Compreender os Media. As Extensões de Marshall McLuhan
Filipa Subtil, Compreender os Media. As Extensões de Marshall McLuhan, Coimbra,
MinervaCoimbra, 2006, 180 páginas.
Quando, na ausência de GPS a bordo, consultamos o Google Maps antes de nos
dirigirmos a uma região que não conhecemos bem (ou não conhecemos de todo),
definindo o trajecto a seguir; quando viajamos de blog em blog, deixando
comentários nas respectivas caixas de mensagens, ou editamos nós próprios um
post; quando fazemos uma transferência bancária, sentados diante do
computador...
Bem, tudo isso depende de reajustamentos funcionais que o novo ambiente
tecnológico marcado pela existência da Internet e da conversão digital dos
meios de informação e comunicação trouxe.
Há cerca de meio século, um autor canadiano da escola de Toronto publicava um
dos seus primeiros livros acerca das tecnologias e dos media: The Mechanical
Bride. Folklore of Industrial Man. Nas obras seguintes, provocatório e
intuitivo, haveria de utilizar uma série de ideias e conceitos que hoje inundam
os discursos mediáticos, sem já referirem o seu autor, as suas teorias e a sua
continuada actualidade.
Contornando a facilidade das modas intelectuais, os trabalhos a que Filipa
Subtil se entregou nos últimos anos
1
trazem a marca de uma reflexão aprofundada relativamente à obra desse pensador
canadiano que inundou o léxico dos anos 60 e 70 para, gradualmente, cair num
quase completo esquecimento.
Com sorte semelhante à de outros autores de referência, alguns dos termos
vulgarizados a pretexto das suas obras correm mundo, desligados dos conceitos
em que estiveram previamente ancorados, no quadro das suas reflexões e
propostas.
«Aldeia global», meios «frios» ou «quentes», as tecnologias como «extensões»
dos órgãos e dos sentidos do corpo humano; e, porventura, o mais desafiante e
controverso de todos, a asserção de que «o meio é a mensagem», ou como, fruto
do acaso das gralhas tipográficas, o autor um dia deixou deliberada e
humoradamente passar uma delas, convertendo «o meio é a mensagem» em «o meio é
a massagem».
Neste exercício de investigação e reflexão, Filipa Subtil reconstitui o núcleo
principal dos conceitos cunhados por Marshall McLuhan e empreende uma viagem
com três objectivos complementares:
1. Apresenta a génese das principais ideias e conceitos que o autor de
Understanding Media
2
(1964) utiliza nos trabalhos publicados, revisitando para isso épocas e
escolas de pensamento mais ou menos remotas, de Aristóteles a Benjamim, de Lee
Worf a Eduard Sapir, recobrindo uma extensa lista de produções conceptuais que
inspiraram e influenciaram a escola de Toronto;
2. Passa em revisão as diferentes declinações das teses mcluhanianas na
literatura especializada em que lhe foram consagradas abordagens críticas
substanciais, fornecendo, a partir de aí, um roteiro da recepção às propostas
que o autor da Galáxia de Gutenberg
3
avançou;
3. Sistematiza o legado de McLuhan, fazendo-o assentar no percurso do
pensamento acerca das tecnologias, da comunicação oral até às problemáticas do
transumanismo, discutindo as tendências e consequências implicadas.
A obra de McLuhan surge aqui associada a um olhar específico sobre a história,
enfatizando o papel estruturante das vias e tecnologias da informação,
comunicação e transporte.
Uma tal concepção da história travejada pela sucessão, acumulação e
substituição das tecnologias, em que os homens, em sociedade, foram
transformando as suas condições de vida em praticamente todos os planos da
existência: social, cultural, político e religioso; no plano psicológico
(sensorial e perceptivo); no plano filosófico (epistemológico e ontológico).
A opção da autora na escolha do subtítulo As extensões de Marshall McLuhan
remete para a ideia de que a influência deste autor se «estende», deixando
inscrições indeléveis noutras obras e quadros teóricos. Ao mesmo tempo revela
bastante dessa disposição metodológica de inscrever o património de McLuhan
numa sucessão de ideários que começam por atribuir às soluções técnicas a
função supletiva de prolongamentos do corpo humano (a continuação do corpo para
lá dele próprio) e se projectam, «finalmente», para fora do corpo, tomando um
ponto de observação imaginário, «exterior», pós-humano, anunciando as epifanias
da clonagem, da transgenia e de uma nova condição que torna as actuais
características gerais do homem sapiens-sapiens ultrapassadas e obsoletas.
Com um sentido de sistematização extraordinário, Filipa Subtil passa em revista
os principais conceitos que constituem o núcleo do património teórico de
McLuhan, detendo-se, intermitentemente, para uma anotação pessoal, ou
confrontando autores que submeteram essas contribuições a um reexame cerrado,
apontando para alguns dos aspectos mais polémicos da teorização. Está neste
plano, por exemplo, a oposição «meios quentes» e «meios frios», que outros
autores recusaram na versão primitiva, sem embargo de a retomarem, alargando o
âmbito da tipificação e reformulando as suas aplicações.
Porém, a proeminência heurística do aforismo «o meio é a mensagem» agiganta-se
no interior do texto da autora, constituindo-se na pedra-de-toque para a
compreensão do pensador canadiano.
Essa formulação «o meio é a mensagem» decorre, simultaneamente, de uma
intuição feliz e do estudo atento do que até então fora publicado, cruzando
objectos e temáticas, tendencialmente abordadas em separado: media e
tecnologias; história, psicologia, sociedade...
Marshall McLuhan poderá não ter atribuído, de início, a importância e a
densidade poética que o aforismo veio a revelar. As polémicas que desencadeou e
as resistências que se opuseram à validação da equação «meio ó mensagem»
impeliram-no a retrabalhá-la, desenvolvê-la e explicitá-la numerosas vezes,
testando ao mesmo tempo o potencial dessa hipótese central.
Filipa Subtil conduz-nos através de um emaranhado de contradições em que
diferentes autores se apropriam da máxima mcluhaniana, lhe redefinem os
contornos e o alcance, reforçando o enfoque da análise no aparato tecnológico,
em detrimento dos conteúdos, ou então, procurando novos equilíbrios,
distribuindo a atenção por ambos os termos, confirmando, em numerosos casos,
que a emergência de novas tecnologias influencia a organização social,
concorrem para a criação de ambientes sensivelmente diferentes dos anteriores,
afectando não apenas os campos de experiência, mas, inclusivamente, os da
própria percepção. Assim, curiosamente, os efeitos cognitivos que Saperas4
(entre outros) consignou à «comunicação de massas», mais preocupado com a
influência ideológica, a repetição temática, a selecção e apresentação das
notícias, passavam a ser atribuídos a outro factor que, associado e articulado
com «todos» os conteúdos, criava, ele próprio, as condicionantes cognitivas. A
rádio, a televisão, a imprensa escrita, extensões das faculdades de ouvir, ver
e imaginar, acabariam por incutir transformações efectivas mais profundas e
duradouras do que, supostamente, qualquer sequência de conteúdos.
A autora mune-se de uma revisão bibliográfica assinalável, revisitando autores
como James Carey, Pierre Lévy, Roland Barthes, Armand Mattelart e Paul Virilio,
para citar apenas alguns, e discute, igualmente, com outros autores
eventualmente de afinidade electiva, como Hermínio Martins, José Luís Garcia,
José Bragança de Miranda, Rui Cádima, Maria Teresa da Cruz e Serge Proulx,
apoiando solidamente as suas asserções e fornecendo um quadro geral de grande
clareza.
«O meio é a mensagem» surgiu, à época, como uma provocação intelectual. Não
apenas McLuhan se situava, pelo ângulo de abordagem dos media,na tradição do
determinismo tecnológico, como a equação que avançava implicava, para ser
plenamente aceite, uma ruptura de carácter ontológico, pois, se admitirmos que
uma coisa, além de ser ela própria, é ao mesmo tempo, outra, estamos não apenas
a dizer que ambas se equivalem, mas, simultaneamente, que, pelo valor que lhes
atribuímos, além de se equivalerem, se podem confundir.
A afirmação que, levada ao absurdo, foi por vezes entendida como «o meio é
tudo», «a mensagem, nada»!, pelo que comporta de desafio interrogativo, poderia
ter sido glosada, em tons diferentes, por muitos outros autores, a que Filipa
Subtil, por certo, não reconheceu pertinência ou adequação que justificasse uma
menção especial.
Claude Léví-Strauss, frequentemente acusado de desvalorizar contextos nas suas
análises de mitos, poderia, provavelmente, reconhecer que a mensagem é o
próprio meio, o que levantaria alguns problemas de compreensão, mas manteria
intactos os termos da equação semântica; Bruno Latour, por outro lado, não
teria dificuldade em admitir que o meio e a mensagem formam um todo que as
inscrições dos actores-rede vão diferenciando, e por aí adiante.
Um último aspecto que, pela sua relevância, não deve passar em claro é o que se
prende com a recepção reflectida e sistematizada de autores fundamentais na
área das ciências da comunicação. Este livro de Filipa Subtil averba uma
contribuição notável para a série, ainda escassa, de obras destinadas à
compreensão, discussão e divulgação de ideários geralmente aludidos de forma
fragmentada e superficial. As reflexões próprias acerca de autores cuja
produção emergiu de contextos diferentes do nosso não são abundantes. No caso
vertente da obra de McLuhan, esse trabalho de filtragem é ainda mais raro.
Da emergência quase subversiva do núcleo de conceitos mcluhanianos que Filipa
Subtil passa em revista no seu livro até à banalização terminológica e ao
relativo esquecimento do autor da Galáxia de Gutenberg, o livro agora dado à
estampa inventaria, enumera e discute o que é fundamental para a compreensão de
qualquer obra.
A autora faz justiça a Marshall McLuhan, reconhecendo o carácter discutível mas
estimulante das suas galáxias.
Manuel Correia
Instituto Superior Técnico
1
A par da docência e da investigação, Filipa Subtil produziu nos últimos anos
vários artigos e comunicações acerca da escola de Toronto, dedicando particular
atenção aos trabalhos de Harold Innis e Marshall McLuhan.
2 Marshall McLuhan, Understanding the Media. The Extensions of Man, Cambridge,
Massachusetts, The MIT Press, 1997 [1964].
3 Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy. The Making Typographic Man, Toronto,
University of Toronto Press, 1997 [1962].
4
Enric Saperas, Los Efectos Cognitivos de la Comunicación de Masas, Barcelona,
Ariel, 1986.