O seguro social obrigatório em Portugal (1919-1928): acção e limites de um
Estado previdente
Este tipo de posição viria a ser assumido por outros adeptos incondicionais do
movimento associativo e de mutualidade livre que viram com bons olhos a
passagem a um sistema de seguros obrigatórios. Entre eles conta-se um dos
principais mentores e executores da legislação de Maio de 1919, José Francisco
Grilo.
No livro que dedicou à matéria específica do mutualismo rural e do crédito
agrícola (Grilo, 1912) manifesta fortes reticências em relação ao interesse ou
à possibilidade de o Estado poder assumir responsabilidade activa na atribuição
de pensões de invalidez ou velhice. Todavia, considera que a difícil situação
das classes trabalhadoras, sobretudo no sector agrícola, exigia um empenho
activo do Estado e dos poderes públicos no sentido de ser dada forma legal
obrigatória à mutualidade rural. Caberia aos proprietários, rendeiros e, em
contribuição mais modesta, aos próprios trabalhadores rurais assegurar o
financiamento das caixas de mutualidade rural. Ao Estado apenas se pedia um
papel cívico activo na promoção e divulgação da obrigatoriedade de existência
de tais instituições em cada freguesia do país.
As propostas de José Francisco Grilo vão ao encontro de teses semelhantes
apresentadas no Congresso Nacional da Mutualidade em 19113. São quase sempre
enquadradas por preocupações em garantir instrumentos eficazes de paz social e
de conciliação de interesses entre o trabalho e o capital. No caso destas
reflexões aplicadas ao sector agrícola surgem igualmente expressas as
preocupações em se evitar o êxodo rural e o acréscimo de emigração para o
Brasil, assim como a intenção de criar um sistema inovador de crédito agrícola,
constituído a partir dos fundos das mutualidades, que possibilitasse um
significativo incremento da produção na agricultura portuguesa.
Apesar de se declarar sempre fiel ao princípio da "mutualidade
invencível", um conceito que toma de empréstimo a Proudhon, Grilo inflecte
ligeiramente a sua posição ao expressar, no final da sua obra, a admiração e
aplauso que lhe merecia a recentíssima legislação sobre seguros sociais
aprovada em Inglaterra em 1911, de iniciativa e responsabilidade política de
Lloyd George. Em declaração que alarga o âmbito das suas propostas para o
conjunto dos sectores da economia portuguesa afirma:
Chegou a hora de se estudar e de se encarar resolutamente o problema
mutualista português. Temos de lançar os alicerces da mutualidade
obrigatória sobretudo para a inabilidade, preparando um horizonte de
bem-estar às classes activas do comércio e da indústria nas suas
variadas manifestações.
A Inglaterra, com o seu bill sobre seguro obrigatório, decretado este
ano, lançou ao mundo trabalhador o grande exemplo a seguir na
evolução do problema social [...] Os profissionais de todas as
indústrias e de comércio devem estar ligados pela solidariedade
mutualista_obrigatória, contribuindo o Estado, patrão e profissional
numa percentagem mínima, mas assente numa base que possa fortalecer
os alicerces da mutualidade [Grilo, 1912, pp. 388-389, sublinhado do
autor].
A posição de José Francisco Grilo deixa antever outro tipo de receptividade
face ao papel activo que poderia vir a ser desempenhado pelo Estado perante a
constatação de que a dimensão dos problemas a resolver exigia a presença de
instrumentos de promoção e coordenação mais eficazes. Três anos antes de
apresentar publicamente este ponto de vista, o assunto tinha também sido
objecto de uma atenta e minuciosa reflexão na obra que José Lobo d'Ávila Lima
apresentou na Universidade de Coimbra como requisito de provas académicas
dedicada ao tema dos socorros mútuos e seguros sociais (Lima, 1909). Vale a
pena recordar os aspectos essenciais desta obra ainda escrita no período da
monarquia e que, sem margem para dúvidas, constitui um momento alto do processo
de justificação doutrinal do sistema de seguros sociais obrigatórios que viria
a ser adoptado pela I República dez anos mais tarde.
Na primeira parte do livro, José Lobo d'Ávila Lima procede a uma apresentação
minuciosa dos três tipos principais de organização mutualista existentes no
mundo, nomeadamente o sistema de mutualidade livre prevalecente na Grã-Bretanha
e nos Estados Unidos, inspirado e fundado na tradição das friendly societies
inglesas, o regime de seguros obrigatórios, assente num modelo de forte
intervencionismo do Estado, à luz dos preceitos ditados pela legislação de
Bismarck na Alemanha nas décadas de 80 e 90 do século xix, e que também colhia
adeptos na Áustria, e o regime que intitula de "liberdade subsidiada"
e que corresponde à situação intermédia (entre a liberdade e o
intervencionismo) vivida em países latinos, como a Itália, a França e a
Bélgica. É sobre esta terceira modalidade que recai a sua escolha implícita
relativamente à experiência que devia ser seguida em Portugal.
A segunda parte do livro é justamente dedicada a expor a evolução do sistema de
socorros mútuos em Portugal e, sobretudo, a discutir no plano da ciência do
direito a natureza jurídica das associações de socorros mútuos enquanto pessoas
de direito privado com funções no domínio da previdência, dotadas de
personalidade moral, que obrigava a considerar a especificidade do seu estatuto
e modo de funcionamento. Se bem que não seja essa a perspectiva que nos
interessa aqui contemplar, não podemos deixar de sublinhar o cuidado da
reflexão doutrinal e a abundância da literatura jurídica estrangeira (sobretudo
francesa, italiana e alemã), que Lobo d'Ávila Lima cita e utiliza na sua
exposição académica.
A terceira parte do livro incide sobre o sistema de seguros sociais e sobre as
possibilidades da sua aplicação em Portugal. E é aqui que o autor discute a
questão da obrigatoriedade do seguro no quadro mais amplo dos atributos e
funções do Estado moderno. O seu propósito é identificar as soluções mais
adequadas para se resolver a questão social, ou seja, as situações de
dificuldade e carência que exigiam protecção e assistência pública. Após passar
em revista crítica as posições doutrinais advogadas pelas correntes de
pensamento individualistas e socialistas, Ávila Lima sustenta os méritos e
vantagens de uma via intermédia, conciliadora, inscrevendo os seus argumentos
nas proposições da corrente de solidarismo social advogada por autores como
Frédéric Le Play, Charles Gide e Paul Pic.
Esta moldura doutrinal funcionaria como justificação segura para erguer um
regime de seguros obrigatórios:
Nenhuma forma de intervencionismo legal melhor se conforma com a
noção e programa solidaristas, que a generalização_do_seguro
obrigatório,que não só permite elevar a condição das massas
proletárias, mas amplamente facilita a realização de obras de
previdência social, que redundam em obras de extrema utilidade
colectiva [Lima, 1909, p. 320, sublinhado do autor].
À luz deste projecto, o Estado surge investido como representante do interesse
geral ou bem comum da sociedade e, de forma implícita, também como agente do
progresso social e económico. A sua missão de vigilância e tutela em relação ao
funcionamento do sistema de seguros obrigatórios extensivos às situações de
doença, invalidez e velhice, acidentes de trabalho e desemprego não deveria
impedir o livre curso da iniciativa privada e a participação directa dos
principais beneficiários e responsáveis do sistema. Mas era fundamental contar
com a cumplicidade da intervenção limitada do "Estado-previdência"
(Lima, ibid., p. 321), cujos organismos dedicados ao desenvolvimento dos
seguros obrigatórios estariam dotados dos recursos estatísticos e técnicos sem
os quais o rigor e a estabilidade de todo o sistema não se poderiam sustentar.
Ávila Lima não hesita em criticar os vícios presentes na intervenção do Estado,
ou na sua ausência:
A entidade colectivista orçamental, que em Portugal se chama o
Estado, quando não mantém sobre os mais problemas nacionais uma
nirvânica indiferença, aborda-os timidamente e, em vez de facultar os
meios para uma solução franca e livre, prefere cifrar todo o seu
viciado empenho em embargar as iniciativas individuais nos moldes
estranguladores de uma sôfrega tutela [Lima, ibid., p. 488].
Conclui, assim, que a organização dos sistemas de mutualidade e previdência
social seria precisamente uma das esferas de intervenção do Estado em que
poderia ser demonstrada a razão da sua existência e as vantagens de uma
actuação bem ponderada:
É em nome dessa função nobilitante e suprema [função social do
Estado] que ao Estado português compete cada vez mais redimir a sua
passada inacção, lançando a esta terra, agitada por um fecundo ímpeto
de consciente renovação, os fundamentos indispensáveis duma obra de
bem-estar e perfeição sociais [...] O sistema de seguros sociais,
introduzido gradualmente, atento o seu indiscutível custo, nas
colunas do orçamento social português, condensa certamente a maior
parcela de felicidade e justas garantias com que se devem contemplar
as classes menos favorecidas da nossa terra (Lima, ibid., p. 491).
Esta é a herança que os políticos republicanos vão procurar valorizar e
prosseguir a partir de 1919. A ideia de seguro obrigatório que defenderam
insere-se numa mesma visão de conjunto sobre os atributos e funções do Estado,
sobre as formas de participação cívica e a sua moldura social, e enquadra-se na
matriz doutrinal comum do organicismo e solidarismo social de que Ávila Lima
foi acérrimo defensor. Não se tratava, portanto, de uma ideia nova, mas sim de
um projecto longamente amadurecido que, no final da Primeira Guerra Mundial,
conhecia, finalmente, as condições políticas indispensáveis à sua
concretização.
Âmbito e significado da legislação de 1919
A legislação dos seguros obrigatórios promulgada em Portugal em 1919 acompanha
o movimento doutrinal em matéria de política social, o qual se foi
desencadeando, um pouco por toda a Europa, nos finais do século xix e primeiras
décadas do século xx. Ao Estado passam a caber responsabilidades de intervenção
neste domínio, sendo a sua acção desenhada para estimular e completar as formas
tradicionais de assistência privada, beneficência e ajuda mútua, e não para as
substituir. Por detrás desta nova motivação do Estado encontram-se diferentes
factores, de que a crescente perturbação da ordem social desencadeada pelo
movimento reivindicativo do operariado e as necessidades de aumento de
produtividade das classes trabalhadoras reconhecidas pelo meio patronal são
referências correntes na historiografia sobre o tema4. A intervenção social do
Estado respondia assim, neste período concreto, à modernização das economias
capitalistas, visando a criação de um clima de ordem social baseado na
conciliação de interesses entre o trabalho e o capital.
Porém, ao contrário de outras experiências europeias que introduziram sistemas
de seguros obrigatórios e pensões de invalidez de forma faseada, a legislação
portuguesa de 1919 propôs um esquema global que integrava em simultâneo a
totalidade das matérias: doença, acidentes de trabalho, invalidez, velhice e
sobrevivência
5
. O ordenamento jurídico e o enquadramento legal e regulamentar do regime de
seguros sociais obrigatórios foram estabelecidos num conjunto de cinco decretos
com força de lei, todos datados de 10 de Maio de 1919, cada um deles abrangendo
as seguintes matérias específicas: seguro social obrigatório na doença (Decreto
n.º 5636); seguro social obrigatório contra desastres no trabalho (Decreto n.º
5637); seguro social obrigatório contra a invalidez, velhice e sobrevivência
(Decreto n.º 5638); organização das bolsas sociais de trabalho (Decreto n.º
5639); organização do Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e de
Previdência Geral (Decreto n.º 5640), organismo integrado no Ministério do
Trabalho e responsável por toda a administração e execução do programa de
seguro social obrigatório deste modo instituído
6
.
Cada um destes decretos é introduzido por um preâmbulo próprio que situa e
enquadra a razão da legislação produzida. Existem traços comuns nas motivações
e nas explicações políticas contempladas em cada preâmbulo, devendo ser
destacados alguns aspectos que conferem um sentido global e coerente a este
núcleo legislativo. Saliente-se, em primeiro lugar, o reconhecimento da
influência internacional, cujo exemplo é explicitamente referido e utilizado
para legitimar a intervenção estatal em Portugal. É destacado o facto de a
legislação sobre os seguros sociais obrigatórios estar já em vigor noutros
países europeus (nomeadamente na Alemanha, Áustria, Suíça, Dinamarca, Suécia e
Noruega), enquanto se ultimavam reformas semelhantes em França e em Espanha.
Particular relevo merece a acção desenvolvida em Inglaterra e as medidas
impulsionadas pelo primeiro-ministro Lloyd George, cuja figura de
"valoroso estadista" é expressamente homenageada na legislação
portuguesa (Decreto n.º 5636 e Decreto n.º 5638). Apontam-se ainda as condições
favoráveis criadas por um ambiente europeu propício, tendo em atenção o clima
de paz social no contexto do final da Primeira Guerra Mundial e o papel da
Sociedade das Nações no sentido da defesa dos direitos e condições laborais das
classes trabalhadoras. Finalmente, assinale-se a visão integrada de todas as
medidas legislativas enquanto fundamentos de um novo estado social que
corresponde aos ideais políticos republicanos e é expressão da vontade de que
esse novo edifício seja "em breve o maior baluarte da aliança entre o
capital e o trabalho, pois é nessa aliança que se encontra a solução de todos
os problemas futuros de natureza económica e social" (Decreto n.º 5640, p.
484).
As bases para a execução prática do modelo português assentavam em dois
pressupostos: o reconhecimento explícito da importância do papel anteriormente
exercido pelas mutualidades livres e pelas associações de socorros mútuos, por
um lado, e a dispensa de apoio financeiro directo por parte do Estado na
constituição dos fundos das pensões, por outro.
Na verdade, as funções exercidas pelo mutualismo livre são exaltadas,
representando estas "um organismo de solidariedade que prestou, através
dos tempos, os mais humanitários serviços à causa dos simples e dos humildes,
minorando muitas dores e infortúnios" (Decreto n.º 5636, p. 427). O seu
importante papel não impedia, contudo, a constatação da insuficiência dos
esforços desenvolvidos por estas instituições. Verificava-se a existência de um
número elevado da população activa (cerca de 2 milhões de indivíduos) não
abrangido por nenhuma forma de previdência ou assistência social e vivendo em
situação próxima da pobreza e miséria, pelo que as soluções para esta situação
teriam de ser enquadradas numa base institucional estável e com plenas
garantias de êxito. Segundo o entendimento do legislador, tal só poderia ser
concebido no âmbito dos seguros sociais de carácter obrigatório, cabendo ao
Estado a administração dos fundos de pensão. A sua criação contava com o
movimento mutualista já existente, ao qual era concedido lugar de destaque na
transição para o novo regime obrigatório, uma vez que se esperava que estas
associações se transformassem por livre vontade em sociedades de seguro
obrigatório. Em contraste com outras experiências europeias, o modelo português
isentava o Estado de uma contribuição financeira significativa, sendo os fundos
dos seguros constituídos exclusivamente pelas quotizações dos interessados,
consagrando a singularidade do caso nacional.
Vejamos agora, em linhas gerais, aspectos específicos do conteúdo de cada um
dos decretos promulgados em 10 de Maio de 1919, procurando deste modo
esclarecer problemas relacionados com a sua execução que não têm sido
devidamente elucidados.
O Decreto n.º5636, relativo ao seguro social obrigatório na doença, estabelece
o carácter universal do seu âmbito de aplicação mediante a obrigatoriedade de
inscrição de todos os indivíduos dos 15 aos 75 anos de ambos os sexos. Tal
obrigatoriedade decorreria da criação de mutualidades privativas de socorro na
doença, prevendo-se a existência de pelo menos uma mutualidade em cada
concelho; naqueles onde já existiam associações de socorros mútuos, estas
podiam, após alteração estatutária, transformar-se em sociedades compostas por
todos os indivíduos obrigados por lei à inscrição como sócios; nos concelhos
onde estas associações não existiam seriam formadas comissões a partir das
quais, após a promulgação dos respectivos estatutos, se instituiriam
mutualidades. Assim, algumas das mutualidades livres já existentes transformar-
se-iam, por vontade própria ou, na prática, por cedência à persuasão do
legislador, em mutualidades obrigatórias. O texto legal que estipula os
benefícios define também os tipos de sócios das mutualidades obrigatórias:
"sócios efectivos", com rendimento anual inferior a 900 escudos,
pagando uma quota mensal variável entre 30 e 50 centavos e que seriam os únicos
beneficiários do seguro de doença, e "sócios natos", com rendimento
anual superior a 900 escudos e que pagariam uma quota mensal entre 50 centavos
e 3 escudos, conforme o seu escalão de rendimento, e que não teriam direito a
beneficiar do seguro ou de qualquer subsídio. Tratava-se, portanto, de uma
fórmula de financiamento que impunha às classes de maior rendimento a
obrigatoriedade de proporcionarem de forma directa apoio social aos mais
desfavorecidos. Das quotas pagas ou subsídios recebidos seria efectuado o
respectivo registo em cadernetas próprias que constituíam título de inscrição e
de participação no sistema de seguros sociais. Uma das medidas porventura mais
polémicas e de mais difícil execução era a obrigatoriedade de prestação de
serviços pelos médicos municipais. Esta atitude de pressão ditada pelo Estado
enquadra-se num pressuposto geral de intervenção baseado na auto-sustentação
financeira do fundo necessário ao funcionamento deste seguro constituído a
partir das quotizações definidas. Ao Estado caberiam as despesas gerais
inerentes à administração e à fiscalização, no âmbito mais alargado das
actividades do ISSOPG, assim como a cedência gratuita de instalações para
funcionamento dos serviços a prestar pelas mutualidades obrigatórias.
O Decreto n.º 5637, referente ao seguro social obrigatório contra desastres no
trabalho, sustenta-se no princípio básico da responsabilidade dos patrões em
assumir os riscos inerentes ao exercício de actividade dos trabalhadores sob a
sua direcção. Com o objectivo de tornar extensivo a todas as actividades
profissionais tal princípio de responsabilidade patronal, procura-se contribuir
para o reforço da aliança entre o capital e o trabalho e para o fortalecimento
do espírito de justiça e de equidade nos processos de organização do trabalho.
O decreto procede a uma definição rigorosa da tipologia de pensões e
indemnizações que deveriam ser pagas em caso de acidente, tendo em atenção a
sua gravidade, o valor do salário do trabalhador vitimado e a dimensão do
agregado familiar. A administração e exploração deste ramo de seguros seriam
feitas através de sociedades mútuas de patrões ou através de companhias de
seguros nacionais ou estrangeiras, as quais deveriam fazer o depósito
antecipado das garantias e das reservas matemáticas das pensões (à taxa de 4,5%
sobre o valor do salário) na tesouraria do ISSOPG. Deste modo, o Estado
limitava-se a tutelar e fiscalizar a gestão deste seguro obrigatório
integralmente suportado pelas entidades patronais.
O Decreto n.º 5638, que regula o seguro social obrigatório contra a invalidez,
velhice e sobrevivência, acentua no seu preâmbulo a mensagem política de que se
trata de aprovar medidas da maior relevância para minorar situações de miséria
social. Concebido como complemento dos seguros de doença e acidentes de
trabalho, a sua aplicação englobava todos os indivíduos entre os 15 e os 65
anos com salário anual inferior a 900$, independentemente do seu estatuto
profissional ou funcional. O fundo para a manutenção deste seguro seria
constituído por quotas pagas pelas entidades patronais, correspondentes a 6% do
valor dos salários do pessoal ao seu serviço, e pelas contribuições dos
trabalhadores assalariados, correspondentes a 1,5% do seu salário. Também aqui
o Estado não possuía qualquer encargo de despesa ou responsabilidade directa na
constituição do capital necessário à manutenção deste seguro, competindo-lhe,
porém, a respectiva gestão. Para tal efeito, o ISSOPG ficava expressamente
autorizado a "celebrar operações de seguros contra a invalidez com um
consortium de sociedades de seguros nacionais legalmente constituídas no ramo
vida, ficando a seu cargo o pagamento da renda dos pensionistas".
O Decreto n.º 5639 refere-se à organização de bolsas sociais de trabalho,
designação que corresponde ao que modernamente se chama "centros de
emprego". Eram concebidas como instrumentos destinados a promover o
recenseamento e produção de informação sobre "desocupados" com vista
à sua contratação futura e, de um modo geral, a fomentar a proximidade e
intermediação entre a procura e a oferta de trabalho, isto é, seriam
"organismos destinados a desempenhar uma altíssima função para o
ressurgimento das forças produtivas da economia nacional". Apesar de o
decreto não o referir expressamente, estas bolsas terão sido inspiradas em
modelo semelhante criado na Bélgica no início do século (Lima, 1909, p. 101). A
estes organismos eram atribuídas funções de três tipos: de componente
estatística, através da publicação regular de informações sobre o estado do
mercado de trabalho por sector e profissão, promovendo um efectivo conhecimento
da oferta e da procura; de investigação, mediante a organização de conferências
e promoção de estudos sobre as causas das crises no mercado de trabalho; de
natureza formativa, associada à organização de cursos nocturnos para
analfabetos e à colaboração noutras iniciativas diversas de formação
profissional. Num tom que é bem revelador do enquadramento doutrinal subjacente
à sua criação, visando uma aliança mais duradoura entre o capital e o trabalho,
afirma-se:
As Bolsas Sociais de Trabalho serão os modernos templos do direito e
da educação das populações activas, para as orientar, instruir e
guiar perante a fase social, emancipadora, que se está esboçando em
toda a Humanidade, sem ódios, sem lutas violentas para a conquista
das aspirações generosas que a justiça assegura aos que, num trabalho
constante, dão o seu mais poderoso concurso para a criação de todas
as fontes de riqueza [Decreto n.º 5639, p. 476].
O mesmo decreto prevê a constituição de 100 bolsas, organizadas regionalmente
ao nível concelhio e integradas no ISSOPG (de quem dependiam financeiramente),
constituídas por uma comissão de cinco membros remunerados pelo Estado através
de verba orçamental inscrita no ISSOPG. Do conjunto das iniciativas
legislativas que definem o sistema de seguros sociais obrigatórias, a criação
de bolsas sociais de trabalho surge como aquela em que o Estado é chamado a
desempenhar uma intervenção e responsabilidade directas.
Ao Estado competia também uma acção de enquadramento geral e de tutela, o que
fica expresso no Decreto n.º 5640, relativo ao processo de organização interna
do ISSOPG. A justificação sobre a necessidade de se criar um organismo
responsável por todo o sistema de seguros sociais obrigatórios é feita nos
seguintes termos:
Os seguros sociais obrigatórios na doença, desastres de trabalho,
invalidez, velhice e sobrevivência são inadaptáveis sem um organismo
especial que execute, dê forma, faça enfim caminhar dentro da órbita
traçada todo o complexo maquinismo em que assenta a base inicial do
seu movimento. Uma obra desta natureza que se apresentasse
isoladamente seria repelida pelo meio e não passaria jamais dos
domínios de uma generosa iniciativa [Decreto n.º 5640, p. 486].
Ou seja, ao Estado, através de um organismo criado para o efeito, cabia
promover esta iniciativa, estimular e orientar as mutualidades livres para que
se tornassem obrigatórias e fomentar a formação de novas mutualidades numa base
concelhia. A direcção e coordenação do ISSOPG eram asseguradas por um conselho
de administração composto por onze vogais, sob a presidência do ministro do
Trabalho7, e a sua orgânica interna correspondia aos serviços associados a cada
tipo de seguro (doença, desastres, invalidez e velhice), às bolsas sociais de
trabalho, ao acompanhamento das actividades de mutualidades livres e
organizações não integradas, ao funcionamento dos tribunais de desastres de
trabalho e demais serviços de inspecção e fiscalização relacionados com a
assistência e previdência social. Para além das dotações orçamentais em vigor,
transferidas dos serviços das Direcções-Gerais de Previdência Social e de
Assistência Pública entretanto extintas, o funcionamento do ISSOPG seria
assegurado através de receitas próprias provenientes das seguintes quotizações:
2% do valor dos prémios cobrados pelas companhias de seguro nacionais; 3,5% do
valor dos prémios cobrados pelas companhias de seguro estrangeiras e 1,5% do
valor do capital emitido pelas sociedades bancárias. O decreto apresenta ainda
estimativas detalhadas sobre o valor das receitas e despesas anuais (prevendo
um saldo positivo anual de 360.000$00) e define a estrutura do quadro de
pessoal previsto, que englobaria um total de 310 pessoas, das quais 42
provenientes das estruturas do Ministério do Trabalho já existentes. Previa
ainda a contratação de 600 agentes auxiliares para operações de recenseamento e
recolha de informação, o que revela, sem dúvida, uma pesada estrutura de custos
fixos com o pessoal.
A finalizar esta breve resenha do conteúdo da legislação de 1919, refira-se que
a estrutura do ISSOPG viria a ser profundamente alterada com a aprovação do
Decreto n.º 11 267, de 25 de Novembro de 1925, o qual extingue o Ministério do
Trabalho e integra o ISSOPG no Ministério das Finanças. As funções de
investigação e análise do funcionamento do mercado de trabalho, de previsão e
prospectiva e difusão e promoção de ideias relativas à organização do trabalho
e da vida económica e social passam para a dependência de um novo organismo,
designado Instituto Social do Trabalho. O tom geral do preâmbulo apresenta de
forma muito negativa a experiência de funcionamento do Ministério do Trabalho,
muito especialmente do ISSOPG, do qual apenas é destacado algum sucesso no
desenvolvimento do sistema de seguros contra os desastres no trabalho,
interrogando-se mesmo o legislador sobre qual terá sido a acção desenvolvida em
relação aos outros seguros na criação das bolsas de trabalho e nas acções de
recenseamento e divulgação. Por isso se escreve, lapidarmente:
Não se carece de pôr em dúvida a honorabilidade dos funcionários para
se justificar o fracasso daquela ideia generosa. Apenas convém
advertir que outros resultados havia a esperar de uma instituição
evidentemente criada com o fim de melhor se administrar [Decreto n.º
11 267, p. 1620].
Assim, e como veremos na próxima secção, os problemas relacionados com o
deficiente funcionamento do ISSOPG eram conhecidos e enfrentados pelos seus
mentores e promotores iniciais, numa clara revelação da incapacidade de se
gerir uma máquina demasiado pesada para se alcançarem os fins desejados.
A actuação do ISSOPG: ambições e bloqueios
Quinze dias após a publicação dos decretos que instituíram os seguros
obrigatórios e criaram o ISSOPG realizou-se a primeira reunião do conselho de
administração, ao qual pertenciam dois dos mais destacados nomes do movimento
mutualista
8
. A rapidez com que se formou este organismo e a frequência inicial das
reuniões dos seus dirigentes9 são sinais do empenho colocado na concretização
do sistema de previdência preconizado directamente por alguns dos seus membros.
As primeiras preocupações dirigiram-se, para além da inevitável montagem da
estrutura administrativa e logística do Instituto, para a divulgação dos
seguros obrigatórios. As acções de propaganda eram consideradas essenciais e,
nesse sentido, o Instituto actuou rapidamente e de forma intensa. Foram
distribuídas milhares de circulares, publicados editais e impressos cartazes
enviados para todo o país. A ideia era patentear "de forma acessível [...]
e ao mesmo tempo com elevado espírito patriótico o que é o seguro na doença, na
invalidez e velhice, os desastres no trabalho e, enfim, toda a obra social do
Instituto a fim de levar a todos os pontos do país o conhecimento da melhor
obra da República em favor das classes menos abastadas" [acta n.º 2 de 30
de Maio de 1919]10.
Assim, através das actas do conselho de administração que assinalam a evolução
das actividades do Instituto, percebe-se o desenrolar de uma fase de arranque
que se terá prolongado até ao final de 1920, ao longo da qual o Instituto
procurou dar início e sequência às tarefas que a lei lhe impunha. Para
facilitar o processo de criação de estatutos por parte das futuras mutualidades
obrigatórias, o ISSOPG procedeu à redacção e divulgação de modelos de estatutos
que as mutualidades poderiam adaptar. Iniciaram-se ainda os trabalhos para o
recenseamento geral da população a ser sujeita aos seguros obrigatórios,
instrumento considerado de absoluta necessidade e prévio à implementação dos
seguros. Na verdade, note-se que se ignorava a dimensão da população que
estaria sujeita aos seguros obrigatórios, pois, dos 2 milhões de trabalhadores
que se estimava não estarem abrangidos por qualquer forma de assistência,
desconhecia-se a distribuição dos seus rendimentos e era, portanto, impossível
apurar quantos integravam os escalões definidos pela lei para beneficiarem do
sistema. Visando o desenvolvimento deste trabalho, procedeu-se a uma consulta
às entidades que estariam em condições de dispensar funcionários para o
recenseamento e elaboraram-se ainda os modelos de cadernetas, selos e
respectivas instruções sobre os procedimentos a concretizar aquando da execução
dos seguros.
As actas do conselho de administração permitem observar os resultados destas
acções. Refira-se, em primeiro lugar, que foram goradas as expectativas dos
promotores do sistema preconizado na lei de 1919, os quais acreditavam numa
rápida capacidade de mobilização do mutualismo livre no sentido de se
transformar no núcleo inicial do movimento de seguros obrigatórios. Que essa
adesão era esperada, demonstra-se com o debate ocorrido no conselho de
administração logo um mês e meio após a sua primeira reunião. Aí se constata o
reduzido número de mutualidades livres que espontaneamente se haviam dirigido
ao Instituto para requerer a sua passagem a associações de seguro obrigatório,
o que levou este conselho a decidir a prorrogação do prazo que a lei
estabelecera para este fim e a optar por proceder a visitas directas às
mutualidades com o objectivo de demonstrar as vantagens da sua transformação em
associações de seguro obrigatório (acta de 16-7-1919). Merece reparo a
convicção do Instituto de que seria possível obter resultados da legislação num
tão curto espaço de tempo e a sua preocupação em fazer avançar o processo de
forma mais célere. Esta atitude voluntariosa foi surtindo alguns frutos,
conforme se constata no relatório de finais de 1920 sobre o seguro na doença.
As mutualidades livres foram mostrando sinais do seu interesse no novo sistema
à medida que o Instituto procedia ao esclarecimento de dúvidas acerca dos
dispositivos legais que enquadravam esta reforma (Boletim de Previdência
Social, n.º 10, Janeiro-Dezembro de 1920, p. 118).
Uma questão que parece ter assumido particular relevo prendia-se com o destino
dos fundos das mutualidades livres que se viessem a integrar ou a converter em
obrigatórias. Dado que a interpretação da legislação suscitava dúvidas, o
conselho de administração adiantou a sua opinião, segundo a qual tais fundos
nunca deveriam reverter para o Estado, sendo restituídos às mutualidades livres
no caso de dissolução das respectivas mutualidades obrigatórias (acta de 5-2-
1920).
A acção do Instituto no sentido de dinamizar o seguro de doença foi
particularmente visível nesta primeira fase da sua actividade. Em Fevereiro de
1920 foi criada uma estrutura mais leve do que o conselho de administração,
composta pelos vogais dos vários tipos de seguros, ficando cada vogal
responsável por uma das zonas em que o país se dividiu no sentido de
incrementar a constituição de comissões locais que dessem início à
implementação do sistema. O resultado deste esforço relativo ao seguro de
doença, tema frequentenas actas da administração11, permitia constatar a
constituição efectiva no final desse ano de 17 mutualidades obrigatórias, das
quais 7 eram antigas mutualidades livres (Pereira, 1999). Estavam ainda em fase
de formação 255 outras associações.
No final de 1920, o balanço feito pelo Instituto era positivo quanto ao
cumprimento das tarefas que fora chamado a desempenhar12. Para além do seguro
de doença, o ISSOPG ocupara-se dos seguros de invalidez, velhice e
sobrevivência, estando em fase de impressão 600 mil cadernetas e 60 milhões de
selos comprovativos das prestações pagas, estimando-se que em Março de 1921
estivesse concluída esta tarefa prévia à execução efectiva dos seguros.
Nos relatórios produzidos sobre a actividade desenvolvida até ao final de 1920
é ainda salientada de forma positiva a intervenção do Instituto ao nível dos
desastres de trabalho. Desde a criação do ISSOPG e até ao termo do referido ano
algumas dezenas de entidades patronais, nas quais se incluíam várias empresas
de grande dimensão, responsáveis por cerca de 50 000 indivíduos, assumiram a
responsabilidade directa dos sinistros. Para além destas empresas, outras
haviam contratado o seguro dos seus trabalhadores com mutualidades e companhias
de seguros, tendo estas últimas emitido 12 758 apólices, ascendendo o valor dos
salários e ordenados seguros a cerca de 50 000 contos. Também os tribunais de
desastres de trabalho mostravam desenvolvimento. Antes da criação do Instituto
existiam apenas 3 tribunais, mas no final de 1920 estavam já 18 em
funcionamento. A concretização dos objectivos visados pela legislação neste
domínio é perceptível através do número crescente de participações de acidentes
13
e de processos entrados em tribunal. Era em Lisboa e no Porto que estes
tribunais registavam maior actividade, sendo evidente o seu incremento após a
legislação de 1919. Durante o ano de 1918 o tribunal de Lisboa havia registado
a entrada de 2310 processos; em 1920 os processos entrados ascendiam a 5631,
número superior ao que se havia registado durante os quatro anos decorridos
entre 1914 e o 1.º semestre de 1919 (4042 processos). No Porto, durante estes
mesmos quatro anos, haviam entrado 1161 processos; apenas entre os meses de
Maio a Dezembro de 1919 registaram-se 5136 entradas.
Outra área de intervenção do ISSOPG era, como sabemos, o desenvolvimento das
bolsas de trabalho. Apesar da criação formal destes organismos até ao final
de 1920 estavam formalmente criadas 36 bolsas , a sua efectiva instalação não
se concretizou devido às dificuldades de obtenção de edifícios e mobiliário.
Sublinhe-se que as despesas inerentes ao funcionamento das bolsas não
constituíam uma prioridade para o ISSOPG, que via nos seguros sociais "a
pedra angular da grande obra do Instituto" (acta de 26-7-1919). Quando foi
proposta uma afectação de despesas para o pessoal dos serviços das bolsas
sociais, o conselho de administração não hesitou em rejeitá-la, argumentando
que "a criação das bolsas é uma experiência que se faz, e, se
corresponderem ao fim que se visou, então se tratará do seu desenvolvimento»
(ibid.).
A acção do Instituto foi relevante numa outra área das suas competências: a
elaboração de estatísticas, quer no domínio do custo de vida, das condições
económicas do operariado, dos valores dos salários, quer no movimento de
cooperativas, mutualidades e seguradoras. A demonstrar a permanente actividade
desta secção do Instituto estão as informações publicadas de forma contínua ao
longo dos vários números do Boletim da Previdência Social.
Por fim, há que sublinhar o trabalho do Instituto no âmbito da assistência
pública e beneficência privada. Durante o ano de 1920 foram criadas quatro
novas instituições de assistência (escolas maternais, profissionais e colónias
agrícolas), sendo também patente a preocupação da direcção do Instituto face às
dificuldades financeiras sentidas pelas instituições de assistência em geral
(actas de 28-6-1919, 5-7-1919, 26-1-1920, 8-7-1920 e 15-7-1920). Num período
fortemente inflacionista, a manutenção dos serviços destas instituições
tornava-se particularmente difícil, pelo que o Instituto diligenciou junto do
governo para a concessão de diversos subsídios.
À medida que avançava o ano de 1921, as actas do conselho de administração
deixavam perceber que se ia ultrapassando a fase inicial de maior preocupação
com a propaganda dos seguros obrigatórios e a montagem do sistema. Depois deste
arranque, em que toda a atenção se tinha voltado para a promoção de uma nova
atitude em relação aos problemas da economia social, segue-se uma fase
intermédia, de cruzeiro, que decorre sensivelmente até meados de 1923. Nas
actas das reuniões do conselho de administração o relevo é assumido por
questões de natureza técnica (com destaque para o acompanhamento das reservas
matemáticas) e processuais (integração institucional, análise de
irregularidades, situação financeira de instituições dependentes, estatutos,
fiscalização de funcionários, subsídios e cobranças). Os seguros obrigatórios
não dominam o discurso, mas permanecem nas preocupações da direcção. Neste
domínio reitera-se a necessidade urgente de finalizar o recenseamento geral
para a aplicação do seguro na invalidez e velhice e discutem-se novos
regulamentos para os seguros em geral (acta de 12-1-1922) e para a lei dos
desastres de trabalho (actas de 3-3-1923, 12-5-1923, 17-5-1923 e 24-5-1923).
Em Outubro de 1923 parece iniciar-se um processo de reflexão interna sobre o
papel do ISSOPG, associado à necessidade de contenção de despesas com pessoal e
consequente remodelação, que se estende a finais de 1925. As actas dão conta,
de forma sistemática, da discussão sobre a fusão ou extinção de serviços do
Instituto e produz-se um novo regulamento que viria a ser aprovado em Setembro
de 1924 (acta de 23-9-1924).
A extinção do Ministério do Trabalho (em finais de 1925) introduz a fase final
da vida do ISSOPG. Do interior do governo da República ouvem-se afirmações
sobre o fracasso da experiência (decreto de 25 de Novembro de 1925). Dentro do
Instituto mantêm-se as rotinas, sobretudo no que se refere ao cálculo de
reservas matemáticas de seguros, atribuição de subsídios, desastres de
trabalho, regulamentos internos e situações diversas de irregularidades e
incumprimentos processuais. Apesar das reestruturações de pessoal já referidas,
a necessidade de novas reduções orçamentais neste campo era ainda patente no
final da actividade do Instituto, sinal de que a máquina burocrática
inicialmente prevista era demasiado pesada, tendo em conta a capacidade
financeira disponível. O orçamento para 1928-1929 propunha uma redução de
pessoal na ordem dos 40% relativamente a 1919, não entrando em linha de conta
com os agentes recenseadores, dos quais nunca foram contratados mais de 60 dos
600 inicialmente previstos (Boletim da Previdência Social, n.º 19, Janeiro-
Julho de 1928). Mas, se a estrutura administrativa era impossível de manter na
óptica da despesa, a redução de pessoal levantou problemas tais que a direcção
passou a discutir a própria insustentabilidade do ISSOPG daí decorrente (actas
de 16-2-1928, 31-5-1928, 21-6-1928 e 6-9-1928).
Perante este quadro, que descreve as acções levadas a cabo pelo ISSOPG e a sua
evolução ao longo do tempo, importa perceber qual a responsabilidade deste
organismo no proclamado falhanço da experiência republicana em matéria de
seguros obrigatórios. É certo que os seguros obrigatórios não chegaram a ser
concretizados nos termos em que foram idealizados, mas será sempre possível
argumentar que este malogro não foi da total responsabilidade do Instituto, uma
vez que a este cumpria, acima de tudo, fazer a difusão do sistema e organizar a
máquina que o colocaria em actividade. Como podemos verificar pelo que atrás
ficou exposto, as comissões locais para o seguro de doença estavam criadas no
final de 1920 e o trabalho preliminar ao recenseamento indispensável ao seguro
de invalidez e velhice estava igualmente concretizado na mesma data. No âmbito
do seguro de doença, foram as comissões que não avançaram para a obtenção de
personalidade jurídica através da promulgação dos seus estatutos processo
prévio à implementação do sistema e foi o não recrutamento de recenseadores
que impediu o passo seguinte para a prossecução dos seguros de invalidez e
velhice.
Importa, portanto, recolocar a discussão quanto à não concretização dos seguros
obrigatórios noutros termos, retirando o ónus da responsabilidade total ao
organismo criado para montar e supervisionar o sistema. Nesse sentido, é
sobretudo necessário indagar por que razão ocorreu o estrangulamento do
processo nos dois aspectos que a análise anterior fez destacar: a não
promulgação de estatutos das comissões e a inexistência de recrutamento de
recenseadores.
As actas do conselho de administração apontam uma possível resposta para esta
questão. Na verdade, logo no início de 1921, ao constatar que as comissões
criadas para a institucionalização do seguro de doença não tomavam a iniciativa
de elaborar os estatutos cuja aprovação as dotaria de personalidade jurídica
indispensável ao exercício da sua acção, a direcção do ISSOPG decidiu estimular
o processo, "realizando o que a estas competia" e mandando assim
elaborar os processos de organização legal (acta de 17-2-1921). Uma vez mais se
verifica a preocupação dos responsáveis do Instituto em fazer avançar o sistema
e se percebe que o problema residia a jusante das suas competências. A
documentação analisada permite descobrir, por fim, que a razão para a inércia
das comissões instaladoras das mutualidades era de natureza objectiva. Em causa
estava a desactualização dos escalões dos rendimentos que a lei estipulava para
se poder beneficiar do seguro. Na reunião de 12 de Maio, Mariano de Melo Vieira
introduz este assunto, chamando a atenção do conselho para a sua enorme
importância. Face à proposta de estatutos enviada pela comissão instaladora da
mutualidade obrigatória do concelho de Valongo, que incorporava alterações nos
valores atribuídos aos rendimentos dos sócios face ao disposto na lei, o
conselho de administração era colocado perante um novo problema. Os estatutos
não podiam ser aprovados porque não correspondiam ao definido legalmente, mas
as associações não tinham qualquer interesse em activar um modelo que
mantivesse os escalões previstos na lei de 1919. Por isso, o conselho reconhece
que "a mutualidade obrigatória não tem qualquer vantagem para o
operário", que, em virtude da inflação verificada, recebia mais do que os
900 escudos de rendimento anual que a lei de 1919 decretava ser o montante
máximo para usufruir do seguro de doença (acta de 12-5-1921).
Quanto à ausência de recenseadores, a questão era bem simples: não havia
capacidade financeira para a sua contratação. Tema por diversas abordado no
conselho de administração, a falta de recenseadores é inequivocamente designada
como "o principal entrave à realização do sistema" (acta de 12-1-
1922).
Esta questão suscita o tema da capacidade financeira do Instituto, das suas
receitas e do papel que o Estado reservava para si próprio em termos do
financiamento da sua política social. A concepção do sistema passava por
excluir o Estado de responsabilidade financeira directa na atribuição das
pensões. Como afirmava Francisco Grilo no final da década de 20, a legislação
republicana de 1919 foi "feita tendo em atenção que sendo o Estado pobre
não poderia ter encargos" e, por isso, não participaria na constituição
dos fundos de pensões, em claro contraste com as demais experiências europeias
em que o Estado contribuía, em maior ou menor escala, tal como faziam os
patrões e operários (Boletim da Previdência Social, n.º 19, Janeiro-Julho de
1928, p. 9). Como vimos, o próprio funcionamento do ISSOPG não dependia do
orçamento de Estado, estando prevista a obtenção de receitas próprias
provenientes das taxas a extrair aos bancos e seguradoras. Até que ponto foi
veemente a reacção destas instituições e, por conseguinte, limitada a
capacidade financeira do Instituto, é assunto que importa explorar. Também aqui
a leitura das actas do conselho de administração oferece uma primeira
aproximação nesse sentido14.
Os sinais da preocupação quanto ao pagamento por parte dos bancos e companhias
de seguro são evidentes em vários momentos (actas de 23-8-1919, 12-7-1919, 4-3-
1920, 12-4-1920, 22-7-1920 e 2-12-1920). Na verdade, dois meses após a sua
entrada em funções, a direcção do ISSOPG constatava as reacções negativas dos
bancos, que requeriam a isenção do pagamento da taxa de 1,5% a que o Instituto
tinha legalmente direito nos termos da sua constituição estatutária (acta de
12-7-1919). Francisco Grilo referia-se a esta oposição como uma campanha com
fins políticos, visando resistir a medidas de protecção e auxílio às classes
proletárias, oposição tanto mais criticável quanto provinha de instituições
cujos lucros, obtidos sem risco, resultavam do esforço de milhões de indivíduos
(acta de 12-7-1919). Oito meses mais tarde, na reunião do conselho de
administração na qual esteve presente o ministro do Trabalho, deu este conta da
proposta que havia endereçado ao parlamento "no sentido de promover a
nacionalização dos seguros [ ] visando aumentar o rendimento do Instituto"
e indagava acerca da evolução da contribuição dos bancos imposta pela
legislação (acta de 4-3-1920). No mês seguinte, Francisco Grilo informava os
restantes vogais de que o pagamento dos bancos "seguia o seu curso",
apesar de se antever que só em Maio estivesse este processo completamente
organizado. Mas previa que alguns bancos se recusassem ao pagamento, pois
propôs na mesma data o recurso à coacção legal através do envio das respectivas
execuções fiscais a tribunal relativamente aos bancos faltosos (acta de 12-4-
1920). Em Maio havia expectativas positivas neste domínio. Consideravam-se
ultrapassados os obstáculos financeiros, estando acordada a contribuição das
companhias de seguros em cerca de 300 a 400 contos e das instituições bancárias
em 100 contos (acta de 13-5-1920).
Quando realizou o seu relatório de actividades no final de 1920, o Instituto
não deixou transparecer indícios deste tipo de problemas e a situação
financeira era avaliada de forma positiva. Aí se declara que uma parte
significativa da receita era constituída pelos recursos privativos do
Instituto, os quais em grande parte permitiam custear os encargos próprios e
dotar ainda vários serviços de assistência. Tal situação fazia por isso prever
"que a manterem-se as fontes de receita poderia vir o Estado a ficar
definitivamente aliviado de todo o custeio do Instituto do S. S. O."
(Boletim da Previdência Social, n.º 9, Janeiro-Dezembro de 1920). O total da
receita era então de 6 710 630$85, registando-se um saldo de 2 355 047$81. O
conselho fiscal, mais cauteloso, notava, porém, o peso demasiado avultado das
despesas com pessoal relativamente aos encargos totais do Instituto e sugeria a
utilidade na remodelação de serviços a fim de promover a contracção dessa
despesa (Boletim da Previdência Social,n.ºs 12 e 13, Outubro de 1921 a Junho de
1922). O excesso de despesas com pessoal viria, de facto, a revelar-se um
assunto crítico na vida do Instituto. O quadro de pessoal inicial, que previa
310 funcionários e 600 recenseadores, sofreu diversas reduções, a primeira das
quais com reflexos logo no ano de 1923 (Decreto n.º 8 416, de 9 de Outubro de
1922), que reduziu as 11 direcções de serviço e 27 secções iniciais a 6
direcções de serviço e 15 secções. Esta diminuição de pessoal não foi
suficiente, pois entre Janeiro e Abril de 1924 as actas dão conta da discussão
sistemática sobre o projecto de remodelação interna do ISSOPG, designadamente
no que se refere à fusão ou extinção de serviços.
A documentação compulsada reflecte, pois, os limites impostos pela necessidade
de contracção das despesas. Em 1919 o Estado procurou ser suficientemente
previdente para gizar um sistema que não lhe exigisse recursos excessivos. A
sua missão, claramente inserida na óptica liberal dominante, passava pelo
enquadramento legal e criação de uma estrutura de organização e supervisão do
sistema, para a qual estabelecia, prudentemente, um esquema de obtenção de
receitas próprias. Não terá sido bem calculada a dimensão das despesas
inerentes ao funcionamento desse organismo, para as quais as receitas se
manifestaram exíguas. Por isso, em Janeiro de 1922 o ministro do Trabalho
declarava no conselho de administração do ISSOPG que este realizaria "uma
obra elevada quando pudesse receber todas as suas receitas" e um dos
vogais, evocando a experiência de outros países nos quais as instituições de
seguros sociais eram dotadas de verbas elevadas, exortava Portugal a dotar-se
dos instrumentos financeiros necessários ao desenvolvimento de uma efectiva
política social (acta de 12-1-1922).
De acordo com as fontes de informação em análise, a oposição do mutualismo
livre ao modelo dos seguros sociais da I República não surge como um obstáculo
decisivo para a sua concretização. Nas actas do conselho de administração há
sinais de alguma reacção inicial das mutualidades, mas, a crer nos depoimentos
expressos na documentação, essa rejeição ter-se-ia esbatido posteriormente.
Como se regista numa das actas de Janeiro de 1922, "no princípio ocorreu
relutância das mutualidades livres em aceitarem o sistema de mutualidades
obrigatórias, mas agora apenas as pouco escrupulosas dele discordam" (acta
de 12-1-1922). Não encontramos, assim, indícios de uma rejeição veemente por
parte do mutualismo livre, mas sobretudo de desinteresse e apatia. Ainda na
fase inicial da actividade do ISSOPG, dedicada à propaganda e divulgação dos
seguros sociais, um dos vogais expressava o seu lamento quanto aos resultados
desta acção: "é dificílimo fazer compreender aos operários a necessidade
de ser previdente" (acta de 22-7-1920).
Em síntese, a leitura das actas do conselho de administração não permite
atribuir uma importância decisiva às reacções negativas das mutualidades
livres, do sector operário e do corpo médico
15
, enquanto obstáculos com um peso decisivo na concretização do sistema. O
destaque explicativo deve ser sobretudo atribuído à inércia dos mais directos
beneficiários, associada também ao esvaziamento de sentido da legislação
perante o contexto inflacionista que desactualizou os escalões salariais
fixados para delimitar os que podiam usufruir dos seguros. Denota-se ainda uma
grande dificuldade em organizar de forma eficiente a vida interna do Instituto,
surgindo a imagem de um organismo enredado em problemas de pessoal e com uma
deficiente coordenação de serviços. O elevado absentismo dos funcionários, as
reclamações e quezílias frequentes, acabaram por ocupar uma parte demasiado
significativa dos esforços da estrutura de topo do ISSOPG. Todavia, esse desvio
de atenção para problemas de funcionamento interno não equivale a dizer que
tivesse existido falta de empenho dos dirigentes deste organismo na promoção do
modelo de seguros previsto na lei.
Este diagnóstico da actividade do Instituto não se afasta do balanço realizado
por Francisco Grilo no final da década de 20, quando já se fazia sentir a
alteração do ambiente político que prenunciava o advento do Estado Novo. Em
1928 e 1929 Francisco Grilo fez publicar um conjunto de artigos que traduzem um
último fôlego na defesa da "obra glorificadora da República", nos
quais insiste na sua "fé inabalável" nos seguros sociais obrigatórios
e responde aos seus críticos reformulando a legislação de 1919
16
.
A sua análise de todo o processo não omite as dificuldades encontradas, que
claramente identifica: a inflação que pôs em causa o limite salarial fixado na
legislação inicial, a indiferença e inércia dos possíveis beneficiários, alguns
aspectos processuais da lei que tornavam a sua execução complexa. Mas a
lentidão na execução efectiva de uma legislação social desta envergadura,
limitação que outros países, aliás, partilharam
17
, não significa ausência ou reduzida importância na actividade do Instituto. A
relevância dos serviços prestados, abrangendo "um grande capítulo na
economia social", incidiu no apoio à assistência privada, aos hospitais, e
à luta contra a tuberculose e a sífilis; na organização de estudos sobre
convénios internacionais e questões de trabalho, como os horários de trabalho,
seguro de desemprego, regime cooperativo e caixas económicas, estudos que
apoiaram a legislação laboral neste período, em particular a fixação das oito
horas de trabalho e a protecção de crianças e mulheres; a elaboração de
estatísticas sobre o custo de vida, salários, acidentes de trabalho e movimento
cooperativo; o apoio aos seguros de acidentes de trabalho. O crescimento da
responsabilidade patronal no âmbito dos desastres de trabalho, fruto da
legislação de 1919, é um aspecto sempre sublinhado: dez anos após esta
iniciativa, os salários e ordenados seguros ascendiam a mais de 500 000 contos
e as indemnizações e pensões pagas desde Junho de 1919 a Dezembro de 1928
atingiam cerca de 18 500 contos e 3000 contos, respectivamente.
Face a alguns problemas de aplicação da legislação de 1919, Francisco Grilo
propõe um conjunto de alterações, mantendo-se o mesmo espírito e o papel
atribuído ao mutualismo voluntário. A resenha que então elabora acerca da
dimensão do movimento mutualista e do necessário caminho a desenvolver nesta
área não regista significativas diferenças face ao quadro fornecido dez anos
antes. No início da década de 30 estavam registados nas associações de socorros
mútuos de doença pouco mais de 500 000 indivíduos, distribuídos por menos de
600 associações em todo o país, donde a necessidade de fortalecimento desta
forma de associativismo, que, embora prestando importantes serviços, não
permitia a solução integral para o problema da previdência18. Daí o papel do
Estado e a necessidade de tornar obrigatória a inscrição dos segurados nas
associações já existentes e organizar ainda 200 novas associações para cobrir
os cerca de 1 500 000 indivíduos ainda não integrados. A fórmula preconizada
para a obrigatoriedade insistia na criação de comissões municipais de
previdência e na formação do Fundo de Previdência Social.
Também no âmbito do seguro de invalidez e velhice, as alterações propostas não
ferem os princípios anteriores: apenas se actualiza o limite anual de salários,
que passaria para 9000$00, muda-se o intervalo de idade dos beneficiários, que
passaria a ser entre os 15 e os 65 anos, e reformula-se a contribuição, que
passaria a corresponder a 2,5% do salário, a pagar pela entidade patronal,
sendo igual a percentagem a pagar pelo segurado.
No quadro da nova proposta, a manutenção do Instituto é claramente defendida
por Francisco Grilo. Em seu entender, a existência de um organismo único de
coordenação do sistema traduz-se em "economia e vantagens", que
contrastam com a dispersão de serviços que noutros países existe e cuja
experiência se desaconselha. Compreende-se a necessidade de contenção das
despesas com pessoal, pelo que se propõe uma reorganização do quadro, que, face
ao proposto em 1919, reflecte uma redução de 40%.
Ou seja, para Francisco Grilo, todos os obstáculos podiam ser ultrapassados.
Bastava a reorganização da legislação, tarefa que apresentava concluída. O
importante era levar à prática os seguros sociais obrigatórios,
"acompanhando assim a evolução social que se está desenhando em todos os
países para dar às classes trabalhadoras uma situação de bem-estar a que têm
direito os que consagram a sua energia física e a sua actividade durante a
existência à produção da riqueza". A perspectiva que presidia a esta obra
enquadrava-se, porém, dentro do espírito sempre reiterado pelos promotores da
legislação republicana: "um espírito conciliador, baseado na cooperação
activa do Capital e do Trabalho". Em termos financeiros, o Estado era
poupado a participar, manifestando-se assim o que Grilo designa como a
"característica original" do sistema português. Ora, este articulado
de ideias revela bem a ausência de uma diferença radical em termos doutrinais
face às propostas do Estado Novo, não obstante as fortes críticas que os
doutrinadores da primeira fase do corporativismo moveram à política social da I
República. Tais críticas eram inevitáveis, dado o novo ambiente político, que
deixava de ser propício ao reconhecimento de eventuais méritos que pudessem ser
atribuídos ao sistema de seguros sociais do período republicano.
A visão construída pelo corporativismo
Os ideólogos corporativistas construíram um modelo de organização do sistema de
previdência social a partir da convicção, real ou forjada, de que tudo tinha de
ser feito de raiz devido ao fracasso do sistema de seguros sociais obrigatórios
instituídos pela I República em 1919.
As palavras de Pedro Teotónio Pereira, um dos grandes arquitectos do edifício
corporativo, são, a este propósito, bem elucidativas. Depois de verberar, em
abstracto, os políticos que buscam efeito e sucesso fácil de reformas efémeras
e inexequíveis, afirma:
Esses processos, seguiram-nos entre nós os velhos políticos, deixando
muitas dezenas de páginas do Diário do Governo cobertas de legislação
de previdência social que nunca foi além do papel. É caso bem
frisante o que aconteceu com a de 1919.
De facto, em matéria de seguros sociais nada nos falta quanto a
textos legislativos. Temos postos em decretos, para valer como leis,
o seguro social obrigatório na doença, o seguro social na invalidez e
na velhice, o seguro social contra desastres no trabalho.
De tudo isto e de muita coisa que correlativamente se publicou, só
floriu no campo dos factos a legislação de reparação às vítimas de
desastres no trabalho, que apenas no nome se pode confundir com um
seguro social obrigatório [Pereira, 1937 [1933], pp. 46-47].
A sua acusação vai no sentido de não terem sido feitos estudos técnicos de
forma rigorosa, de existir uma forte contradição entre a orientação teórica
contida na lei e os seus efeitos práticos reais, de apenas abranger cerca de
20% do universo previsto. Por isso, congratula-se com o facto de a situação
económica, fortemente marcada pela inflação e desvalorização da moeda, ter
criado alguma contenção dos agentes privados e falta de entusiasmo dos poderes
públicos para levarem por diante as reformas programadas na lei.
Nesse mesmo ano de 1933, outro testemunho acentua que não bastava ter boas
intenções para se ter um bom sistema e aponta como principais factores do
malogro da concretização efectiva da legislação de 1919 (com excepção dos
seguros de acidentes de trabalho) os seguintes aspectos: falta de adesão das
mutualidades livres e apagamento gradual da chama do mutualismo português;
desinteresse e oposição do patronato no cumprimento das obrigações de
quotização previstas na lei; resistências do operariado e suas estruturas
associativas e sindicais em aceitarem as formalidades burocráticas e cadernetas
de registo impressas pelo ISSOPG.
A acusação de ineficiência e insucesso manter-se-ia em diversos textos de
divulgação e propaganda do regime de previdência social do Estado Novo,
considerando-se que os seguros sociais obrigatórios "não constituíam um
sistema de soluções, ou lhes faltava a condição essencial da viabilidade [...]
condenados pela excessiva uniformidade das fórmulas, pelo monstruoso volume dos
encargos e pelo enorme aparato da sua administração" (Previdência Social,
1945, p. 3).
Outras vezes surge também a ideia de excesso de ambição de um desenho legal que
ia muito além daquilo que países com mais longa tradição mutualista e de
organização de seguros obrigatórios tinham logrado alcançar, o que tornava
inevitável o fracasso perante expectativas tão elevadas (Fernandes, 1947, pp.
16-25).
Note-se que as críticas não incidem sobre a diferença essencial de concepção
dos sistemas de seguros sociais ou de previdência social em presença. Com
efeito, para os defensores do modelo corporativo, que não atribuíam ao Estado,
no plano formal, responsabilidade directa pelo funcionamento e gestão do
sistema de previdência, não é tanto esta visão de enquadramento doutrinal do
Estado que é invocada como motivo de discórdia. Até porque, para muitos dos
defensores do corporativismo, a crítica ao sistema de seguros obrigatórios não
implicava negar o reconhecimento da necessidade de intervenção supletiva do
Estado, cujo papel na fixação de normas e princípios reguladores das antigas
associações de socorros mútuos, ou até na atribuição de subvenções ao seu
funcionamento, não é de forma alguma questionado. Com efeito, parece manter-se
algum consenso relativamente à aceitação, quer em Portugal, quer no contexto
internacional, da necessidade de um sistema de seguros obrigatórios que
envolvesse os diversos actores sociais nele interessados, incluindo,
naturalmente, o próprio Estado.
Mesmo que pudessem existir pretextos para um debate doutrinal mais sério, a
crítica incide sobretudo na ingenuidade, na generosidade excessiva e na falta
de sentido prático dos que conceberam um sistema sem cuidar da sua viabilidade.
Assim, em tom ainda mais peremptório, e com o mesmo propósito propagandístico,
dizia-se:
Autêntica improvisação, animados da mais generosa mas da mais ingénua
das intenções, os decretos de 1919 organizavam o seguro para todos os
trabalhadores, sem distinção de profissão, de sexo ou de idade.
Equivaliam a simples declarações de princípios que se destinavam,
afinal, a não passar do papel. Porque se não deu conta da verdadeira
magnitude do problema, das suas dificuldades técnicas, do volume dos
encargos a assumir, apenas se praticou um acto de boa vontade que não
viria a ter qualquer espécie de projecção na ordem das coisas
práticas [ABC do Seguro Social, 1949, p. 51].
Catorze anos mais tarde, teria de se partir de zero, do zero absoluto, para se
construir um sistema de seguros sociais em correspondência com as realidades da
nossa existência colectiva e em harmonia com os nossos recursos, um sistema
capaz de viver e durar, apto a garantir efectivamente a segurança dos
trabalhadores portugueses.
A antipatia em relação ao clima político da I República acabou por se impor
como um dos principais factores da visão negativa construída pelos ideólogos
corporativistas. Por isso diziam:
Após um período estéril, em que o tempo foi pouco para dissídios,
pugnas parlamentares, quedas de governos e resoluções à mão armada,
surgiram os célebres decretos de 10 de Maio de 1919, nos quais se
estabeleciam as linhas mestras de uma estrutura de seguros sociais,
construção meramente teórica, que não foi possível sequer ensaiar
[Figueira, 1949, p. 55].
Todavia, o libelo de acusação, sempre centrado na questão da ineficácia das
medidas práticas, acaba por perder algum sentido quando expressamente se admite
que, afinal, a organização corporativa ressuscitou das cinzas o sistema que a I
República implantara:
Aquilo que ficara nos Diários do Governo, como paisagem triste de um
período de verdadeira guerra civil, nos espíritos e na administração
pública, ressuscitou-o sob inspiração nova, em 1933, o Estatuto do
Trabalho Nacional, diploma basilar da Revolução Corporativa
Portuguesa [Figueira, ibid., p. 55].
Esta sugestão de continuidade possível entre a I República e o Estado Novo não
ignora as diferentes condições políticas de exercício de actividade das
instituições directamente envolvidas no desenvolvimento de sistemas de
previdência social. Como já ficou expresso em anteriores reflexões sobre o
tema, a passagem do sistema da I República para o modelo corporativo, ao
implicar uma ruptura com a concepção democrática dos problemas sociais e, por
conseguinte, com o desenvolvimento dos direitos sociais, representa uma cisão
não negligenciável (Pereira, 1999). No entanto, o destaque que aqui se pretende
introduzir quanto ao reconhecimento que os ideólogos corporativistas faziam
acerca do papel supletivo do Estado nisso aproximando-se do discurso
republicano, assim como do discurso solidarista protagonizado por Ávila Lima
traz a vantagem de explicar que grande parte da retórica corporativa contra os
seguros sociais obrigatórios assentava em razões exteriores ao objecto da
aparente discórdia. Assim sendo, o Estado Novo não partiu do zero para a
construção do seu sistema de previdência, mas prosseguiu em novos moldes uma
experiência da qual não podia fazer tábua rasa.
Ao decretarem a obrigatoriedade do seguro social, os políticos republicanos não
pretendiam que o Estado pudesse assumir o controlo efectivo de todo o sistema,
sobretudo no que se refere à garantia do seu financiamento. Também nesse
aspecto convergiram os doutrinadores sociais da primeira fase do Estado Novo,
logo após a aprovação do Estatuto do Trabalho Nacional. Diferenças poderiam
existir quanto à avaliação do alcance da função reguladora e da intensidade dos
mecanismos burocráticos estabelecidos pela legislação de 1919. No entanto,
aqueles que no início da década de 30 acusaram os legisladores republicanos de
inoperacionalidade e ineficácia, tal a ânsia controladora que matava o seguro
social à nascença, também viriam mais tarde a ser criticados pelos seus
continuadores (bem dentro da mesma família política) pela ingenuidade com que
ambicionaram um sistema de previdência social espontaneamente surgido da
dinâmica das organizações corporativas, sem se acautelar devidamente a sua
coordenação.
Conclusão
As dificuldades observadas pela I República na concretização do sistema de
seguros sociais obrigatórios prestaram-se à crítica que o Estado Novo moveu a
esta iniciativa. O corporativismo não teve de artificialmente forjar o quadro
que sintetizava o revés da experiência. Com efeito, o reconhecimento do
fracasso partia da própria avaliação daqueles que haviam promovido a legislação
republicana, conforme ficou bem ilustrado pelo testemunho de Francisco Grilo.
Por isso se procedia a um balanço crítico e se sugeriam alterações para superar
as dificuldades técnicas de execução, sem que se renegassem os princípios
orientadores da necessária e previdente intervenção do Estado.
As acusações do corporativismo traduziam, por isso, objectivos de natureza
política, mais do que distinções em termos da concepção do sistema.
Também para os corporativistas era necessária uma acção impulsionadora do
Estado na promoção da previdência social. Tal acção visava minorar as
dificuldades económicas de largos sectores da população e, simultaneamente,
manter a paz social através da aliança entre o trabalho e o capital. Ao Estado
cumpria a organização e promoção do sistema de previdência, cabendo aos
interessados os encargos financeiros para a obtenção das subvenções. Ora, estas
são perspectivas que não deixam transparecer diferenças substanciais nos
princípios fundadores propalados pelos dois regimes políticos.
É ainda importante constatar que uma das dificuldades de concretização do
sistema, particularmente sentida pela I República, irá ser precisamente
idêntica à verificada no momento inicial de criação do quadro de previdência
social do Estado Novo. A crítica à ingenuidade republicana, que não acautelara
devidamente a capacidade de mobilização dos interessados, voltará a ser ouvida,
desta feita no interior do corporativismo, quando em meados da década de 40 se
constata a fraqueza das iniciativas de 1933
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. A crença de que espontaneamente a população carenciada se mobilizaria em
torno das propostas do Estado para garantir a sua segurança social era tão
infundada na década de 20 quanto o seria dez anos mais tarde.
Para além deste evidente obstáculo à concretização dos objectivos da I
República em matéria de política social, sobressai a dificuldade associada à
construção da máquina burocrática e administrativa que a execução do seguro
social exigia. A comparação internacional destaca precisamente este aspecto.
Portugal não desconhece as experiências estrangeiras que marcaram as primeiras
décadas do século xx, durante as quais se assistiu à transferência das
preocupações sociais para a acção política e à mobilização das elites
governativas para a introdução de reformas neste campo. Parte das motivações
subjacentes a este movimento era também partilhada noutros ambientes externos.
A harmonia social, a prevenção da agitação política e o aumento do bem-estar
das classes trabalhadoras inspiraram uma nova geração de políticos, como Lloyd
George e Churchill em Inglaterra, cujo reconhecimento era expresso pelos
ideólogos portugueses. No entanto, se a intervenção estatal na vida colectiva
era teoricamente aceite, na prática o investimento financeiro estava ausente da
proposta nacional. A par desta distinção crucial, as dificuldades de instalar
no terreno o sistema arquitectado foram particularmente visíveis no caso
português. A avaliação global da intervenção republicana neste domínio faz
destacar, assim, os obstáculos e bloqueios institucionais internos como
explicação para o reduzido impacto verificado, a par dos problemas financeiros
inerentes à conjuntura inflacionista após a Primeira Guerra Mundial.
Esta avaliação não ignora que outros aspectos merecem ser considerados para uma
análise mais aprofundada desta experiência. O confronto entre as diferentes
perspectivas políticas e ideológicas em combate neste período interferiu
certamente no resultado do projecto social que a lei de 1919 incorporou. Os
ecos da desconfiança com que muitos sectores olhavam para a acção do ISSOPG
chegavam à sua direcção e a pesquisa destas reacções trará, sem dúvida, novas
visões sobre este tema. Todavia, a análise levada a cabo neste artigo permite
perceber que por parte do organismo responsável pela montagem dos seguros
obrigatórios existia a máxima vontade em fazer avançar o processo e em
colaborar com o mutualismo livre, cuja experiência anterior foi considerada
crucial para o arranque do modelo republicano. A relação entre o movimento
mutualista livre e os promotores dos seguros obrigatórios necessita de um outro
olhar que se focalize na posição dos primeiros, pois na estrutura directiva de
topo do ISSOPG não se manifestam sinais de hostilidade recíproca. Por outro
lado, ficou demonstrado que na construção do modelo republicano nunca esteve
presente uma opção por um excessivo protagonismo do Estado, como pretendiam
fazer crer os ideólogos do corporativismo.
A criação dos seguros sociais obrigatórios na I República constitui, assim, uma
experiência histórica da maior importância para se compreender não apenas o
alcance deste instrumento de política social, mas também os constrangimentos
inerentes ao seu funcionamento. A atitude vigilante e a acção previdente do
Estado republicano em matéria de política social, por muito voluntariosas e
bem-intencionadas que possam ter sido, necessitavam de condições económicas,
ambiente político e moldura institucional mais adequados à concretização bem
sucedida dos seus propósitos.
Fontes e bibliografia
Fontes
ANTT,Livros de Actas do Conselho de Administração do Instituto de Seguros
Sociais Obrigatórios e Previdência Geral.
Boletim da Previdência Social(1919-1930).