Apresentação
Apresentação
Não seria difícil encarar qualquer terreno de estudo, em qualquer época
conhecida, como um espaço marcado por dinâmicas de continuidade e de mudança.
De facto, embora vários e influentes quadros teóricos das ciências sociais se
tenham concentrado no «equilíbrio» e «estabilidade», chegando a encarar a
mudança e o conflito como patologias, enquanto outros tenderam a enfatizar as
rupturas e a marginalizar as continuidades, será hoje em dia relativamente
pacífico reconhecer que, para usar a célebre frase de Bourdieu tomada de
empréstimo a Marx, le mort saisie le vif sem que desse reconhecimento tenha
de decorrer qualquer adesão ao estruturalismo ou ao marxismo.
No entanto, se é fácil descortinar o jogo da continuidade e da mudança em
virtualmente qualquer terreno de estudo, ele quase se impõe ao olhar de quem
observe o Moçambique de hoje, faça-o de forma superficial ou aprofundada.
Num primeiro registo, poderá o observador espantar-se com as quase coloniais
formas de tratar os empregados, com a relevância das classificações «rácicas» e
dos códigos de comportamento em função delas, ou com a naturalização das
desigualdades sociais tudo isto num país que passou, em pouco mais de trinta
anos, por uma independência acompanhada pela debandada de europeus, por um
processo revolucionário socializante, por uma longa e destrutiva guerra civil e
por uma acelerada liberalização económica sob financiamento e estímulo
externos.
Num segundo olhar, surpreenderão os amuletos trazidos nos bolsos de elegantes
casacos Giorgio Armani, os tribunos políticos ou religiosos que fazem «vacinas»
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sob a língua para serem ouvidos com atenção, ou a aparentemente fácil
continuidade das mesmas individualidades na cena política individualidades
que poderão ser oriundas da luta de libertação e da revolução socializante,
ter-se entretanto transformado em magnatas empresariais e agora invocar as
referências retóricas e a figura do primeiro Presidente da República, Samora
Machel, como instrumentos de mobilização para a sua actual governação
neoliberal.
Num outro registo, ainda, o jogo de continuidades e mudanças trespassa os
fenómenos que tal como acontece neste volume sejam objecto de abordagens e
análises segundo as regras das ciências sociais. Neste último caso, poderíamos
mesmo dizer que, se em poucos contextos de estudo a sensibilidade às dinâmicas
de continuidade e mudança é pouco relevante para a profundidade da análise,
será muito difícil estudar de forma pertinente os fenómenos moçambicanos caso
se negligenciem essas dinâmicas. Talvez por essa razão se possa observar que,
nas mais estimulantes abordagens de fenómenos moçambicanos por parte de
investigadores autóctones ou estrangeiros, os antropólogos, historiadores e
sociólogos tomam de empréstimo entre si, com mais frequência e de forma mais
descomplexada do que noutros terrenos, perspectivas e conceitos oriundos das
restantes áreas disciplinares.
O subtítulo deste número temático da Análise Social torna-se, dessa forma,
quase um truísmo. Mas para que nos apercebamos cabalmente de que assim é será
necessário um conhecimento de causa para o qual a sua leitura se torna muito
útil. A par de um locus comum, as continuidades e mudanças são, afinal, o fio
condutor de um volume bastante diversificado em termos de temáticas e terrenos
abordados.
No primeiro artigo deste volume, Paulo Granjo leva-nos até à mais recente e
actualizada indústria moçambicana (a fundição primária de alumínio Mozal, em
Boane), passando pelas ruínas de um hotel inacabado mas rodeado de histórias de
cobras e dragões, cuja lógica reencontramos nesse espaço fabril. Aí deparamo-
nos com uma atípica integração da mais estrita racionalidade tecnológica por
parte dos operários, que é aplicada ao quotidiano laboral, coexistindo com os
anteriores sistemas locais de domesticação do infortúnio, por sua vez
mobilizados quando os acidentes vêm subverter a normalidade técnica. Essa
separação e as características de ambos os sistemas de racionalidade fazem,
contudo, com que acreditar na acção dos espíritos e da feitiçaria sobre o
quotidiano não faça perigar a produtividade e a segurança, permitindo que a
adopção de novas formas de racionalidade não implique o abandono das
anteriores.
O papel que os espíritos e os antepassados assumem na regulação da incerteza e
do infortúnio volta a estar presente no artigo de Brigitte Bagnol acerca do
lovolo (leia-se lobolo), a forma de casamento que é predominante no sul de
Moçambique. A partir de três dessas cerimónias matrimoniais em que a família do
noivo transfere bens para a família da noiva, ocorridas na zona de Maputo,
podemos verificar de que forma os sentidos nelas investidos extravasam as
abordagens clássicas acerca do chamado bridewealth, privilegiando o
estabelecimento de uma comunicação entre vivos e antepassados que contribui
para criar ou restabelecer a harmonia social. É essa inscrição dos indivíduos
numa rede de relações que não envolve apenas os vivos, mas também os mortos,
possuidores de poderes de controlo sobre os seus descendentes, que explica,
segundo a autora, a continuidade do lovolo em contexto urbano.
O artigo que nos é trazido por Sofia Aboim aborda, por sua vez, os
diversificados processos de reconstrução das identidades masculinas, num
contexto de mudança marcado pela urbanização, pelo contacto globalizado e
simultâneo com diferentes modelos de relações de género e pela aprovação da
nova Lei da Família que, numa sociedade sob forte dominação masculina e que
se representa como tal, propõe visões modernistas e igualitárias da família e
do género. A partir de dados qualitativos e quantitativos recolhidos em Maputo,
a autora discute a pluralização das masculinidades e propõe-nos que as mudanças
em curso resultam dos encontros entre os costumes tradicionais, os legados do
colonialismo e as dinâmicas de globalização no mundo pós-colonial.
Mantendo algumas pontes com esse tema, Emídio Gune convida-nos a reflectir
acerca da utilização não consistente do preservativo e dos significados que lhe
estão associados. O tema é de particular relevância em termos de saúde pública,
pois a mera utilização do preservativo tende a ser interpretada como prova da
adesão ao discurso epidemiológico e do sucesso do mesmo, quando a lógica que
lhe preside, segundo o autor, é quase inversa. O preservativo é utilizado em
situações e com pessoas liminares, consideradas perigosas ou subversoras das
normas, enquanto as relações sexuais socialmente aceitáveis são consideradas de
per si seguras, excluindo o seu uso. «Sexo seguro» é então, de acordo com os
pressupostos sociais, sexo sem preservativo com todas as consequências que
tal acarreta para a transmissão do VIH e outras ITS, dada a diversificação de
parceiros sexuais.
Mantendo-se no âmbito das representações sociais, mas passando ao campo do
poder e dos modelos societais, Jason Sumich apresenta-nos a ideologia da
modernidade que é partilhada pela elite moçambicana politicamente dominante
hoje também dominante em termos económicos e sociais e instalada em Maputo
como sendo uma categoria «nativa» que lhe serve de factor unificador e de
instrumento para reivindicar o seu poder social e legitimar as suas posições de
privilégio perante o resto da sociedade. Trata-se, segundo o autor, de uma
ideologia dinâmica que encontra raízes nos antecedentes dessa elite no período
colonial e que passou de um inicial projecto autoritário, mas potencialmente
emancipatório, de construção da nação a um indicador de estatuto e de
diferenciação social.
É quase um reverso da medalha que vamos encontrar no artigo de Harry West.
Partindo de uma muito comentada vaga de ataques de leões que levou, anos atrás,
a uma sucessão de linchamentos no planalto de Mueda (no extremo norte do país),
o autor delimita uma linguagem local de poder, também ela «nativa», mas em
forte disjunção com aquela que foi falada pelos reformadores democráticos ao
longo do processo de liberalização política e económica. Equiparar a
descentralização democrática a um abandono por parte do Estado, a liberdade
individual a um perigo colectivo de feitiçaria ou democracia a carnificina
constituíram afinal, segundo o autor, formas em última instância democráticas
de avaliação e de crítica às transformações ocorridas após a guerra civil e às
formas como o poder é exercido no novo contexto de capitalismo neoliberal.
Essa distanciação entre as elites políticas da «nação» (Maputo) e as
comunidades locais está também patente no artigo que nos é trazido por Fernando
Florêncio. Nele, tomando como ponto de partida a situação das autoridades
hereditárias vaNdau (centro do país) ao longo do tempo e dos regimes políticos
e a actual legislação acerca das «autoridades comunitárias», o autor reflecte
acerca do lugar social que estas autoridades actualmente detêm aos olhos da
maioria das populações rurais e do seu papel no processo de formação do Estado
ao nível distrital. A relação entre o actual Estado moçambicano e essas
autoridades acaba por surgir como um neo-idirect rule, em que, inclusive, são
atribuídas às autoridades hereditárias basicamente as mesmas funções que eram
atribuídas aos régulos pela Reforma Administrativa Ultramarina da época
colonial.
Mais a sul, numa zona rural da província de Inhambane, Albert Farré chama a
atenção para o contraste entre, por um lado, a inoperância das estruturas de
implantação territorial que visavam incorporar a população na sua lógica de
ordenamento do espaço (incluindo a dificuldade de legitimação das «autoridades
tradicionais», de novo reconhecidas pelo Estado mas já desacreditadas pela
prática colonial e pela repressão pós-independência) e, por outro, o dinamismo
de uma população que se mantém à margem dessas estruturas. Sugere o autor que o
Estado e as igrejas falharam em grande medida a sua tentativa de organizar o
espaço e de dominar as pessoas com base nos códigos escritos, enquanto os ritos
centrados numa pequena escala territorial conseguem reforçar a confiança nas
estruturas de parentesco e reunir presentes e ausentes (mortos ou emigrados).
Por fim, e agora a um nível nacional, João Pereira analisa os resultados das
eleições legislativas e presidenciais ocorridas em Moçambique após o Acordo
Geral de Paz de 1992, demonstrando que as sucessivas vitórias da Frelimo (o
partido no poder desde a independência) não são explicáveis pelas teorias do
voto económico. Tendo em conta os dados de diversos inquéritos extensivos, o
autor propõe para análise um conjunto de hipóteses cuja interacção pode
explicar esse fenómeno, entre as quais se destacam a desconfiança em relação às
alternativas partidárias existentes, o tipo de transição política, a ausência
de uma compreensão clara da diferença entre avaliações pessoais e económicas, o
controlo de recursos por parte do Estado, as estratégias de implementação de
políticas, a tipologia dos partidos políticos e os diversos contextos locais.
Dever-se-á salientar que, no seu conjunto, estes artigos não constituem um
retrato completo do Moçambique actual.
Não constituem sequer um mostruário global dos temas que aí são (ou poderiam
ser) abordados pelas ciências sociais. Para que assim fosse teriam de engrossar
este volume, entre outros assuntos, os estudos sobre a pobreza, as doenças que
são objecto de maior atenção por parte de instituições internacionais, as novas
religiões, a equidade de género, as medicinas «tradicionais», o desenvolvimento
e respectivos projectos, a educação, a acção das ONG, a história dos movimentos
de libertação, ou mesmo outros objectos de pesquisa mais «exóticos» e
directamente induzidos/pagos pelo exterior como, por exemplo, a
acessibilidade dos deficientes físicos aos chapas
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, campo em que mesmo jovens em invejável condição física enfrentam
dificuldades. Faltaria também a abordagem de temas emergentes ou reemergentes,
como as recentes manifestações violentas contra as condições de vida e as
assimetrias sociais, o recrudescimento dos linchamentos de putativos ladrões ou
o (ainda por fazer) fascinante estudo do caso económico de um país que depende
directamente do estrangeiro para custear dois terços do seu orçamento de Estado
e que vive sobretudo da recirculação de insumos externos que lhe chegam por
diversas vias.
Não obstante essas inevitáveis lacunas, este número da Análise Social apresenta
um conjunto de abordagens quase sempre bastante inovadoras acerca de
diversos temas relevantes do Moçambique actual, permitindo ao leitor criar ou
aprofundar uma perspectiva acerca do país cujo interesse ultrapassa, de forma
significativa, a mera soma da qualidade de cada um dos artigos nele incluídos.
Artigos que, conforme é saudável que aconteça em ciências sociais, apresentam
pistas e propostas cuja importância e eventual aplicabilidade extravasam em
muito o terreno acerca do qual foram produzidas.
Independentemente dessa utilidade geral, todos os leitores, por muito
conhecedores que sejam do contexto moçambicano, encontrarão neste volume muito
que aprender, debater ou rebater. Quanto aos leitores menos familiarizados com
esse terreno, atrevo-me a desejar que, para além de darem por bem empregue o
seu tempo, alguns de entre eles possam ver despertar, com a leitura destes
textos, um insuspeitado interesse em realizar pesquisas acerca de Moçambique.
Paulo Granjo*
* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Organizador
convidado.
1 Inoculação de uma pasta medicinal numa incisão feita na pele, tendo em vista
o tratamento de doenças, a protecção contra a feitiçaria e a acção de espíritos
ou, neste caso, um efeito mágico.
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Viaturas privadas licenciadas para efectuar transportes públicos de
passageiros, suprindo a quase inexistência de autocarros. São, na sua maioria,
carrinhas mistas ou de 9 lugares recondicionadas para transportar 19 pessoas
sentadas, para além das que queiram e consigam ir agachadas.