Por entre mitos e Märchen: problemática e perspectiva
2012 é o ano que assinala o bicentenário da primeira publicação dos Kinder- und
Hausmårchen de Jacob e Wilhelm Grimm, em Berlim. Trata-se da obra de língua
alemã mais traduzida e editada em todo o mundo, considerada um dos
"tesouros da cultura popular europeia" (Bairos I, 2012: 9). Desde o
seu aparecimento que esta colectânea de contos populares supostamente centro-
europeus ganhou uma notoriedade assinalável. Como nota a autora da sua recente
e única tradução integral para a língua portuguesa, o êxito dos Kinder- und
Hausmårchen"foi crescendo em popularidade ao longo do século XIX"
(Bairos I, 2012: 9).
Bastará conhecer-se minimamente a História europeia posterior à Revolução
Francesa para se perceber que esta publicação dos Irmãos Grimm não é fruto do
acaso. Com efeito, a obra que resultou de um monumental trabalho de
investigação insere-se perfeitamente no ambiente nacionalista que a Europa
conheceu durante o século XIX (Hobsbawm, 2004). A necessidade de consolidar
ideais que remetiam para os valores das nações em processo de afirmação no
período que sucedeu ao Ancien Régime justifica em grande parte a ânsia de
conhecimento das raízes dos povos e a valorização de tudo que dissesse respeito
às tradições, aos mitos, ao folclore e sobretudo ao medievo de cada um daqueles
que faziam já parte do grande mosaico cultural europeu (visto que era nessa
época que suposta e romanticamente radicavam e se fundamentavam estes vários
elementos[1]). Em Portugal, por exemplo, o processo foi manifesto nas obras de
Adolfo Coelho, Teófilo Braga e Ana de Castro Osório (Bairos I, 2012: 14;
Medeiros, 2003).
Os objectivos dos Grimm estão bem patentes na carta que em 1815 enviaram a
vários destinatários, por toda a Alemanha, que visava justificar ao mesmo tempo
que fazia o balanço do trabalho que haviam encetado. Passamos a transcrever
parte da missiva:
"Formou-se uma sociedade que se expandirá por toda a Alemanha e
que tem por objectivo salvaguardar e compilar tudo o que sejam
canções e lendas do povo alemão. Na nossa pátria ainda abunda por
todo o lado este tesouro que os nossos antepassados nos legaram.
Apesar de todo o ridículo e troça de que tem sido alvo, ele
sobreviveu em segredo, inconsciente da sua beleza e transportando a
sua essência irreprimível. Se este tesouro não for estudado em
pormenor, não se poderá compreender plenamente as origens autênticas
e remotas da nossa poesia, da nossa história e da nossa língua. Tendo
isto em mente, pretendemos pesquisar e coligir com diligência e rigor
os seguintes itens:
[...]
2) Lendas em prosa; os numerosos contos de embalar e contos para
crianças sobre gigantes, anões, monstros, príncipes e princesas
enfeitiçados e libertados, demónios, tesouros e objectos mágicos que
concedem desejos; lendas locais que são contadas e conhecidas pelas
explicações que dão sobre determinados lugares, como montanhas, rios,
lagos, pântanos, castelos em ruínas, torres, rochedos e todos os
monumentos de tempos remotos. Importará prestar especial atenção a
fábulas de animais que incluam, em particular, raposas e lobos,
galos, cães, gatos, sapos, ratos, pardais, etc.
3) Contos cómicos de trapaceiros e facécias; teatros de marionetas de
outros tempos..."
(apudBairos I, 2012: 15-16; cf. Csapo, 2005: 16-19).
Na verdade, no texto transcrito, reconhecemos o essencial da problemática que
propomos tratar. Como assinala T. Aica Bairos, a recolha levada a cabo pelos
Irmãos Grimm começou por ser sobretudo um trabalho de natureza etnográfica,
dirigido a um público adulto, pelo que não terá havido, de início, qualquer
preocupação em "expurgar conteúdos reputados impróprios para as
crianças"[2]. Por conseguinte, a edição apresentada ao público em 1812
incluía relatos, aspectos e elementos que vieram a ser postos em causa por
investigadores coevos, que consideraram que as recolhas dos Grimm continham
"motivos passíveis de chocar o público infantil" (Bairos I, 2012:
18). Esta recensão foi levada muito a sério pelos dois irmãos, que passaram a
fazer alterações significativas nos textos, com o objectivo de "adequar a
colecção aos preceitos morais do público burguês" (idem, ibidem). Este é
um dos assuntos centrais do estudo de M. Tatar, quando publicou The Hard Facts
of the Grimms' Fairy Tales, e outro dos aspectos relevantes para a nossa
reflexão.
Em 2000, G. Anderson publicou um estudo particularmente importante para o
debate em torno da problemática do "conto de fadas", Fairytale '
segundo a designação anglo-saxónica ' ou Mårchen ' segundo o rótulo germânico,
que adoptamos neste estudo. Trata-se de Fairytale in the Ancient World e, nele,
Anderson estuda a relação entre o Mårchene algumas narrativas conhecidas desde
a Antiguidade Pré-Clássica e Clássica, concluindo que alguns dos temas e
motivos que encontramos nos chamados "contos maravilhosos" podem
ser igualmente percebidos num "outro" corpus literário que
reconhecemos como "mitologia"[3]. A título de exemplo, podemos
referir o tema da "Gata Borralheira" ou "Cinderela",
que se reconhece nas histórias de Inana, Aspásia de Foceia, Assenat, Rodópis
(ver Rodrigues, 2009: 115-124) e Io (Anderson, 2000: 24-42); o da "Branca
de Neve", presente nas narrativas em torno de Quíone, Níobe e Ântia, por
exemplo (idem, ibidem, 43-60); o da "Bela e o Monstro", evidente na
história de Cupido e Psique (idem, ibidem, 61-71); o de "Rapunzel",
que se reconhece no mito de Dánae e na história egípcia do "Príncipe
Malfadado" (idem, ibidem, 121-122); ou ainda o da "Bela
Adormecida", cujos contornos parecem recuperar temáticas e figuras como
as do destino, das Meras e de Éris[4]. O que distingue então um do outro?
Com efeito, a definição destes conceitos não é tarefa fácil. Várias têm sido as
tentativas e muitos os autores que têm escrito acerca do problema. Mas definir
"mito" e "mitologia" parece ser uma missão ingrata. É
verdade que podemos aceitar uma conceptualização relativamente simples de mito,
como tratando-se de uma "forma narrativo-simbólica mediante a qual se
procura exprimir um sentido da realidade." (Mardones, 2005: 41). Mas o
facto é que esta definição não é suficientemente universal para ser por todos
aceite como abrangente ou exclusiva do mito e da mitologia (cf. Csapo, 2005).
Num aspecto, todavia, parece haver consenso: "mitologia" tanto é
entendida como a ciência que estuda os mitos, como o corpus a que pertencem as
várias narrativas que dão sentido aos mesmos (e.g. Jabouille, 1993: 13-27;
idem, 1994: 15-24, 41). Mas não é incomum encontrarmos, nas várias tentativas
de definição de "mito" e de "mitologia", referências ou
alusões aos chamados "contos de fadas" ou Mårchen, ainda que com a
mera intenção de os distinguir dos mitos propriamente ditos. I.e., tais
referências ocorrem com a intenção de definir o mito pela negativa: um mito não
é um conto popular ou tradicional (Mårchenou folktale) (Jabouille, 1994: 34). O
que, na verdade, não ajuda muito quer na definição de um quer na do outro.
Logo em meados do século XIX, os Grimm aperceberam-se desta relação entre os
Mårchene a mitologia, como prova a reflexão que publicaram acerca do assunto
(apudBairos III, 2012a: 451-512). Mas nesse texto lemos sobretudo comparações
de diversos contos reconhecidos em várias das culturas do globo, da América do
Norte à Índia, salientando-se as comunhões, e não propriamente uma reflexão
epistémica em torno dos dois géneros, "mito" e "conto
maravilhoso". Há, por conseguinte, que buscar essa reflexão em outros
autores, com a consciência de que cada proposta corresponde a uma escola
epistemológica.
Assim, K. Kerényi, por exemplo, propõe a vivência como elemento ou factor-chave
para a definição de mito, sendo que o "carácter de participação e de
integração ajudará a definir o mito e a distingui-lo do conto popular, perante
o qual se adopta uma atitude de atenta audição e não de vivência"
(ibidem). Esta é uma posição que se aproxima da perspectiva ritualista ou
litúrgica de constante actualização do mito. Já J. M. Mardones considera que o
"mito enquanto narração da origem primordial das coisas é um tipo de
narração ou relato muito habitual nas sociedades arcaicas. É um tipo de
tradição oral próximo da lenda, do conto...". Mas como afirma também, e
citando Lévi-Strauss, "as distinções nunca são nítidas e são produzidas
pelo mesmo espírito." (Mardones, 2005: 42). Neste sentido, Lévi-Strauss
localiza a principal diferença entre mitos e folktales na força e na qualidade
das oposições que ambos manifestam enquanto mediadores. I.e., para este
antropólogo francês, enquanto os mitos servem uma função essencialmente central
de modo a sustentar valores culturais e instituições, os folktalesou
mårchendesenvolvem-se sobretudo num meio popular que muitas vezes se opõe ao
próprio sistema cultural vigente, pelo que "mito" e
"conto" podem mesmo estar em lados opostos um do outro, chegando a
associar-se à clássica oposição entre "natureza e cultura"[5].
Por outro lado, o mitólogo português V. Jabouille, com quem tivemos o
privilégio de estudar, afirma: "Primeiro ponto a realçar: o mito implica
narrativa, o contar qualquer coisa a alguém. E é uma narrativa fabulosa porque
há a intervenção de origem popular e não reflexiva. Esclareça-se que, na
perspectiva por nós adoptada, o que caracteriza o mito não é a sua origem
popular mas o ser colectivamente aceite. Recordemos, por exemplo, as histórias
escritas por Ovídio, em As Metamorfoses: são narrativas poéticas, líricas,
contos populares e, até, mitos. E isto porque algumas são inventadas por
Ovídio, outras conhecidas apenas regionalmente e algumas, sim, aceites
colectivamente sem conhecimento de autoria. Estes são os verdadeiros
mitos." (Jabouille, 1993: 14). Ou ainda: "a utilização do vocábulo
mito supõe dois níveis. Um primeiro, geral e amplo; um outro, restrito, ao
nível da saga, lendas nórdicas com um fundo histórico, das folktalesou mårchen,
que correspondem aos contos populares e às fábulas. Encaremos o mito no seu
conceito geral. Ao falar de fábulas, recordo a terminologia estrangeira:
mårchenou folktale, que podemos traduzir como contos de fadas. São
designações controversas quando especializam o conceito geral de mito."
(Jabouille, 1993: 37; cf. Csapo, 2005: 3-8; Burkert, 1991: 17; Fuhrmann, 2005).
Com efeito, aparentemente, o conceito grego antigo de mythosparece ter sido na
Antiguidade bem mais abrangente e amplo do que os epistemólogos da
problemática, sob influência aristotélica, parecem reconhecer hoje. Mas podemos
deduzir então, a partir destas afirmações, que os "contos
populares" ou Mårchen são narrativas regionais, mais específicas, mais
restritas, com autores reconhecidos?[6] Não necessariamente, por certo. Alguns
autores salientaram mesmo o facto de a própria mitologia consistir em histórias
e de toda a história alguma vez contada ter necessariamente um autor individual
ou colectivo (Rose, 1935). No caso dos Mårchenreunidos pelos Grimm, poderíamos
evocar até o facto de estarem associados à Europa central e do norte. Os
próprios Grimm indicam variantes associadas a vários países europeus nos
comentários que tecem a cada conto registado e inventariado. Mas, apesar de em
vários casos conhecermos o nome de quem o transmitiu aos Grimm, quem seriam de
facto os seus autores? Além disso, também não é líquido que as narrativas que
constituem o corpus"grimmiano" se restrinjam apenas à Alemanha e
restante Europa central e setentrional. Como nota H. J. Rose, as influências a
que o território ocupado pela Alemanha esteve sujeito são variadas (Rose, 1935;
Bermejo Barrera, 1994: 11) e F. Ribeiro de Medeiros realça, a propósito do
corpusde contos populares ou tradicionais que se encontram em Portugal, que
"grande parte dos contos tradicionais portugueses são versões locais
(regionais) de contos europeus que, por sua vez, se inscrevem numa esfera mais
vasta, de contornos transcontinentais" (Medeiros, 2003: 54). Há ainda que
juntar a estas reflexões a multiplicação de conceitos ou designações
implicadas, como "lenda", "saga" e
"fábula". O que distingue umas das outras? O que é específico ou
exclusivo de cada uma delas? O que deve ser considerado o quê?
Uma proposta a considerar é a que reconhece que tanto os mitos, como as sagas,
as lendas e os Mårchen contêm funções e elementos comuns, tais como o carácter
explicativo e o gosto pelo sobrenatural. Ainda assim, para muitos há diferenças
fundamentais que devem ser consideradas. O mito, por exemplo, caracteriza-se
por narrar histórias relativas a deuses, heróis e seres divinos que são objecto
de culto; enquanto a saga se centra sobretudo em personagens ligadas entre si
por laços familiares e de sangue e a lenda parece ter um núcleo essencialmente
histórico (Burkert, 1991: 17)[7]. Já os contos tratam de personagens totalmente
imaginárias. Mas estas estão longe de serem propostas suficientes e consensuais
entre os cientistas sociais (Rose, 1935; Bermejo Barrera, 1994: 43-44). Para
exemplificar a graduação do problema, basta trazer à colação o conto indexado
com o número 3 na edição dos Grimm, "A Filha de Maria"
(Marienkind), que põe em causa esta classificação. Assim, e.g. e neste
contexto, não é Maria o equivalente a uma divindade? Do mesmo modo, como nota
Burkert, se o mito apenas diz respeito a divindades, não fica Édipo excluído da
mitologia grega? (Burkert, 1979: 22). As intersemânticas e intertextualidades
são muitas e variadas e, como notou M. P. Nilsson, "Se se estudar
sistematicamente o mundo do conto, ver-se-á que este se baseia nas mesmas
representações primitivas que encontraram expressão na religião."
(Nilsson, 1911). Com efeito, já os Grimm haviam proposto no século XIX que os
Mårchenseriam como que vestígios de antigos mitos[8].
Na primeira metade do século XX, o conhecido investigador V. Propp mostrou ter
consciência do problema, como testemunha a seguinte afirmação, aliás bem
marcada pela ideologia a que estava vinculado: "O conto é um dos objectos
mais difíceis da indagação científica. No processo de desagregação da ciência
burguesa que leva à formação de um número infinito de disciplinas isoladas
entre si, o conto é estudado pelos arqueólogos, pelos orientalistas de várias
tendências, pelos etnógrafos, pelos historiadores da religião, pelos
sociólogos, pelos historiadores da literatura, etc., e cada uma destas
disciplinas vê apenas um aspecto da matéria e não está em posição de ver os
outros" (Propp, [s.d.]: 29).
Uma concepção sistematizada da questão, eventualmente equilibrada, sem demérito
ou desconsideração pelas várias Escolas que se têm dedicado à problemática a
partir das mais variadas perspectivas, é a proposta por W. Burkert: "Um
mito pode ser contado como um conto (Mårchen), no entanto, diferencia-se dele
pelo facto de, normalmente, não ser contado por si mesmo e já não significar
nada, sobretudo, para as crianças" (Burkert, 1991: 17; e Burkert, 1979:
1-34; Rocha Pereira, 2005: 9-17). Sendo que, como nota ainda M. H. da Rocha
Pereira, "no mito reflecte-se a polifacetada variedade da experiência
humana, não redutível a um modelo único" (Rocha Pereira, 2005: 17). Se
compararmos, porém, estas propostas com a que F. Vaz da Silva faz para o conto
tradicional, as dúvidas acerca da distinção persistem: "Os contos
tradicionais ditos maravilhosos, ou de fadas, são narrativas que descrevem as
tribulações da alma humana como quem fala de outra coisa. Dirigem-se às
preocupações dos seus auditores e leitores em linguagem figurada, aludem aos
interesses das pessoas como quem conta fantasias. Por isso perduram no tempo e
adaptam-se incessantemente a novas condições: das tradições orais de antanho,
os contos passaram para a literatura, os filmes e a Internet." (Vaz da
Silva, 2011: 9; cf. Vaz da Silva, 2002).
A propósito de uma comparação circunstancial entre o mito de Édipo e o conto da
Branca de Neve, refere V. Jabouille: "É como a história da Branca de
Neve. E é intencionalmente que refiro a história da Branca de Neve, porque o
conto popular tem uma estrutura idêntica à do mito e as semelhanças são
evidentes neste caso concreto. Édipo é abandonado ' como a Branca de Neve,
repito, que também devia ser morta ', mas não morre..." (Jabouille, 1993:
20). Na verdade, as associações que podemos encontrar na bibliografia de
Jabouille vão bem mais além. Ao referir-se a um simpósio que em 1979 decorreu
em Córdova, e que reuniu aqueles a quem o autor chama de "homens da
ciência e do imaginário", nota Jabouille que "o elemento de
aproximação foi o mito ou, numa perspectiva mais ampla, o simbolismo ou o
imaginário, materializado por aquele conjunto de imagens e de associações
imaginárias que são património de todos nós e através dos quais podemos
construir, podemos trabalhar e inventar." (Jabouille, 1993: 19). Ora,
cremos poder dizer que o mesmo tipo de reflexão pode ser feito a propósito do
conto reconhecido como Mårchen, o que, uma vez mais, só complica o problema e o
mantém longe de ser categorizado e definido de uma forma clara e inequívoca.
Uma solução seria considerar como mito apenas as narrativas relacionadas com
origens, enquanto todas as restantes seriam categorizadas de outra forma
(e.g.Carreira, 1994; Mardones, 2005: 37, 40-43; Burkert, 1979: 22-23; Burkert,
1991: 17-18). Mas se assim for, como compreender aquelas que têm sido
entendidas como mitos soteriológicos, culturais, etiológicos, naturalistas,
morais e escatológicos (Jabouille, 1994: 39), cujo corpo e sentido podem não
estar necessariamente associados a questões genesíacas, cosmogónicas ou
"antropogónicas"?
Com efeito, o problema em causa é bem mais complexo e é dessa polissemia e
complexidade que pretendemos dar nota, com algumas reflexões suplementares sem
que, contudo, seja nossa intenção resolver a problemática com tão pequena
dissertação.
Afinal, o que distingue um mito de um Mårchen? A questão não é fácil. E não
cremos estar sequer em condições de a resolver de forma simples. Para condensar
ainda mais a problemática, trazemos à colação precisamente a questão dos temas
tratados nos mitos. Muitos desses mitemas podem ser encontrados nos Mårchen
coligidos pelos Grimm, verificando-se afinidades entre uns e outros que não
facilitam a distinção. Antes pelo contrário. Como é evidente, não nos parece
possível levar avante este tipo de análise sem que tenhamos presente a forma
como o estruturalismo e, em particular, V. Propp trataram a questão[9]. Em
Morfologija Skazky(Morfologia do Conto), obra publicada em Leninegrado em 1928,
o formalista propôs-se a analisar a estrutura formal de um determinado tipo de
contos populares, que integravam o chamado folclore russo. O objectivo
principal de Propp foi procurar um esquema de tipo funcional que lhe permitisse
deduzir a estrutura formal abstracta do conto maravilhoso. Propp acreditava
que, uma vez definida essa estrutura formal, todos os contos poderiam ser
explicados. E as suas teorias, ainda que não absolutamente aceites ou isentas
de crítica, foram reconhecidas por vários investigadores (Csapo, 2005: 190-201;
Zipes, 1994).
Na verdade, esta metodologia acabou por se revelar semelhante à utilizada pelos
mitólogos estruturalistas em geral para analisar os mitos[10]. Naturalmente, na
elaboração do sistema analítico de Propp, a psicanálise e as formulações de
Freud e da Escola de Viena em torno da mitologia foram igualmente
significativas (Abreu, 2005; Bettelheim, 1985). Com base nos pressupostos
definidos por Propp na primeira metade do século XX, vários investigadores
passaram a categorizar os temas encontrados nos contos e a classificar de forma
mais eficaz as inúmeras variantes de um mesmo tema. A. Aarne e S. Thompson,
e.g., elaboraram, em períodos diferentes, um catálogo em que estas narrativas
são classificadas de acordo com o predomínio de um ou outro elemento ou motivo,
como um objecto mágico, uma ajuda sobrenatural, um adversário sobre-humano ou
uma personagem mágica[11]. Consideramos que é precisamente neste aspecto que
podemos tecer algumas considerações acerca da proximidade do mito, em
particular do mito grego que é a nossa área de análise, e os Mårchen,
designadamente os coligidos pelos Irmãos Grimm. Não é nossa pretensão fazer
classificações ou estabelecer associações de tipo categorial, referindo que
determinado tema ou motivo mitológico equivalem, e.g., ao motivo maravilhoso do
"dragão de sete cabeças" (B.11.2.3.1), do "homem-urso"
(B.29.7) ou ao da "pele mágica dos animais" (D.1025), apenas para
citar alguns casos (apudMedeiros, 2003: 56). Apesar de interessante, e
eventualmente frutífera, essa seria uma tarefa épica que de momento está fora
do nosso âmbito de estudo. Interessa-nos tão-somente estabelecer algumas
comparações, algumas já detectadas por Anderson outras não, e chamar a atenção
para alguns tópicos paralelos e fenomenologia comum a mitos e a Mårchen, que
justificam a complexidade epistemológica que temos vindo a confirmar.
Assim, consideremos, por exemplo, o motivo geral da metamorfose. Bastaria
recorrer ao poema homónimo de Ovídio, para recolhermos um número considerável
de exemplos da mitologia, da grega em particular, em que a metamorfose se
revela o assunto central. Assim acontece com os casos de Dafne (1.452-567), Io
(1.625-723), Calisto (2.401-530), Corónis (2.542-632), Narciso (3.339-510),
Aracne (6.1-145), Níobe (6.146-312), Tereu, Procne e Filomela (6.412-674),
Ciparisso (10.86-142) ou Jacinto (10.162-219). O destino de todas estas
personagens, aparentemente míticas, é transformar-se em alguma outra coisa,
animal ou inanimada, que não a forma humana. É evidente que cada um dos mitos
referidos tem uma explicação e um sentido que dependem, em grande parte, do seu
contexto geográfico, histórico e literário, que aqui dispensamos de referir.
Mas nem sempre existe uma relação directa de causa/efeito, etiológica, nestas
narrativas. Assim, se as metamorfoses de Dafne, Filomela, Narciso ou Ciparisso
explicam a origem do loureiro, do rouxinol, do narciso e do cipreste, a de
Calisto ou a de Io, por exemplo, não explicam a dos ursos ou a das vacas. Estas
têm, portanto, outra função, que deve ser analisada no seu contexto. O mesmo
deve ser feito com os Mårchenem que o tema da metamorfose está igualmente
presente sem que a etiologia seja o seu primeiro sentido, como em "O Rei
dos Sapos ou Henrique-de-Ferro" (nº 1, Der Froschkönig oder der eiserne
Heinrich), "Os Sete Corvos" (nº 25, Die sieben Raben) e
"Branquinha de Neve e Rubra Rosa" (nº 161, Schneeweisschen und
Rosenrot). Há, contudo, uma inegável coincidência temática entre umas e outras
narrativas.
Outros temas populares na mitologia clássica, como o incesto ou o filicídio,
estão igualmente presentes nos contos de Grimm, tendo mesmo sido, como
assinalámos, objecto de reformulação e eventual censura aquando da sua recolha,
por se considerarem inadequados ao público infantil radicado na burguesia
oitocentista. Mas nem tudo foi expurgado (Tatar, 1987; idem, 1999; Zipes,
2000). Seja como for, se o incesto dá consistência aos mitos de Édipo, Pelopeia
e Harpálice, para citar apenas alguns exemplos, o filicídio justifica grande
parte da celebridade do mito de Medeia[12]. Ora é pois o incesto e o filicídio
que se insinuam no conto "Os Doze Irmãos" (nº 9, Die zwölf Brüder),
enquanto o conto "A Menina sem Mãos" (nº 31, Das Mådchen ohne
Hånde) revisita igualmente o problema da relação amorosa entre um pai e uma
filha, em que a violência assume contornos que permitem recordar a narrativa de
Filomela e Procne[13]. A demanda do herói, outro motivo estrutural dos
"contos de fadas" e que se reconhece no "Conto do Rapaz que
partiu para aprender a ter medo" (nº 4, Mårchen von einem, der auszog,
das Fürchten zu lernen), constitui um dos tópicos que dão sentido a ciclos
mitológicos como os de Jasão, Ulisses, Héracles ou Teseu. O mesmo tipo de
raciocínio pode ser feito a propósito de "O alfaiatinho valente"
(nº 20, Das tapfere Schneiderlein), cujo enredo gira em torno do eterno tópico
da astúcia do pequeno contra a força do grande e que se reconhece, por exemplo,
na narrativa homérica de Ulisses e o ciclope e, em contexto bíblico, na de
David e Golias (Od. 9.187-566; 1Sm 17,12-58). Variante desse conto é "O
gigante e o alfaiate" (nº 183, Der Riese und der Schneider), cujo final
é, porém, distinto.
O caminho do labirinto, um dos mais célebres motivos da mitologia grega,
presente no mito de Teseu e o Minotauro, pode ser reconhecido nos contos
"Joãozinho e Margarida" (nº 15, Hånsel und Grethel) e "A casa
da floresta" (nº 169, Das Waldhaus). E a cegueira, tema maior dos mitos
de Édipo e Tirésias, aparece no conto "Rapúncia" (nº 12, Rapunzel).
A velha de que a rainha-madrasta de "Branca de Neve" (nº 53,
Schneewittchen) se disfarça recorda o estratagema de Deméter na corte de
Metanira (Hino Homérico a Deméter101-280). O motivo da roupa envenenada, que
podemos encontrar nos mitos de Dejanira e de Medeia (Sófocles, Traquínias,
passim; Eurípides, Medeia962-1230), está presente no conto "João
Fiel" (nº 6, Der treue Johannes). E até mesmo aquele que é talvez o tema
mais universalmente reconhecido nos "contos de fadas" ' a madrasta
(que curiosamente parece não estar presente em versões mais antigas de muitos
daqueles que hoje o tratam, visto que, em muitos casos, o papel posteriormente
desempenhado pela madrasta seria antes interpretado pela própria mãe; Tatar,
1987: 137-155) ' surgia já em vários dos textos do corpusmitológico greco-
romano. Assim, tal como a madrasta é co-protagonista de histórias como as de
"Irmãozinho e irmãzinha" (nº 11, Brüderchen und Schwesterchen), da
"Gata Borralheira" (nº 21, Aschenputtel), de "A
Adivinha" (nº 22, Das Råtsel), de "A Mãe Holle" (nº 24, Frau
Holle) e de "Branca de Neve" (nº 53, Schneewittchen), é também
figura de proa nos mitos de Fedra, Ino, Creúsa, Penélope e, claro, Hera[14]. De
certo modo associado a este tópico está o da figura da mulher ambiciosa, que se
reconhece por exemplo no conto "O pescador e a sua mulher" (nº 19,
Von dem Fischer un syner Fru [sic, grafia devida à utilização do dialecto da
Pomerânia ou Plattdeutsch]), em que a personagem feminina parece recuperar
contornos de figuras como Eva e Tanaquil[15]. O motivo das Meras ou Parcas,
figuras que na mitologia greco-romana personificavam o destino de cada ser
humano, parece ser aquele que subjaze às três fiadeiras que dão título ao conto
catalogado com o número 14 (Die drei Spinnerinnen).
Alguns contos não se limitam a incluir "simples" motivos ou
mitemas. A sua estrutura parece assentar toda ela em versões greco-romanas de
mitos ou narrativas a eles associadas. Assim acontece com "A Filha de
Maria" (nº 3, Marienkind). Neste conto, a Virgem Maria aparece a um
lenhador pobre e trata de levar consigo para o céu, eventual metáfora da morte
da criança, a filha do homem. Tempo depois, e na sequência de uma
"vida" uraniana feliz para a rapariga, Maria ausenta-se não sem
antes entregar as chaves das treze portas do reino dos céus à criança. Maria
recomenda-lhe, porém, que nunca abra a 13ª porta, sob pena de a infelicidade se
apoderar da jovem. A criança anui mas não resiste à curiosidade de saber o que
se esconde atrás da referida porta celestial. Assim, depois de ter
inspeccionado os compartimentos correspondentes às doze primeiras portas, onde
descobre cada um dos doze apóstolos, a rapariga decide abrir a porta proibida
para deparar com o esplendor da Trindade, acabando contaminada pelo ouro que
dela emana. Aterrorizada, a jovem decide fechar a porta mas a Virgem Maria
acaba por descobrir o acto de desobediência, expulsando a rapariga para a
Terra, onde passa a ter uma vida miserável. Aí, será descoberta por um rei que
a desposa e de quem terá três filhos, que serão sucessivamente levados para o
céu, pela Virgem, como punição, por não confessar a rebeldia. Por fim, e depois
de ser mesmo acusada de bruxaria, a agora rainha acabará por ceder, reconhecer
e confessar a desobediência, redimindo a sua falta.
Aquando da sua recolha, os Grimm detectaram nesta narrativa, claramente
influenciada pelo maravilhoso do cristianismo popular, as mais variadas
temáticas. Mas não referiram outras que reconhecemos serem comuns à mitologia
grega. Designadamente, o motivo de Sémele fulminada pelo esplendor de Zeus e,
sobretudo, o de Pandora, que acaba por ser comum ao de Eva, da tradição hebreo-
judaica[16]. A curiosidade de uma mulher por um objecto/assunto tabu ou
proibido é o elo comum a todas essas narrativas. Com efeito, o facto de os
casos de Pandora e Eva se associarem aos "momentos" ou etapas da
criação poderá legitimar o rótulo de mito a essas narrativas, enquanto o
Mårchencitado não contém essa ligação para alguns necessária. Há antes um tom
moralista-cristão que se pode vislumbrar na frase final do texto grimmiano:
"Quem se arrepende dos seus pecados e os confessa é perdoado"
(Bairos I, 2012: 65). Mas parece-nos evidente que existe uma comunhão de
motivos entre as narrativas citadas, deixando pouco clara a diferença entre um
suposto mito e um suposto Mårchen. E o mesmo é válido para outros contos, como
os de "João Fiel" (nº 6, Der treue Johannes) e de "Barba
Azul" (nº 9 Ap., Blaubart[17]).
Também o conto "O lobo e os sete cabritinhos" (nº 5, Der Wolf und
die sieben jungen Geisslein), no qual um lobo engole seis cabritos que são
salvos de dentro da barriga do animal pela mãe-cabra, que substitui os filhotes
por pedras, recupera o tema de Zeus e Crono, narrado por Hesíodo, em que os
irmãos do deus do trovão são regurgitados do interior do progenitor e salvos e
em que se reconhece igualmente o estratagema da substituição por uma pedra
(Hesíodo, Teogonia 481-506). Mas lembra também o mito de Psâmate, a nereide que
se uniu a Éaco e deu à luz Foco e que, para vingar a morte do filho, enviou
contra os rebanhos de um dos assassinos um lobo, que acabou transformado em
pedra (Ovídio, Metamorfoses 11.365-406).
Já o Mårchenconhecido como "As três folhas da serpente" (nº 16, Die
drei Schlangenblåtter) parece recuperar uma antiga narrativa grega, segundo a
qual um cretense de nome Poliido fora incumbido de ressuscitar Glauco, um filho
de Minos, morto por afogamento num recinto cheio de mel. Segundo esta tradição,
Minos, crendo que Poliido seria capaz de devolver Glauco à vida, encerrou-o com
o cadáver do príncipe. É então que Poliido vê entrar no compartimento uma
serpente que se dirigia para o cadáver. Temendo que o animal devorasse o morto,
Poliido tê-la-ia matado. Mas, logo de seguida, apareceu uma segunda serpente
que usou uma erva para ressuscitar a primeira. Poliido apoderou-se então da
planta, esfregou-a em Glauco e o filho de Minos ressuscitou (Apolodoro,
Biblioteca 3.3). O conteúdo ou mitema de base desta narrativa é praticamente
coincidente com o que lemos no conto registado pelos Grimm, no qual um homem
devolve a vida à esposa depois de assistir à forma como uma serpente ressuscita
uma outra que entrara no túmulo da mulher. Não será, por isso mesmo, de excluir
a possibilidade de existir uma fonte comum algures no seu processo de
composição destas narrativas. Aliás, os próprios Grimm se aperceberam da
presença do tema[18].
No conto "Rapúncia" (nº 12, Rapunzel), é o tema de Dánae, enquanto
jovem encerrada num compartimento, que se percebe (Apolodoro, Biblioteca 2.4) e
em "A Adivinha" (nº 22, Das Råtsel) não podemos deixar de recordar
o mito de Édipo e a Esfinge (Apolodoro, Biblioteca 3.5.8). O certame evocado
neste mesmo conto, como aquele que se pode ler em "O osso cantante"
(nº 28, Der singende Knochen), evoca o que conhecemos do mito de Hipodamia
(Píndaro, Olímpica1.67-90) ou até mesmo nos de Helena e Penélope, enquanto
nubentes disputadas por pretendentes. A presença do javali no início do conto
"O osso cantante" recorda ainda um dos trabalhos de Héracles bem
como o mito de Meleagro (Apolodoro, Biblioteca 5.4; Ilíada9.529-549).
Um único conto pode incluir vários motivos comuns aos de narrativas mitológicas
ou associadas a mitos greco-romanos. Assim, em "O Diabo com os três
cabelos dourados" (nº 29, Der Teufel mit den drei goldenen Haaren),
encontramos os temas da criança enjeitada, como Édipo ou Rómulo e Remo
(Sófocles, Rei Édipo; Apolodoro, Biblioteca 3.5.7; Plutarco, Rómulo 2-4); de
Belerofonte, portador da mensagem maldita (Ilíada6.155-226); do cumprimento do
destino, como aquele que se reconhece na narrativa de Édipo (Sófocles, Rei
Édipo); de Caronte, o barqueiro do mundo dos mortos (Vergílio, Eneida6.299-
310); e toda uma estrutura que se assemelha a uma viagem iniciática em que a
catábase infernal assume o papel central.
Como se verifica, temáticas e estruturas interrelacionam-se, além de se
multiplicarem dentro de cada um dos géneros per se[19], e não estão
simplesmente associadas a um conceito ou a outro. Algumas foram mesmo
reconhecidas logo pelos Grimm, em comentários e apêndices, como podemos
verificar na recente reedição da obra.
Assim, o que parece ser mito num contexto é aparentemente conto num outro e
vice-versa. Como distinguir estes elementos? Através da função cultural, social
ou religiosa? Da estrutura? Do significado ou do sentido? Da originalidade? Não
é demais salientar que algum do material que integra o corpus literário greco-
romano é considerado por vários investigadores como narrativas mais próximas
dos Mårchendo que dos mitos. Não é, por isso, impossível que haja eventuais
abusos na forma como alguns desses textos ou narrativas são classificados e
tratados. O referido estudo de G. Anderson mostra-o bem, destacando, em
particular, até os processos de transmissão e o papel dos agentes da mesma, que
não estariam muito longe dos que se reconhecem posteriormente (cf. Zipes,
1994). Já o referimos a propósito das Metamorfosesde Ovídio e no Satyricon,
e.g., encontramos narrativas que serão sem dúvida classificadas como Mårchen e
não como mitos (e.g. Petrónio, Satyricon62) e uma das mais célebres histórias
que o Mundo Antigo nos legou, "Eros e Psique", enquadra-se mais no
âmbito do conto maravilhoso, com todas as características que lhes
reconhecemos, do que no do mito. Até mesmo a forma como é exposto e o lugar que
ocupa na narrativa de Apuleio que o reproduz apontam para tal (Teixeira, 2000:
67-83). O que não obsta a que, muitas vezes, se lhe refiram como
"mito". Com efeito, aí trata-se de divindades, designadamente os
deuses do amor, Eros e Afrodite. Assim sendo, não estaremos também, por isso
mesmo, perante um mito? Por outro lado, Propp estudou a narrativa de Édipo,
tida por muitos como indubitavelmente um mito (e.g.Fialho, 2010: 9-13; Burkert,
1979: 22), e analisou-a à luz da metodologia que utilizou para o conto, como se
de um se tratasse, confirmando esta intersemântica (Propp, [s.d.]: 115-175;
idem, 2003). A problemática é por conseguinte bem complexa. Como salientámos,
talvez na Antiguidade mythosfosse algo bem mais abrangente. Recordamos que as
fábulas de Esopo registam o termo sistematicamente[20].
Não podemos senão concluir com G. Anderson que "the attempts to
distinguish myth from folktale in current usage are a methodological
nightmare" (Andersen, 2006: 68) e que o debate continua e que a análise
se mantém em aberto.