Entre os deveres de justiça doméstica e global: uma questão de prioridade
Prólogo
Sucintamente, começo por lembrar as raízes estóicas e kantianas da ideia de
cidadão do mundo e, na sua esteira, por dilucidar as teses nela implícitas.
Este ponto de partida é tanto mais relevante quanto a proposta de Pogge sobre a
justiça global informa a concepção clássica de comunidade humana e a concepção
kantiana de sujeição de todas as crenças, relações e práticas ao teste de
interacção voluntária e razão imparcial.
O cosmopolitismo surgiu inicialmente vinculado à negação de filiação local, à
polis, em nome da filiação universal à razão humana. Mas foi essencialmente no
sentido positivo, difundido pelo estoicismo, e não na concepção cínica, que a
ideia de cidadão do mundo veio a ser retomada por Kant e apreendida na
contemporaneidade; dado, neste sentido, permitir configurar os domínios social
e político a partir da igualdade e sem olvidar a diferença - união que confere
um carácter paradoxal à ideia de cidadão do mundo. Imbuídos de uma concepção
ética que confere valor à vida de todo e qualquer ser humano, não obstante o
seu género, a sua classe social, a sua nacionalidade, etc - ideia-chave do
reconhecimento dos deveres de humanidade - os estóicos concederam ao cosmos a
centralidade outrora atribuída à polisno horizonte político. O cosmopolitismo
estóico revela-se na sua metáfora dos círculos concêntricos: cada pessoa
encontra-se no centro de uma série de círculos concêntricos de associação e
responsabilidade, que se dilatam do eu à família e amigos, à cidade e nação e,
por último, à humanidade[1] (veja-se Simmons, 1998: 181).
Apelando à metáfora estóica dos círculos concêntricos[2], Kant apreendeu a
ideia de "cidadão do mundo" - ilustrada pelo termo Weltbürger -
como igualdade moral. Com ele a concepção de cidadão do mundo ganhou corpo,
pelo enlace à inter-subjectividade ilustrada na ideia de uso público da razão,
e o direito cosmopolita foi reconhecido como complemento do direito civil e
político e do direito das gentes (Kant, 1795/6, 140). Ao limitar o direito
cosmopolita [ao] direito de um estrangeiro a não ser tratado com hospitalidade
em virtude da sua vinda ao território de outro (Idem: 137), o cosmopolitismo
kantiano fica muito aquém das filosofias contemporâneas dos direitos humanos;
conquanto ofereça em grande medida os seus fundamentos através da ideia de que
a nossa obrigação moral para com os outros assenta na humanidade e não na
pertença a uma determinada comunidade, cultura ou nação. Por outro lado, urge
lembrar que o cosmopolitismo kantiano não se cinge à ideia de hospitalidade.
Kant refere-se ao cosmopolitismo num sentido mais amplo, como aspiração de
criar uma sociedade de indivíduos independente dos Estados (Archibugi, 1995:
430). No encalço da ideia de uma história universal sob propósito cosmopolita,
reconhece um estado de cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão
todas as disposições originais do género humano" (Kant, 1874: 35).
A máxima cada pessoa deve ser tida como igual na esfera moral da humanidade é
hoje assegurada e fomentada por princípios que estabelecem a estrutura moral
cosmopolita - como os do igual valor e dignidade, da agência activa (ou
autodeterminação) e da responsabilidade e compromisso pessoal; por princípios
que justificam a actividade individual - como os do consentimento, da
deliberação sobre matérias públicas e da inclusão e subsidiariedade; e por
princípios que estruturam a avaliação da prioridade de necessidade e
conservação de recursos - como da revogação de danos (princípio de justiça
social) e da sustentabilidade (veja-se Held, 2005: 12-16). Retenho-me aqui,
especialmente, no princípio que constitui o axioma de todas as perspectivas
cosmopolitas, o princípio do individualismo igualitário ou do igual valor - à
partida, trata-se de respeitar a dignidade e a escolha de todo e qualquer ser
humano, sem negar a sua diversidade cultural e diferença.
O ideal de cidadão do mundo incorpora duas teses centrais ao cosmopolitismo:
a tese da identidade e a tese da responsabilidade. Como tese da identidade, o
cosmopolitismo enuncia que cada um de nós é uma pessoa marcada ou influenciada
por uma variedade de culturas; como tese da responsabilidade, guia o indivíduo
quanto às suas obrigações locais e às suas obrigações para com todos aqueles,
que conquanto lhe sejam absolutamente estranhos e distantes, se vêm afectados
pelas suas acções. A primeira tese é enfatizada pelo cosmopolitismo sobre a
cultura e a identidade social individual, a segunda pelo cosmopolitismo sobre a
justiça - dois dos muitos e variados filões do cosmopolitismo moral
contemporâneo, que não se excluem mutuamente (veja-se Scheffler, 1999).
O cosmopolitismo sobre a cultura sustenta a ideia de fluidez da identidade
individual; ou seja, reconhece a capacidade das pessoas para forjarem novas
identidades, pela recorrência a diferentes fontes culturais, e o seu
consequente florescimento. Logo, opõe-se à ideia de identidade individual
decorrente da filiação a um determinado grupo cultural, circunscrito e estável,
advogada por algumas formas de nacionalismo, multiculturalismo, comunitarismo e
liberalismo. A ambiguidade inerente à ideia de cidadão do mundo perpassa o
cosmopolitismo sobre a cultura sob a forma do seguinte dilema: reivindica-se a
desnecessidade dos indivíduos se situarem no seio de uma tradição cultural
singular em vista do seu florescimento ou afirma-se que as pessoas não se podem
desenvolver dessa forma. A sustentar o segundo termo da alternativa, a via
extrema nega que a adesão a valores e tradições de uma comunidade particular
constitua um rumo viável na contemporaneidade; diferentemente, em apoio do
primeiro termo, a via moderada considera que, conquanto a prosperidade
individual não implique necessariamente a pertença a uma cultura, as pessoas
podem-se manter no contexto de uma determinada cultura particular.
Por sua vez, o cosmopolitismo sobre a justiça concerne ao alcance da justiça;
alude aos deveres de justiça independentemente das culturas de cidadania e de
autodeterminação, em demanda da igualdade global - sucinta e genericamente,
defende que a distribuição dos bens materiais e recursos entre os indivíduos
deve ser decidida independentemente das fronteiras nacionais no seio das quais
se encontram. Opõe-se, deste modo, a toda e qualquer teoria que advogue que os
princípios de justiça distributiva se aplicam primeiramente, ou senão mesmo
exclusivamente, às sociedades domésticas - esta ideia de exclusividade é
veiculada por Rawls em The Law of Peoples (1999), defraudando as expectativas
dos defensores do princípio da diferença global, como Beitz e Pogge, entre
outros. Na concepção rawlsiana as obrigações da justiça de um indivíduo para
com um outro substanciam deveres de concidadania e não deveres para com os
membros de outras sociedades domésticas. Isto não significa que não tenham
obrigações morais para com eles - na Lei dos Povos Rawls assinala a obrigação
cosmopolita de se respeitar os direitos humanos (Rawls, 1999: 37).
O cosmopolitismo sobre a justiça coloca-se, assim, nos antípodas da teoria
política que divide o trabalho moral entre os níveis doméstico e internacional,
atribuindo privilégio moral à sociedade doméstica - conferindo a esta a
responsabilidade primeira pelo bem-estar dos seus cidadãos e à sociedade
internacional a responsabilidade pela manutenção das condições de fundo sobre
as quais as sociedades domésticas se desenvolvem e florescem (veja-se Rawls,
1999). Descendente da via da moralidade dos Estados, esta teoria substancia
um liberalismo social, e não cosmopolita, que perde de vista factos
determinantes da justiça internacional coeva - como são os da desigualdade e a
pobreza globais; da interdependência económica cada vez mais complexa; da
articulação entre os regimes e as instituições internacionais; e do
desenvolvimento da sociedade civil internacional (veja-se Beitz, 1979 e 1999).
A obscuridade inerente à ideia de cidadão do mundo também se faz sentir no
cosmopolitismo sobre a justiça; sob a forma de confronto com a dificuldade de
saber se existe algo que os membros de uma sociedade doméstica particular devam
uns aos outros que não devam a estranhos. Ou seja, coloca sob suspeita a
existência de normas cuja aplicação se restrinja aos indivíduos de uma
determinada sociedade doméstica. No âmbito da força dos princípios requeridos
pela justiça cosmopolita, a filosofia cosmopolita contemporânea assume duas
posições amplas: a espessa (thick) ou forte (strong) e a fina (thin) ou fraca
(weak) (veja-se Beitz, 1999; Miller 2000; e Held, 2005). A primeira considera
que os princípios de justiça distributiva locais são igualmente globais e que,
consequentemente, não temos o direito de usar a nacionalidade como pretexto de
comportamentos discriminatórios. Diferentemente, para um defensor do
cosmopolitismo fraco existem algumas obrigações extra-nacionais que têm algum
peso moral. Mas o debate filosófico cosmopolita não cobre apenas os seus
requerimentos normativos, estendendo-se à concepção moral desses requerimentos
(veja-se Tan, 2004: 12), à discussão entre as vias moderada e extrema - como
previamente anunciei relativamente ao cosmopolitismo sobre a cultura e a
identidade social individual.
O cosmopolitismo moral moderado, como assinalado por Scheffler (1999), assume a
existência de obrigações especiais que não são moralmente justificadas em
termos cosmopolitas - ser cidadão do mundo significa, neste sentido, que para
além das suas relações pessoais e filiações a grupos particulares, o indivíduo
mantém uma relação ética com outros seres humanos em geral. Diferentemente, uma
via reducionista dos cuidados e obrigações especiais, como a via extrema do
cosmopolitismo moral, considera que as responsabilidades especiais são
justificáveis só e apenas à luz de princípios e fins cosmopolitas. O que se
torna visível, neste debate, é a dificuldade em se articular o compromisso com
a igualdade - a ideia de que todas as pessoas têm um valor igual - e o
reconhecimento de responsabilidades especiais - estas pressupõem a anuência de
que algumas pessoas têm mais valor que outras. Consequentemente, no âmbito da
justiça questiona-se a prioridade do dever de ajudar alguém pelo simples facto
de pertencer a uma determinada sociedade doméstica e não a outra.
A tese da prioridade de dever de ajudar os compatriotas não implica a negação
da existência de direitos básicos universais, cuja satisfação é essencial à
satisfação de qualquer outro direito, como o direito de subsistência e o
direito à segurança, mas nega que qualquer dever de ajudar correlativo seja
universal ou mesmo transnacional (Shue, 1996: 132). Neste sentido, as mesmas
pessoas que, em caso de guerra, têm o dever de arriscar a vida em nome da
pátria, podem nunca vir a ser obrigadas a ajudar pessoas que se vêm privadas de
bens essenciais à subsistência, pelo simples facto de não serem suas
compatriotas. Mas, como sublinha Shue, intuitivamente, é plausível que se
possa ter a obrigação de compartilhar recursos com pessoas relativamente as
quais ninguém teria qualquer obrigação de arriscar a própria vida (Idem: 134).
A nossa consciência de pertença à humanidade revela-se especialmente quando
somos confrontamos problemas que colocam em risco a subsistência dos indivíduos
- tais como o facto de se ter nascido no seio de uma sociedade sem recursos.
Nesse caso, acção humanitária será suficiente? A menos que se queira perpetuar
as razões profundas da insustentabilidade da grande maioria da população
mundial, a questão não deve ser colocada ao nível das nossas obrigações para
com os estrangeiros, de deveres humanitários, mas ao nível dos nossos deveres
de justiça para com qualquer indivíduo do mundo. É precisamente a este nível
que Thomas Pogge desenvolve a sua proposta em vista da erradicação da pobreza
extrema.
I
Na esteira deste prólogo, detenho-me no cosmopolitismo moral de Pogge. Assente
na noção de que cada ser humano tem um valor como unidade última do cuidado
moral, a variante do cosmopolitismo moral de Pogge é formulada em termos de
direitos humanos com agregação interpessoal directa (Pogge, 2002: 176).
Enraizada na ideia de que todas as pessoas se encontram comprometidas umas com
a outras, na exigência do respeito mútuo que impõe limites às condutas pessoais
e às diligências de estruturação de esquemas institucionais, trata-se de uma
via que desafia as perspectivas que tomam o Estado, a nação, a comunidade ou
mesmo o povo como titulares de responsabilidades específicas, distintas e
justificadas separadamente das responsabilidades gerais ou globais.
Representante da via cosmopolita neo-rawlsiana que se focaliza na justiça
económica e social, compreendida como promoção da igualdade de oportunidades e
da distribuição de bens sociais primários, Pogge não se limita a reconhecer o
princípio da diferença como o princípio de justiça distributiva global mais
adequado, dado que da sua aplicação à escala global resulta uma redistribuição
fortemente igualitária dos recursos mundiais, como defende o seu primado
relativamente ao princípio da diferença doméstico. Neste sentido, num tom
crítico à teoria da justiça rawlsiana, escreve: tendo em conta a aparente
complexidade do problema da justiça de fundo, é imperativo tomar a perspectiva
global desde o início, ajustar as nossa reflexões morais sobre a organização
interna das sociedades e sobre as restrições adequadas à conduta individual à
luz da nossa aspiração para uma estrutura básica global justa e estável
(Pogge, 1989: 256).
Na concepção de Pogge as desigualdades entre os indivíduos do mundo é
justificada apenas quando beneficie aqueles que menos têm - a justiça
distributiva tem um alcance global dado o igual valor moral dos indivíduos. Ao
defender a justiça global, considera o bem-estar dos indivíduos como
prioritário aos valores e interesses da sociedade e que é em sua vista que se
deve proceder às reformas institucionais; e, sob esse intuito, alerta para a
interdependência complexa entre as estruturas básicas domésticas e a estrutura
básica global, reconhecendo a existência de um sistema internacional de
cooperação formado por regras, instituições e práticas. Neste sentido,
avaliando a erradicação da pobreza extrema - compreendida como uma violação dos
direitos humanos[3] - como a questão prioritária da justiça global, lembra que
os cidadãos mais ricos dos países mais influentes são activamente responsáveis
pela maior parte da pobreza que ameaça a vida no mundo; que nestes países a
luta contra a pobreza não é tida, pelas práticas governamentais, como uma
obrigação moral ou legal[4]. Em vista da erradicação da pobreza extrema, Pogge
advoga que os indivíduos têm o dever de não causar dano a qualquer outro (a), o
dever de evitar o dano que o seu comportamento passado possa causar no futuro
(b) e de não compactuarem com um sistema institucional que lese os mais pobres
(veja-se Pogge 2002; 2005).
Esta perspectiva assenta na convicção de que quando está em causa reclamar o
cuidado constante, os deveres negativos (a) e intermédios (b) - positivos
porque requerem a acção do agente e negativos na medida em que o seu
requerimento é contínuo com o dever de evitar causar dano nos outros (veja-se
Pogge, 2005: 94) - são mais rigorosos que os deveres positivos, visto gerarem
obrigações positivas apenas pela conduta voluntária. Esta argumentação ganha
terreno no seguimento do fraco acolhimento do apelo aos deveres positivos em
vista da erradicação da pobreza extrema (Peter Singer, Henry Shue, Peter Unger
e outros) entre os cidadãos dos países mais influentes. Logo à partida,
evidencia o seu compromisso com instituições sociais que produzem tais
privações, dado beneficiarem das enormes desigualdades por elas produzidas. Ou
seja, Pogge acentua a necessidade de se romper com a lógica que amplia
ininterruptamente o poder económico das elites e que se revela moralmente
arbitrária; que se desculpabiliza dos danos que causa nos cidadãos dos países
mais pobres pela implementação de políticas de assistência internacional.
Criticando a tese da causalidade puramente doméstica da pobreza, que acolhe a
adesão da maioria dos indivíduos do mundo desenvolvido e explica, em grande
medida, a persistência das elites brutas e corruptas nos países mais pobres
(veja-se Pogge, 2004: 538-541), Pogge considera que a pobreza extrema se fica a
dever, em grande medida, à ordem económica global - modelada para reflectir os
interesses dos países ricos, dos seus cidadãos e das suas corporações (Idem,
537). Mostra, sobretudo, que a tolerância e cooperação com a corrupção
instituída nas autoridades dos países subdesenvolvidos e os privilégios
concedidos pela comunidade internacional aos governos dos países - de acesso
aos recursos naturais e de acesso a empréstimos da banca internacional - causam
danos nos mais desfavorecidos (Pogge, 2001: 20s; 2002: 29s; 118s; 2004: 543s).
Ao conferir à elite no poder direitos de propriedade legais sobre os recursos
do seu país, o privilégio internacional de acesso aos recursos naturais
incentiva a luta anti-democrática pelo poder político e tem por consequência a
correlação negativa entre a riqueza de recursos e o rendimento económico.
Consequentemente, tem efeitos desastrosos em países subdesenvolvidos com amplos
recursos naturais. Por sua vez, os males decorrentes do privilégio
internacional de empréstimos não são menores: hipoteca o futuro dos cidadãos em
prol de interesses pessoais da classe governante; debilita a capacidade de
implementação de reformas estruturais e de programas políticos inovadores dos
governos democráticos posteriores; e, porque constitui um bónus adicional para
os detentores do poder coercivo, estimula as tentativas golpistas.
Sob o desígnio de acabar com a desigualdade radical entre os indivíduos mais
ricos e mais pobres do mundo, uma arbitrariedade mantida coercivamente à custa
da violação de um dever negativo de justiça, Pogge propõe a aplicação à escala
global de um princípio suficiente que tem por base a ideia de que as
desigualdades são aceitáveis desde que as populações estejam acima da
suficiência definida (...) como um rendimento acima de um dólar por dia
(Rosas, 2006: 547). Recomenda neste sentido, e na esteira das cláusulas
inerentes à noção de apropriação lockeana[5], a criação de um imposto sobre o
uso dos recursos naturais - dividendo de recursos global. Trata-se de um
imposto que, recaindo sobre os cidadãos dos países mais influentes, visa
constituir um fundo a distribuir pelos cidadãos dos países mais carenciados -
um pequeno imposto sobre os fósseis combustíveis bastaria, nesta perspectiva,
para acabar com a fome no mundo.
Esta proposta assenta na ideia de que aqueles a quem as nossas acções causam
dano devem ser compensados - desenvolvida pelo liberalismo libertário (veja-se
Nozick, 1974: 78-84) - de modo a rectificar-se a desigualdade radical -
resultado cumulativo de décadas e séculos em que as sociedades e grupos mais
prósperos usaram das suas vantagens em capital e conhecimento para expandi-las
ainda mais (Pogge, 2002: 211). Aqueles que, involuntariamente, usem menos os
recursos do planeta devem ser compensados por aqueles que os consomem
exaustivamente. Esta ideia não implica a compreensão dos recursos globais como
propriedade comum da humanidade a ser partilhada igualmente, mas um concepção
mais modesta - trata-se de deixar para cada governo o controle dos recursos
naturais do seu território. Neste sentido, a taxa global incide sobre a
exploração dos recursos e não sobre a posse de recursos, quer se lhes dê ou não
uso - distancia-se neste sentido, das propostas que visam um igualitarismo
global compatível com as políticas de autodeterminação, como a de Cécile Fabre
(2005).
Os direitos de propriedade funcionam como constrangimento da acção; ou seja, o
direito de propriedade do indivíduo A sobre x impõe um dever negativo geral a
todos os outros indivíduos de não usarem x sem permissão de A. Todavia, em caso
de situações de emergência pode-se usar um bem de alguém sem o seu
consentimento, desde que seja compensado totalmente pela transgressão - o dever
negativo implica uma obrigação positiva cujo conteúdo é independente do seu
consentimento. Em analogia a esta compensação, Pogge crê que os direitos
humanos devem ser compreendidos como geradores de reivindicações morais mínimas
contra aqueles que participam na imposição de instituições sociais (Pogge,
2007: 24). Neste sentido, conquanto aceite a perseverança libertária sobre o
constrangimento mínimo que os deveres dos direitos humanos podem impor - que
não causemos dano aos outros em certas vias; a sua compreensão institucional
não pressupõe, como aquela via, a desvalorização dos direitos humanos sociais e
económicos - direitos que gerem reivindicações contra os indivíduos que impõem
sobre nós uma ordem institucional coerciva que restringe a nossa liberdade de
acesso às necessidades básicas. Assim sendo, todos os agentes humanos têm um
dever negativo de não cooperar com uma ordem institucional injusta, a menos que
seja compensatória, protegendo as suas vítimas ou trabalhando em vista de
reformas.
Como já assinalado, Pogge evidencia a relevância dos factores institucionais -
notavelmente, das regras que governam as interacções económicas nos contextos
nacional e internacional - no conjunto de causas determinantes da pobreza
extrema[6]. Esta importância fica-se a dever ao seu enorme impacto na
distribuição económica no seio da jurisdição a que se aplica (Idem: 26); à sua
enorme visibilidade e ao facto de ser mais fácil sustentar regras moralmente
bem sucedidas que condutas moralmente bem sucedidas. Consequentemente, a
proposta de Pogge para a erradicação da pobreza - dividendo de recursos global
- pressupõe uma reforma institucional global cuja realidade e sustentabilidade
se depreende das seguintes razões: em primeira instância, face ao seu enorme
contributo para evitar a pobreza extrema os montantes e os custos de
oportunidade que cada cidadão influente impõe a si mesmo para a suportar são
mínimos; em segundo lugar, assegura que estes sejam compartilhados
equitativamente entre os mais ricos; e, por último, uma vez implementada, não
exige ser repetida, ano após ano, através de dolorosas decisões pessoais (veja-
se Idem, 29). Esta via rompe com as estratégias que visam manter a configuração
da ordem económica global coeva; olvidando-a ou, senão mesmo, negando-a como
causa determinante da crescente evolução da pobreza extrema, conquanto lhe
atribua um papel relevante na luta contra este flagelo.
A argumentação de Pogge em prol da justiça global, desenvolvida numa linguagem
dos direitos humanos, encurta a distância entre as vias igualitária e o
libertária, tanto pelo apelo ao direito de propriedade lockeano como pelo
reconhecimento de que, como já assinalado, os deveres negativos, como o dever
de não causar dano aos mais pobres, são mais rigorosos que os positivos, dado
gerarem obrigações positivas apenas pela conduta voluntária (Pogge, 2002: 132).
Da mesma forma, a sua proposta é justificável nas terminologias contratualista
e consequencialista. Mas para além da recorrência a uma estratégia ecuménica -
que começa por mostrar como o mundo é pervertido pela desigualdade radical e
concernente a todos os aspectos da vida humana e visa tornar o dividendo sobre
os recursos naturais razoável a qualquer via do pensamento político ocidental -
o filósofo recorre a uma estratégia normativa e empírica que remete para a
ideia de responsabilidade causal - os cidadãos dos países desenvolvidos têm
obrigações especiais de acabar com a pobreza, dado contribuírem
significativamente para a sua existência. Assim sendo, a responsabilidade
causal da comunidade internacional pela génese e perpetuação de desigualdades
injustas, que condenam algumas populações à mais profunda pobreza, pressupõe a
ideia de responsabilidade directa das pessoas.
A referência à responsabilidade causal emerge, inicialmente, ligada à
argumentação de Pogge em defesa do alcance global da aplicação do princípio da
diferença, como desenvolvida em Realizing Rawls (1989). Neste ensaio, o
filósofo evidencia como a responsabilidade causal pela ordem global dá origem à
responsabilidade moral, a uma responsabilidade colectiva pela estrutura básica
global que precisa o artigo 28º da Declaração Universal dos Direitos Humanos -
cujo enunciado reconhece o reino de uma ordem social e internacional, que
efective os direitos e liberdades nela enunciados, como um direito das pessoas.
Neste sentido, a responsabilidade colectiva causal pela perpetuação de
instituições sociais injustas recai sobre aqueles que delas retiram vantagens;
conferindo-lhes uma responsabilidade moral por dificultarem o acesso daqueles
que se encontram numa situação mais desvantajosa, frequentemente resultante de
factores arbitrários, aos bens de primeira necessidade.
O cosmopolitismo moral de Pogge envereda por uma variante institucional (e não
interaccional) que conduz a uma moralidade mais pertinente e global, na qual os
direitos humanos são tidos como constrangimento às condutas pessoais e o seu
cumprimento como sendo da responsabilidade dos agentes colectivos e
individuais. Esta variante moral, distintamente da interpessoal, assinala a
responsabilidade directa das pessoas pelo cumprimento dos direitos humanos;
dado todos os seres humanos participarem na ordem institucional global, que
envolve instituições estatais, um sistema legislativo e diplomático
internacional, um sistema global de capitais, bens e serviços. Assim sendo,
cada pessoa tem o dever de não cooperar com uma ordem institucional injusta -
dever que desencadeia obrigações de proteger as vítimas e de promover reformas
institucionais em vista de uma maior observância dos direitos humanos. Trata-se
de uma responsabilidade partilhada que se estende da ordem institucional
doméstica à ordem institucional global; relativa tanto ao que estabelece e
autoriza quanto aos seus efeitos - como escreve, no mínimo os cidadãos mais
privilegiados e influentes dos países mais poderosos e aproximadamente
democráticos suportam a responsabilidade colectiva do papel do seu governo na
concepção e imposição dessa ordem global e a sua falha em reformá-la em vista
de uma maior cumprimento dos direitos humanos (Pogge, 2002: 179). Neste
sentido, o filósofo opõe-se às tácticas que visam limitar a relevância prática
da responsabilidade partilhada - à estratégia filosófica que olvida os efeitos
decorrentes das instituições sociais; e à estratégia empírica que enfatiza as
explicações locais dos direitos humanos e da sua distribuição.
De que forma esta perspectiva cosmopolita - moral institucional - se relaciona
com a noção de justiça distributiva? Trata-se, segundo Pogge, de saber como
escolher ou projectar as regras de condução da economia que regulam a
propriedade, a cooperação e as trocas e, assim, as condições de produção e
distribuição. Ou seja, defende-se a procura de uma ordem económica sob a qual
todos os que nela participam satisfaçam as suas necessidades sociais e
económicas básicas. Neste sentido, a resolução das injustiças da ordem
económica não pressupõe a existência de uma comunidade de pessoas primeiramente
comprometidas com o que partilham entre si, mas a justiça económica global
exige e suporta a realocação da autoridade política ' esta constitui, a par da
paz e da segurança, da redução da opressão e da ecologia e democracia
(compreendida como o direito humano de participação política), um dos
sustentáculos da sua defesa de uma soberania vertical dispersa.
A promoção da justiça exige a existência de instituições sociais, políticas e
económicas de alcance global, pois os Estados, como os conhecemos, não são
suficientes a esta promoção (veja-se Jones, 2005: 15). Contra a premência da
ideia de autonomia territorial do Estado e a condensação da soberania no nível
estatal e, consequentemente, em detrimento de um Estado Mundial, Pogge propõe a
dispersão vertical da soberania, uma ordem soberana de multicamadas. Segundo
esta concepção, as pessoas podem estar filiadas a uma variedade de unidades
políticas de tamanhos distintos, sem que alguma delas seja dominante e
contribuindo todas elas para o seu conforto e identidade política. As
fidelidades das pessoas dispersam-se pelas diversas unidades políticas ' o
bairro, a cidade, o distrito, a província, o Estado, a região e, mesmo, o mundo
em geral. O cosmopolitismo moral institucional de Pogge antevê, deste modo, uma
ordem global pluralista ' como escreve, uma tal ordem institucional é
compatível com unidades políticas em que os membros sejam homogéneos com
respeito a algumas características não escolhidas partilhadas (nacionalidade,
etnicidade, língua nativa, história, religião, etc), e pode certamente
engendrar essas unidades. Mas deve fazê-lo apenas na medida em que as pessoas
escolham partilhar a sua vida política com outras semelhantes a elas neste
aspecto. Mas isso não lhes daria o direito de partilharem na vida política umas
das outras pelo simples facto de partilharem características não escolhidas
(Pogge, 2002: 199).
II
Na senda da teoria da justiça como equidade (Rawls 1971) e contra os princípios
de justiça internacional enunciados por Rawls na Lei dos Povos (Rawls, 1999),
Pogge não só defende o princípio da diferença como o princípio de justiça
distributiva global mais adequado, como a primazia da sua aplicação
relativamente ao princípio da diferença doméstico. Todavia, como salienta
Samuel Freeman, não logra esclarecer convenientemente a ideia de que primeiro
se deva estruturar as instituições económicas globais de modo a maximizar-se a
situação dos mais carentes do mundo e só em seguida se deva passar à
estruturação das instituições económicas e jurídicas das sociedades domésticas,
a fim de se melhorar a situação daqueles que nelas se encontram na pior posição
(veja-se Freeman, 2006: 63).
Ao defender o alcance global da justiça social distributiva e nos remeter para
os ajustamentos institucionais (económicos e políticos) necessários à
erradicação da pobreza, o liberalismo igualitário de Pogge incorre num impasse.
Logo à partida, esbarra na dificuldade em implementar universalmente deveres de
justiça cuja justificação moral assenta numa concepção de pessoa estranha a
culturas políticas (morais) não liberais. Qualquer indivíduo compreende o dever
de não causar dano a qualquer outro, mas isso não significa que se tenha como
moralmente responsável por qualquer dano que cause a alguém do outro lado do
mundo. Poderá dar-se o caso da estrutura moral, cultural e política da sua
sociedade doméstica não o reconhecer como pessoa livre e igual ou, ainda, de
não identificar a vítima do dano como seu semelhante. No seguimento deste
raciocínio, sou levada a questionar a possibilidade de se defender a prioridade
de deveres de justiça global que ignoram as particularidades das sociedades
domésticas a que os indivíduos pertencem. Este pressuposto parece minimizar
propositadamente a tese cosmopolita da identidade - como já assinalado, esta
ilustra como cada um de nós é uma pessoa influenciada por uma variedade de
culturas - em prol da sobrevalorização da tese cosmopolita da responsabilidade,
da ideia de que a responsabilidade de cada pessoa se estende muito para além do
seu círculo restrito, do bairro ao mundo.
Ao longo da sua proposta, Pogge argumenta que nós somos responsáveis pela
pobreza no mundo, referindo-se ao nós enquanto agentes que tomam decisões em
nome próprio e na posse da informação completa. Mas nem sempre as escolhas são
feitas dessa forma - no âmbito da representatividade as escolhas pressupõem que
outros decidam por nós. Ora, nem sempre quem decide o faz de acordo com as
nossas convicções - as decisões governamentais são disso paradigmáticas. Neste
sentido, como assinala Debra Satz (2006), a argumentação de Pogge peca por
falta de esclarecimento sobre a distinção entre a responsabilidade pessoal -
que contempla a ideia de indivíduo cumpridor dos fins a que se propõe - e a
responsabilidade civil - enraizada ao dever de cada cidadão não só de
participar no processo político como de vigiar as práticas políticas, fazendo o
possível para que se guiem à luz da razão pública. Podemos apontar a
responsabilidade civil dos cidadãos de uma sociedade doméstica quando o seu
governo, eleito democraticamente, não cumpra os seus compromissos. Todavia, é
difícil avaliar o seu grau de responsabilidade quando passam a estar em causa
representações mais indirectas. Poderemos responsabilizar, da mesma forma,
todos os cidadãos dos países influentes pelas políticas de instituições
internacionais, como o FMI e o Banco Mundial? Na verdade, a orgânica destas
instituições assenta num debate político cujo conhecimento é restrito aos mais
altos representantes desses países e que, naturalmente, é do desconhecimento de
qualquer cidadão comum. Assim sendo, e em coerência com a terminologia de
Pogge, não faz sentido que estes sejam responsabilizados pelas injustiças
decorrentes das práticas políticas destas instituições internacionais.
Pogge aponta responsabilidades aos cidadãos dos países mais desenvolvidos pela
pobreza extrema, dado estes países ditarem as políticas económicas e
financeiras da comunidade internacional. Mas acaba por acentuar a
responsabilidade directa das pessoas pelas instituições que integram e causam
dano aos mais desfavorecidos, como se cada indivíduo tivesse o mesmo grau de
responsabilidade na ordem social global e beneficiasse nos mesmos moldes do
esquema de cooperação global. A concepção de justiça global, decorrente desta
enfatização da responsabilidade, assenta numa visão demasiado crédula no igual
valor de cada pessoa na esfera moral de toda a humanidade. Ao se estender a
aplicação da justiça social distributiva a todos os indivíduos do mundo
pressupõe-se que estes sejam igualmente considerados, quando na realidade não o
são. Por isso mesmo, a supervisão do cumprimento dos deveres de justiça global
afigura-se uma empresa incomensurável, senão mesmo utópica. Exige não só uma
reforma profunda da estrutura económica global, como a atenção constante e
equitativa da comunidade internacional sobre todas as sociedades domésticas,
pressupondo que qualquer indivíduo do mundo esteja nela representada de forma
igual.
Concluo, assim, que o liberalismo igualitário de Thomas Pogge não logra escapar
ao infortúnio cosmopolita, pois ao romper com as formas de apoio social que
estruturam e sustentam a responsabilidade individual, cai no isolamento moral -
como assinala Sheffler, arrisca-se a demolir o mundo social que doa sentido ao
estatuto de cidadão do mundo (1999: 125).