Educação Popular e Movimentos Sociais
Rui Canário(org.), Educação Popular e Movimentos Sociais, Lisboa, Educa, 2007,
169 páginas.
Este livro reúne as comunicações apresentadas no I Seminário Luso-Brasileiro
sobre Educação Popular e Movimentos Sociais, realizado em Julho de 2006 no
âmbito do projecto "Formação de Adultos em Portugal,Educação Popular e
Movimentos Sociais", e esboça um retrato comparativo e crítico sobre a
formação de adultos no mundo luso-brasileiro.
A estrutura da obra permite antever que os verdadeiros protagonistas deste
seminário são, por um lado, os movimentos sociais brasileiros — analisados em
quatro dos seis capítulos — e, por outro lado, a educação rural — sendo cinco
dos capítulos dedicados especificamente ao tema. Apenas o primeiro capítulo, da
autoria de Rui Canário, foge a esta tendência, discutindo a pertinência
heurística dos conceitos de "emancipação social" e
"autonomia" na análise dos movimentos sociais, utilizando como
exemplo "a educação e o movimento popular do 25 de Abril". De acordo
com o autor, os movimentos populares pós-revolucionários constituem-se como
verdadeiras escolas de emancipação social, ao obrigarem à formação de múltiplas
formas organizacionais de reivindicação social e representarem em simultâneo
uma "explosão de autonomia" (p. 17), colocando o indivíduo como
central da sua própria educação. Para ilustrar esta perspectiva considera a
"situação limite" do "encarceramento político" (p. 31) no
Tarrafal, onde os prisioneiros, apesar do contexto repressivo que os rodeia,
desenvolvem mecanismos de autonomização e emancipação, chegando a criar um
sistema de ensino/aprendizagem próprio. No entanto, Rui Canário exagera na
aplicação destes conceitos, negligenciando os limites da resistência dos
prisioneiros à sua condição. Para tornar a sua reflexão mais consistente, o
autor deveria utilizar conceitos, como, por exemplo, o de "instituição
total" proposto por Erving Goffman (1968), que permitissem enquadrar a
autonomia e a emancipação em contextos de coacção e restrição comportamental.
Relativamente à educação popular no Brasil, João Francisco de Sousa (p. 37)
debruça-se sobre a "educação popular e os movimentos sociais no
Brasil", afirmando a centralidade da discussão em torno da educação
popular na América Latina, onde "os movimentos sociais populares têm
constituído um espaço permanente de confronto de saberes num processo em que as
necessidades populares se transformam em demandas sociais […]" (p. 49).
Estes movimentos vêm contestar a aplicação do modelo de educação popular
vigente, nomeadamente o processo de alfabetização iniciado na segunda metade do
século xx, apelando à necessidade de adaptação dessas práticas às
especificidades das populações.
Neste sentido, Sónia Maria Rummert e Célia Regina Vendramini propõem uma
reflexão crítica relativamente à forma como a educação popular é aplicada no
Brasil, a primeira analisando o "movimento sindical e políticas públicas
para a educação da classe trabalhadora no Brasil actual" e a segunda as
"aprendizagens colectivas no Movimento dos Sem Terra". Para Sónia
Rummert, o discurso e as práticas educativas oficiais caracterizam-se pela
manutenção da "dualidade" e da "hegemonia" do sistema
educativo, perpetuando as profundas desigualdades sociais no ensino. Esta
tendência traduz-se na ênfase do ensino primário para as classes trabalhadoras,
na obstrução ao acesso ao conhecimento científico e tecnológico e na absorção
de directivas internacionais que acentuam a posição periférica do Brasil no
mercado globalizado desse tipo de conhecimento. Mesmo durante a "idade de
ouro" da alfabetização brasileira, entre 1958 e 1964, muitos dos
movimentos populares desta época promovem apenas a escolaridade primária e o
ensino profissional como alternativas à pobreza, ao ócio e ao desemprego (pp.
101). Célia Regina Vendramini complementa esta perspectiva analisando o
Movimento dos Sem Terra (MST) como paradigma de um movimento popular que supera
o discurso e as práticas duais e hegemónicas oficiais. Reflexo da capitalização
e mecanização da agricultura brasileira a partir da segunda metade do século
xx, o MST constitui-se como um espaço de socialização política cujas
estratégias de reivindicação — a ocupação de terras, o "acampamento"
e o "assentamento" — ensinam os membros a organizar-se e a
manifestar-se, contribuindo para a criação de identidades sociais e oferecendo
um programa escolar alternativo à escola tradicional e ao ensino rural oficial
que visa ultrapassar as suas concepções e práticas urbano-cêntricas
desarreigadas da realidade rural.
Afastando-se desta reflexão crítica, no texto "Trabalho-educação nos
movimentos sociais populares do campo: a pedagogia da alternância" Marlene
Ribeiro descreve historicamente a importância da pedagogia da alternância
enquanto proposta educativa extra-estatal, criada pela igreja francesa
oitocentista para combater a abstinência e o abandono escolar dos camponeses.
Como o próprio nome indica, a pedagogia da alternância consiste no revezamento
de tempos e lugares de aprendizagem, propondo um sistema que recicla e conjuga
saberes práticos e teóricos mais próximos da realidade rural. No Brasil, esta
pedagogia é introduzida no final da década de 60 do século xx através do modelo
das escolas família agrícolas (EFAs) italianas. Para Marlene Ribeiro, esta
experiência permite confirmar "o desinteresse do Estado pela escolarização
dos camponeses" (p. 111) e a necessidade de a Igreja se afirmar como
alternativa ao capitalismo e ao comunismo no contexto pós-Segunda Guerra
Mundial. É interessante confrontar este texto com os dois textos anteriores,
uma vez que Marlene Ribeiro não questiona as limitações desta proposta sem
aprofundar a crítica à pedagogia da alternância como forma de
instrumentalização das camadas populares para suprir a necessidade de mão-de-
obra qualificada.
No último capítulo, Abílio Amiguinho apresenta um testemunho sobre "o
projecto das escolas rurais como movimento social" a partir da sua
participação no projecto "Escolas rurais no Alentejo". Embora a
princípio fosse um mero programa de intervenção socioeducativa, cedo trouxe à
superfície a dimensão dos problemas vividos nas comunidades abrangidas pelo
projecto, confirmando a transformação das "necessidades populares [...] em
demandas sociais [...]", já apontada no capítulo de João Francisco de
Sousa (p. 49). Encerrando a obra, Abílio Amiguinho conclui que este projecto
prova, assim, que a perspectiva tecnicista do Estado poderá ser suplantada
através da imposição de "[...] um cenário de pensamento e de acção que
reposicione o escolar no educativo para favorecer uma educação de base onde as
crianças, adultos e adultos mais velhos se formem simultaneamente" (pp.
164-165).
O desequilíbrio entre as contribuições sobre a realidade portuguesa e a
realidade brasileira, bem como alguma desarticulação temática entre os textos,
dificultam um exercício comparativo mais aprofundado. Acresce ainda a quase
ausência de análises em torno da educação rural em Portugal que permitam, por
um lado, confrontar o fenómeno do analfabetismo em Portugal e no Brasil e, por
outro, avaliar as transformações educativas no nosso país após o 25 de Abril.
Por fim, não são questionadas as transformações na educação popular adulta
perante as conquistas da alfabetização e escolarização da população portuguesa
nem o impacto da "aprendizagem ao longo da vida", transversal aos
discursos políticos actuais. Ressalva-se, contudo, que este livro privilegia um
diálogo aberto entre o leitor e a obra. Ao lançar mais questões do que oferecer
respostas, incita-nos a interrogar as realidades educativas que nos são
familiares, propondo diferentes ângulos de análise úteis para as observar.
Ana Mafalda Graça
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa