Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX
Diogo Ramada Curto (dir.), Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no
Século XX, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e
Tecnologia (MCT), 2006, 1036 páginas.
Categoria central em tantos discursos políticos e pedagógicos e, nessa medida,
objecto repetido de medidas concretas (aos mais diversos níveis) com vista à
sua modelação individual e social, designação sintética de práticas tão
díspares, da fruição artística ao investimento educativo, da difusão colectiva
de determinado texto à sua exploração individual, símbolo cultural da liberdade
de pensamento, embora também veículo fundamental da codificação e ordenação de
comportamentos, a leitura, não obstante incontáveis valências, começa quase
sempre por se nos impor como evidência. Em Portugal, como noutros locais, é na
sombra do seu contrário a não-leitura que se projectam os contornos que
socialmente melhor a definem. A este respeito, aliás, a realidade, mais do que
grave, parece ser trágica: dados europeus de 2000 colocavam 48% dos jovens
portugueses com 15 anos nos dois patamares inferiores de uma escala de 5 que
avalia níveis de leitura (cf. planonacionaldeleitura.gov.pt/). Face à
constatação comparativa de que em Portugal não se lê, são os instrumentos
desenvolvidos para medir essa não-leitura que se impõem como principal imagem
das práticas dos que o fazem: a leitura como capacidade de se compreender o que
se lê, uma competência (a «literacia»), e a leitura enquanto quantidade e
diversidade do que é lido, uma abundância (os «hábitos de leitura»).
A montante destas imagens, outras que a definem como «bem essencial», condição
de autonomia e plena consciência, de exercício da cidadania, de desenvolvimento
cognitivo, de enriquecimento cultural, mas igualmente como «alicerce da
sociedade» que se define como sendo «do conhecimento» (ibid.) um valorque,
por universalmente indisputável, parece, contudo, deixar esgotadas à partida
outras possibilidades de inquirição do que designa. É o próprio Plano Nacional
de Leitura a sublinhar o carácter parcelar da investigação existente
relativamente a esta matéria. O que significa certamente o reconhecimento da
necessidade de alargar, neste caso como noutros, o escrutínio da realidade a
outras formas menos imediatas. Ora é precisamente o embate crítico com uma
certa evidência daquilo que se entende por leitura que constitui o principal
contributo genérico da colectânea de trabalhos publicados em Estudos de
Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX. Mas também, e para além dos
contributos particulares que apresenta, uma tentativa de avaliação dos limites
e potencialidades de aplicação de várias metodologias a este domínio que tem
a sua tradução implícita no sucesso relativo de cada uma dessas abordagens e a
concretização explícita na avaliação que deles se faz a abrir o volume, pela
mão do seu organizador.
A este respeito, de resto, são tomadas posições claras: obra que tem na origem
um trabalho colectivo de seminário, começou-se justamente, segundo se afirma na
«Introdução», por procurar «ultrapassar o sentido sociográfico dos inquéritos à
leitura», a que se opôs, por um lado, uma «perspectiva micro» e, por outro, o
«investimento em diferentes dimensões temporais» (p. 1); opção parcialmente
concretizada em «pequenos estudos de caso» que se perfilavam também face à
«aridez pseudoteórica de muitas abordagens sociológicas [ ]» (pp. 1-2). Mas que
não podem dispensar, como, aliás, também se sublinha, o recurso a «modelos» ou,
mais genericamente, à reflexão teórica que permita superar o nível, também ele
imediato, do dado. A heterogeneidade dos trabalhos em causa, contudo, revela
justamente, para além da diversidade de interesses ou até dos diferentes perfis
académicos dos autores, as dificuldades inerentes, porventura maiores do que à
partida se pode supor, a exercícios académicos de natureza etnográfica,
paradoxalmente em virtude daquilo que se considera ser um dos seus principais
benefícios a proximidade ao real. Não é certamente por acaso que, face a
outros trabalhos do volume, de pendor mais estritamente historiográfico ou de
mais sólida conceptualização teórica, são sobretudo alguns daqueles que ficam
aquém dos seus objectivos; muito embora, claro, desse insucesso relativo não se
possa inferir, num trabalho que se assume como quase fundador de uma área de
estudos em Portugal, a inoperância de metodologias desse tipo ou, menos ainda,
o fracasso desse esforço colectivo. Pelo contrário, é também na medida da
consciência do que fica por fazer e da assunção dos problemas metodológicos
associados ao propósito «ético ou político» de «dar voz» (p. 11) a quem
normalmente não é ouvido que esse sucesso pode ser ponderado.
Essa dimensão, aliás, afigura-se fundamental, na senda de trabalhos de valor
paradigmático nesta área, e de par com a assunção da análise histórica, para
ultrapassar o âmbito da evidência e superar visões estritamente institucionais.
É, pois, de acordo com essa dupla perspectiva crítica que se estruturam as três
partes principais da obra, que, não sendo absolutamente estanques, atravessa
também cada uma delas e muitos dos artigos que as compõem. Assim, se na
primeira, «Escolas e bibliotecas», é o escrutínio historiográfico da própria
dimensão institucional que sobressai, nem por isso se deixa de avaliar o modo
como no terreno diversas «missões civilizadoras» foram ou não logrando os seus
intentos; em «Práticas e comunidades de leitura» (parte ii), por seu turno, a
«reconstituição dos percursos de leitores» é feita à luz da acção de outros
agentes que, não podendo determinar em absoluto a «produção de leitores», não
deixam de estruturar, a vários níveis, a relação destes com o objecto impresso.
Finalmente, em «Escritores, intelectuais e cientistas» (parte iii) são os
próprios produtores de textos que são escrutinados nessa dupla perspectiva,
quer como leitores (de terceiros), quer ainda como veículos e produtores de
imagens daquilo que se entende (ou deve entender) por leitura.
Mais em concreto, na parte i, Miguel Jerónimo abre o volume com uma análise da
sobreposição de políticas educativas dirigidas às colónias entre finais do
século xix e princípios do século xx e do papel que nelas desempenhou o ensino
da língua portuguesa, como imposição política e administrativa, que ajuda a
compreender historicamente, enquanto legado colonial, a constituição dessa
«comunidade de leitura imaginada» que dá pelo nome de lusofonia. Ainda em torno
de um eixo traçado pelo que genericamente pode ser entendido por políticas
educativas seguem-se quatro artigos que, por se situarem dentro de um mesmo
arco cronológico e de pontualmente estabelecerem algumas pontes entre si, podem
ser lidos em conjunto. Daniel Melo e Luciano Amaral apresentam dois artigos
mais gerais em que procuram avaliar as acções neste domínio durante o período
do Estado Novo, muito embora adoptando orientações bem distintas. Amaral
averigua, por recurso a modelos econométricos, a importância relativa de oferta
e procura para explicar o crescimento da escolarização ao longo daquele
período, em contraponto tácito com o período republicano; Melo, extravasando
explicitamente os limites cronológicos do regime, procede a uma comparação de
duas campanhas de alfabetização, uma dos anos 50, outra do imediato pós-25 de
Abril, no sentido de as caracterizar no seu contexto, o que lhe permite também
interpretá-las, nas suas semelhanças e diferenças, à luz dos respectivos
pressupostos. No segundo par de artigos é precisamente o confronto entre
intenções e resultados que teoricamente estrutura a análise da acção de duas
instituições educativas que exerceram a sua actividade também durante o período
fascista: «As bibliotecas das casas do povo» e «As bibliotecas itinerantes da
Fundação Calouste Gulbenkian». Metodologicamente, no primeiro, Nuno Domingos
apresenta-nos um bom exemplo do valor paradigmático do estudo de caso,
desenvolvendo-o na dupla perspectiva, global evocada pela minuciosa
caracterização dessa instituição considerada à luz das suas categorizações e
dos seus intentos totalitários e local o contexto particular de uma das
suas instâncias específicas, na sua relação com os leitores e destes com outras
práticas de leitura. A mesma opção no artigo de Tiago Santos peca apenas por
concretização meramente exploratória.
Menos conseguidos parecem-nos ser os dois diários de campo apresentados sobre
«A leitura no quotidiano escolar», i e ii (respectivamente de Alexandra Vaz e
Andrea Rocha), cujo estatuto, aliás, não é inteligível em si mesmo e que nem a
boa introdução teórica que os precede (de Vaz e Domingos) consegue delimitar.
Em causa está justamente a relação entre a observação e a reflexão teórica,
que, por mais que as consideremos analiticamente distintas (ou que
efectivamente o sejam na sucessão cronológica dos passos que conduzem a um
resultado final), não tolera a invocação post hocou apenas circunstancialda
segunda. Porque é a própria observação que se ressente desse divórcio. Facto
que tem aqui tradução no registo algo cego daquilo que rodeia o observador, mas
também num certo desencontro entre aquilo que se procura e o que afinal se
conclui. Arrematar que «a escola não consegue vencer diferenças de aptidão com
origem no contexto familiar» (p. 339) com base na observação de escolas em
contextos, eles próprios, de sinal social perfeitamente oposto não só parece
exigir da escola algo que ela manifestamente não pode garantir, como fica aquém
das hipóteses avançadas na referida introdução, oriundas da sociologia da
educação, nomeadamente que a utilização da língua (e só no limiar da leitura)
em contexto escolar é ela própria produtora de desigualdades o que se pode
aferir não tanto por desempenhos desiguais entre o que à partida é já
diferente, mas antes pela distinta valorização de investimentos académicos que
são apenasobjectivamente iguais para quem os avalia.
A inclinação etnográfica aqui ensaiada sobressai no segundo conjunto de
artigos, «Práticas e comunidades de leitura». Em boa medida, a sua leitura
global beneficia da explicitação que se faz a abrir, num ensaio de Nuno
Medeiros, de algumas das principais abordagens teóricas neste domínio de
investigação, que enquadram sociologicamente o recurso a tal procedimento.
Embora centrado em duas figuras específicas do mercado do livro, editor e
livreiro, e no papel que estes, entre outros, assumem como «agentes de
mediação» entre o autor e o leitor, orientando práticas efectivas de leitura,
Medeiros abre igualmente caminho à noção de «comunidades de leitura», de certa
forma tributária nas suas manifestações efectivas da acção daqueles, embora a
ela não redutíveis. São, pois, esses dois domínios e o confronto entre eles que
aqui servem de base à estrutura conceptual genérica dos vários artigos. Se em
alguns deles predomina a tentativa de aceder às lógicas próprias dos primeiros
(por exemplo, «A Livraria Esperança na Madeira», de César Rodrigues e Marçal
Castro, ou «História de um clube de livros», de Nuno Domingos e Inês Brasão) e
noutros é sobretudo a voz de leitores que se faz ouvir (como «Leituras no
feminino», de Brasão, «A vida como ela é», sobre a obra de Margarida Rebelo
Pinto, de Sónia Nascimento, ou «Imaginários de novela», de Cármen Maciel, sobre
revistas especializadas), em quase todos eles acabam por se insinuar as figuras
simétricas aos objectos explicitamente estudados os sentidos subjectivamente
atribuídos ao que é exteriormente estruturado ou, inversamente, as lógicas
estruturais que transparecem na atribuição individual ou colectiva de
significados. O que, não deixando de ser por princípio consequente com a
orientação teórica de fundo, é-o apenas na medida e nos casos em que não se
reduz funcionalmente o segundo termo ao primeiro.
Noutros não nos parece líquido que de uma avaliação parcelar (ou mesmo
exaustiva) das estratégias de determinado agente se possa deduzir o que
efectivamente se encontra na base da constituição da correspondente comunidade
de consumidores de livros, como não é líquido que a partir dos sentidos
atribuídos por certo leitor a determinada publicação se possa conceber a
existência desta (ou, por exemplo, o seu sucesso) como simples ocupação de um
espaço (sentimental, intelectual ) que até então estaria por preencher até
porque essa necessidade subjectiva precisa, ela própria, de ser submetida a
escrutínio histórico e sociológico (como procuram fazer, no quadro de
determinados universos, Vítor de Barros, em «Leituras de auto-ajuda e
inteligência emocional», José Neves, num artigo sobre a leitura entre
intelectuais comunistas, e, mais liminarmente, Domingos e Rahul Kumar, num
artigo sobre a imprensa desportiva). Uma possível estratégia para evitar
semelhante reducionismo, para além de uma clara delimitação do objecto (nem
sempre perfeitamente cumprida, como sucede em Nascimento e em Maciel), encontra
aqui concretização num conjunto de três artigos que procuram de forma
concertada atender por passos a ambos os lados do problema. Referimo-nos ao
confronto entre as histórias de dois géneros editoriais (jornais desportivos e
«revistas de sociedade», a segunda pela mão de Brasão) com uma etnografia
comparada de leitores de ambas as publicações (de Brasão e Kumar). Pena é que,
neste último caso, a bem delineada e interessante proposta de «compreender os
significados sociais da leitura de objectos impressos que não estão inscritos
nas formas dominantes nem qualificam os `grandes leitores'» (p. 642) seja
realizada à custa daqueles (barbeiro e empregada de balcão) sobre os quais,
afinal, se estriba o estereótipo de que, em certos casos, mas justamente só em
certos casos, as práticas dos leitores estão ancoradas no seu quotidiano e
noutros não. Mais consentânea com o objecto proposto, parece-nos, seria a opção
por um de dois inversos: procurar neles o que não é imediatamente sucedâneo
dessa imersão numa realidade que só aparentemente é sua, ou objectivar outros
consumidores, dos mesmos e de outros produtos, que normalmente permanecem
imunes ao cliché.
Esta segunda alternativa é, aliás, prosseguida com assinalável sucesso na parte
iii do livro. Particularmente por Rui Branco, que, a propósito do «Integralismo
Lusitano» e seus intelectuais, delineia um conceito de leitura que se traduz
não tanto num «processo cognitivo individual» e mais no modo «como se processam
a circulação e recepção de sentidos, e a organização da leitura, num espaço
social alargado e assimétrico» (p. 726), procurando, do mesmo passo, dotar a
noção de «influência» de uma espessura contextual e, nessa medida, de um
dinamismo que torna precária (e, portanto, sujeita a mutações) «a geografia
geral das trocas» intelectuais. É igualmente por oposição a uma imagem
difusionista de circulação das ideias, neste caso de programas científicos, que
ora supõe um espaço socialque por demasiado plano deixa de o ser, ora uma
topologia demasiado rígida dos lugares de emissão e recepção, mais estritamente
«geográfica» do que sociológica, que Ricardo Roque procura interpretar a
história da antropologia colonial portuguesa na primeira metade do século xx à
luz do que se lhe afigura ser um conflito entre os seus cultores metropolitanos
e outros radicados nas colónias. Mais estritamente relacionados com o tema da
leitura são os restantes três artigos, que, cada um por si, permitem entrever,
no momento histórico da sua génese, o processo de aposição, entre intelectuais,
de certas imagens à noção genérica de leitura: a partir de «Dois inquéritos
literários (1912, 1920)», Nuno Mota considera a «ascensão da literatura a
categoria pragmática» (p. 776), em sentido pedagógico, procurando confrontar
esta análise, deduzida da teorização efectuada pelos grupos de escritores, com
outra dos consumos literários da época (e para a qual concebe, aliás, face à
inexistência de estatísticas, estratégias interessantíssimas); Neves, num
trabalho de fôlego sobre a Biblioteca Cosmos de Bento Jesus Caraça, mostra como
também este concretizou naquela uma visão «pragmática» de leitura, inspirada
num certo marxismo, embora a ele não vergada tacticamente, onde se toma a
cultura como objecto em si mais do que como mero instrumento da luta política;
finalmente, João Pedro George procura relacionar aquilo que considera ser a
perfeita delimitação, em meados da década de 70, de um discurso de valorização
incondicional da leitura por parte dos escritores com outro mais antigo
relativo à sua precária condição sócio-profissional (e ainda com a recepção em
Portugal da obra de autores que pertenceram, e de outros que George associa, à
chamada escola de Frankfurt). Uma derradeira nota ainda para assinalar os dois
conjuntos de fotografias sobre leitura que acompanham o volume, o primeiro do
acervo do Arquivo Fotográfico da CML, o segundo da autoria de Paulo Catrica.
Frederico Ágoas
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa