L'exil de soi: sans abri d'ici et d'ailleurs
Lionel Thelen, L'exil de soi: sans abri d'ici et d'ailleurs, Bruxelas, Facultés
Universitaires Saint-Louis, 2006, 318 páginas.
O livro L'Exil de soi: sans abri d'ici et d'ailleurs é uma síntese da tese de
doutoramento em Antropologia de Lionel Thelen, cuja temática central são as
condições e modos de vida dos sem-abrigo. O autor faz uma exploração desta
temática em três países, França, Portugal e Bélgica, através de metodologias
diversificadas, donde sobressai um trabalho de observação participante como
voluntário em associações de suporte aos sem-abrigo e, mais interessante ainda,
assumindo-se como um sem-abrigo, nomeadamente no caso de Portugal, onde vive na
rua durante um mês, participando no mesmo modo de vida.
Iniciando-se a pesquisa pela revisão da literatura e pela própria definição do
objecto, o investigador confronta-se desde logo com a própria definição da
categoria de sem-abrigo nos vários países. Na Bélgica todos os que não dispõem
de uma habitação clássica e vivem em situações de degradação habitacional são
considerados sem abrigo. Em Portugal, esse conceito é apenas aplicado aos que
vivem na rua. Essa diversidade não impede o autor de encontrar a sua própria
definição, centrando a atenção naqueles que não têm um tecto para viver e vivem
sempre, ou quase sempre, na rua.
Não sendo um trabalho verdadeiramente comparativo, a pesquisa por países é
apresentada na sua singularidade em três capítulos diferentes, cada um deles
centrado num país, pretendendo-se «triangular» a diversidade das situações,
quer pela diversidade dos países, quer pelo aprofundamento do perfil dos «sem-
abrigo», quer ainda através da análise das políticas de «inserção» que ensaiam
as diversas instituições que com eles lidam.
O objectivo da pesquisa centra-se sobretudo nas transformações identitárias e
relacionais que derivam do viver na rua, defendendo o autor , num capitulo de
reflexão epistemológica e metodológica muito interessante, que esse
conhecimento não seria possível sem mergulhar profundamente no quotidiano dos
sem-abrigo, entendendo as necessárias estratégias de sobrevivência e as
inevitáveis opções que derivam deste modo de vida.
No capítulo sobre a França, onde a pesquisa decorreu em Nanterrre em 1999, o
autor é particularmente crítico face à instituição (CHAPSA) que é suposto «dar
abrigo» durante a noite e que conclui gerar o mesmo carácter totalitário da
rua, reproduzindo as mesmas inseguranças e impessoalidade.
A pesquisa em Portugal é talvez das mais interessantes, pois profundamente
mergulhada na convivência com os sem-abrigo. Ressaltam duas instituições que
frequenta como sem-abrigo a da Santa Casa da Misericórdia e a do Exército de
Salvação , das quais revela a tradicional guerrilha institucional. Na sua
personagem como sem-abrigo dá particularmente conta de algumas especificidades
da situação portuguesa face aos sem-abrigo. Por um lado, uma maior
heterogeneidade de perfis e de ocupações (pequenos trabalhos, como a arrumação
de carros, a venda de objectos que permitem pequenos rendimentos e substituem
as políticas sociais insuficientes), mas também a constatação de como a dupla
exclusão dos sem trabalho e imigrantes pode ser penalizadora. Finalmente, em
Bruxelas, na Bélgica, reforça o trabalho de terreno, analisando um serviço de
apoio de urgência e a permanência nos abrigos de noite. Deste país ressalta uma
forma diferente de os profissionais lidarem com as pessoas sem abrigo, através
de um misto de realismo e humanidade no trato, donde resulta uma interacção
mais humanizante.
A partir de um longo trabalho de terreno, Lionel traça o retrato de uma grande
diversidade de pessoas sem abrigo e das instituições e profissionais que lidam
com elas, muito particularmente nos abrigos nocturnos. Embora o seu olhar
central sejam as estratégias de sobrevivência dos sem-abrigo, um dos resultados
da pesquisa é também uma reflexão sobre os serviços e as políticas sociais.
Convém ressaltar como frequentemente as instituições, e a ausência de
preparação específica do pessoal que as protagoniza, que se diz existirem para
integrar, podem ser tão violentas e inseguras como a rua, manifestando um
profundo desconhecimento e desprezo pelo sofrimento e impotência que este modo
de vida não pode deixar de gerar.
Mas o centro do trabalho, ancorado nesta vivência empírica de observação
participante, muito bem descrita, é de facto a estruturação identitária que
decorre deste modo de vida na rua. Mais do que procurar as causas, Lionel
Thelen procura as estratégias de sobrevivência exigidas por este modo de vida,
encontrando dois elementos centrais: a adaptação à rua, enraizada na negação
dos outros (le déni des autres), e o exílio de si (l'exil de soi).
A adaptação à rua é o corolário de circunstâncias anteriores que se identificam
através de um longo percurso de falta de afecto, de insuficiente enraizamento
familiar solidário, e que são agora reforçadas na rua pela constante humilhação
intrínseca à situação de sem-abrigo. A rua emerge como uma instituição total
goffmaniana num universo ditado pela máxima «cada um por si e todos contra
todos», que transforma cada um numa ilha, arredada de afectos e de
solidariedades, incluindo entre os companheiros de rua. A «negação dos outros»
tem assim um duplo sentido, significando, por um lado, a negação factual e
simbólica que os outros atribuem aos sem-abrigo e, por outro lado, o fechamento
pessoal dos sem-abrigo, que é a única estratégia que lhes permite viver com
essa desafectação e preservar uma integridade identitária, mesmo que mínima.
O «exílio de si» é o corolário deste modo de vida, definido como um habitus
específico que significa, segundo o autor, a capacidade de restringir de tal
modo as suas necessidades e simplificar a existência, funcionalizando a forma
de conceber e lidar com o mundo exterior e conformando-se às exigências de um
meio hostil. O exílio de si exige a adaptação da percepção, do tempo, dos
outros e de si próprio, o que permite viver na rua, com tudo o que isso
significa. O exílio de si passa, assim, quer pela negação dos outros, de que já
se falou, quer ainda por constrangimentos ligados à mutação do conceito de
vida, ela própria, e sobretudo à metamorfose do conceito de si próprio,
traduzido exteriormente pela descuidada e precária gestão da higiene, das
emoções, das situações de saúde, etc.
Lionel Thelen consegue provar a sua hipótese de partida de que os sem-abrigo
são o culminar de um processo de dessocialização que começou muito antes na
família e na rede de afectos e que encontram na rua o seu meio «natural» de
finitude. Mais do que problemas psicológicos, os sem-abrigo accionam
estratégias de aprendizagem que lhes permitem viver no exílio de si e de todos
os outros, apoiando-se frequentemente em condimentos que favorecem o lidar com
essa imensa solidão: o álcool, as drogas, etc.
A maioria das instituições ditas de suporte mais não faz do que reforçar as
dimensões de desumanização, favorecendo os esquemas de reprodução da violência
e humilhação da rua, não se oferecendo como alternativa nem afectiva nem
funcional ou simbólica, alimentando assim a representação a partir da qual o
sem-abrigo se vê a si, aos outros e à sociedade.
O livro L'Exil de soi: sans abri d'ici et d'ailleurs foge à tradição dos
estudos quantitativos sobre a população sem abrigo, mergulhando corajosamente
num modo de vida distante do universo de referência do investigador
tradicional, utilizando uma metodologia compreensiva e uma rara capacidade
ética e metodológica que nos fornece novos e muito interessantes elementos de
informação que aumentam o conhecimento sobre a mais completa das exclusões
sociais e que poderão influenciar as instituições e as políticas sociais que
pretendem lidar com os sem-abrigo.
Isabel Guerra
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa