezes, menos bem recebida e publicada
em editoras menos prestigiadas do que as nossas. Vinte ou trinta anos depois de
termos iniciado as nossas carreiras continuamos a ser tratados como iniciantes.
Os ensaios que mandamos para revistas cujos editores são alunos dos que foram
nossos colegas em Paris, Oxford, Berkeley ou Nova Iorque são recebidos e
comentados pelos referees como se fossem obras de iniciantes.
O filósofo J. A. Giannotti, discípulo de Sartre, colega intelectual de
Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e tantas outras figuras
marcantes da intelligentzia paulista, e cuja obra publicada em francês e inglês
é considerável (para além da importantíssima obra filosófica publicada em
português), declarou-me que, confrontados com o silenciamento externo, ele e os
seus colegas tiveram de fazer uma opção de carreira: "A nossa opção foi
ser filósofos municipais." Essa frase, pronunciada em tom irónico,
deixou-me profundamente instigado, como se diz por lá. É que a municipalidade
onde ele habita tem 14 milhões de habitantes e o país onde eu vivo só tem 9
milhões, sem contar com a iliteracia generalizada!
Em suma, se as considerações acima são válidas, então a constituição de espaços
intermédios de hegemonia intelectual é essencial para a reprodução das
comunidades científicas dos países menos centrais. A existência de tais espaços
permitirá a constituição de hegemonias locais, que, por sua vez, constituirão
pólos negociais fortes na confrontação com a hegemonia global. Se formos
capazes de assegurar a futuridade das nossas obras a nível das comunidades
linguísticas não anglófonas, não será tão fácil o véu do silenciamento cair
sobre nós a nível global — cairá, sim, mas menos, o que faz toda a diferença.
Temos de produzir obras de elevado nível científico, empiricamente correctas e
teoricamente consequentes, plenas da melhor scholarship. Tal, porém, não chega
para assegurar que a nossa obra tenha futuridade. Para isso, teremos sempre de
passar por um trabalho de constituição social, porque a ciência é uma
actividade social. Teremos, pois, de realizar essa obra em quatro frentes de
socialidade:
a) O associativismo científico (e temos, por exemplo, na Associação Brasileira
de Antropologia, em português, as reuniões regulares antropológicas mais
participadas do mundo, afora as da American Anthropological Association);
b) A criação de interconhecimento científico através da realização de
investigações cruzadas que obrigam, por interesse empírico, à referência mútua
(temos de fazer os brasileiros, os franceses e os espanhóis virem investigar
para cá e nós temos de ir para lá);
c) A troca de pessoal docente;
d) A formação local dos nossos próprios alunos de pós-graduação, por forma que
estes não escapem aos contextos formais de constituição de futuridade do ensino
que recebem.
Concluo, pois, que a estratégia de desenvolvimento académico que devemos
implementar em Portugal tem de superar os sentimentos de inferioridade que
caracterizaram a comunidade científica portuguesa do pós-25 de Abril em que
tudo se validava com expressões do género "é como eles fazem ‘lá
fora’". Acontece que "lá fora" é um lugar que não existe, por
um lado, e "lá em cima" é um lugar onde nós só teremos acesso se
abdicarmos de sermos portugueses, brasileiros, espanhóis, mexicanos, franceses,
alemães, etc. O que nem podemos nem queremos.
Para constituir a futuridade do nosso trabalho (sem o que os nossos salários
foram dinheiro que o Estado investiu mal) temos de entrar no jogo da negociação
hegemónica. Tal faz-se, no caso português, pela criação de laços preferenciais
com as comunidades científicas da nossa língua (a comunidade brasileira) ou de
línguas que estão em condições de subalternidade relativa aproximada da nossa
(a espanhola e a francesa) em cada uma das quatro frentes de socialidade acima
referidas. Peço que esta posição não seja interpretada como um argumento contra
a língua franca (o inglês). Pelo contrário, trata-se de uma proposta
estratégica que pretende precisamente contemplar a necessidade de negociar o
silenciamento no interior da língua franca.
1
Uso aqui esta expressão "comunidade" de forma propositadamente
vaga.
2
Por hegemonia, seguindo a tradição gramsciana, sem lhe respeitar completamente
a intenção (v. Pina Cabral, Análise Social, n.º 153, 2000, pp. 865-892),
refiro-me a formas de dominação negociada, portanto culturalmente mediadas, em
que os dominados aceitam tornar-se representados mediante a resposta por parte
dos dominadores a condições que os dominados considerem que os compensam, pelo
menos parcialmente, pela perda do poder.
3
Sigo aqui a sugestão de Hermínio Martins relativa ao uso que faz do conceito
de «preteridade» na sua obra clássica sobre «O tempo e a teoria social» (v.
Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social, 1996 [1974]).
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Temo em dizer "chique", porque pode parecer que estou a criticá-
los por algo que não é "pecado" individual deles, mas é uma
condição geral.
* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.