O Estado e a Cultura: coisas de que os homens (não) falam
1. Num texto admirável, “Estas Coisas de que os Homens Falam”,[1] Fernando Gil
fala-nos, com a acústica inconfundível do seu pensamento, da importância das
mediações e do modo como estas, nalguns casos, como aconteceu em 1997 com a
morte da princesa Diana de Gales, podem dar origem a uma “eficácia da
compaixão”. Estaríamos assim perante uma ideia que se torna sensível graças a
uma imagem (ou a uma sucessão de imagens) e que acaba, no limite, por se con-
fundir com a própria ideia que a tornou sensível. Quer dizer nós não teríamos
já imagens da piedade, mas sentaríamos a piedade por causa das imagens.
Apresentando dois breves exemplos: o retrato de Lewis Pane, um condenado à
morte que exibe um rosto de uma serenidade difusa, resistente e inquietante, na
fotografia de Alexander Gardener, de 1865 comentada primeiro por Barthes e
depois Rancière (1) Ou, bem mais recentemente, a fotografia de Kevin Cárter
(1993) que a redundância das mediatizações glorificou, ao acentuar a dupla
tragédia que a caracteriza: a pequena criança moribunda, no deserto do Sudão,
dobrada sobre si e uma ave de rapina a escassos metros. Entre a moral da
estória (o fotógrafo vencedor de um prestigiadíssimo prémio acabou por se
suicidar) e uma História sem moral (a indiferença do olhar coletivo perante o
espetáculo catastrófico do mundo a ruir, tal como uma linguagem que se
desmorona), abre-se a brecha da compaixão.
É muito difícil manifestarmos interesse pelas coisas relativamente às quais não
dispomos de mediação, pois essa é a condição (como esclarece Fernando Gil) para
elas pertencerem às nossas vidas, tornarem-se próximas e partilháveis, e assim
serem comparadas a “pontes” entre a existência individual e o que nos é
“contado”. Para que alguma coisa faça parte de mim eu tenho que a ir buscar sob
a forma de narrativa. A esfera da proximidade produz os seus efeitos, um dos
mais importantes é a apropriação que se manifesta pela vontade de citar. Como,
por exemplo, acontece agora com esta proposição da Ética de Espinosa: “Os
homens podem diferir em natureza, na medida em que são dominados por afeções
que são paixões; e, ainda nessa mesma medida, um só e o mesmo homem é variável
e inconstante”.[2]
Esta diferença e a alteridade relativa a cada um, não explica apenas pequenos
ou grandes desvios de humor, como o prazer ou o sofrimento provocado pelas
imagens e pelo nível de conhecimento individual com que as encaramos. Pois como
salienta o filósofo, na demonstração da sua proposição, “há tantas espécies de
cada afeção, quantas são as espécies de objetos pelos quais somos afetados”.
Não é a nossa natureza que explica o que nos acontece, mas a natureza das
coisas externas combinadas (“em “composição”) com a natureza de cada um.
Do mesmo modo, a apropriação de uma ideia por uma imagem, levaria à
transformação de uma coisa interna numa coisa externa, logo visível, propícia à
mediação e, nessa medida, capaz de produzir um sentido pessoal, garantir uma
atribuição de significado que se torne ação e não contemplação. Desse agir faz
parte a esperança redentora (que Fernando Gil evoca como uma espécie de
condição pós-trágica). A nossa possibilidade redentora passaria então, na minha
hipótese, por uma ética das imagens.
Aristóteles, na Poética (1450a), observa que o pensamento e o caráter são as
duas causas das ações. O enredo é a “imitação” de uma ação. A mediação
proporciona enredos, imita ações, substituías por ficções. Pensar a compaixão é
assim ter compaixão, o que equivaleria a deixar-nos numa situação de imagem.
Imaginarmo-nos naquela imagem.
Perante os filmes, as fotografias, as televisões e os ecrãs em geral, o homem
contemporâneo experimenta agora uma orfandade essencial, algo talvez comparável
a um vazio psicanalítico em relação às origens. Por isso é que o texto de
Fernando Gil, ao ser suscitado pelo tema dos milenarismos, recentra a cultura
na dificuldade em lidar com o desfasamento “perturbante, tanto maior quanto
mais longe se está dos centros da modernidade, entre a contextualização tribal
no imediato e a universalidade abstrata da globalização” (Gil, 1998: 313).
Passar pela imagem, ou pelo objeto artístico, em vez de a transportar em nós,
equivale à incapacidade de fazer da imagem passado. Aí reside em grande parte o
drama de uma atual orfandade das origens. Ou como constata Godard a propósito
da televisão, estamos cercados pela produção de esquecimento. O pensamento está
ameaçado pela indiferença. Sem lugar ao enredo, sem lugar à imitação
aristotélica, a imagem torna-se fraudulenta. Deparamos com o contrário da
imagem intolerável de que nos fala Rancière. Fora do jogo da culpabilidade e do
testemunho a imagem desliga-se do vestígio.[3] Ao perder a ligação àquilo que a
tornava de facto intolerável, fosse o sublime ou o sofrimento, a imagem aliena-
se. Inviabiliza qualquer tipo de eficácia, pois deixa de haver lugar ao “amor”
no quadro da relação estética. Não nos referimos aqui aos fragmentos de um
discurso sobre o amor (Barthes), compatível com a reconfiguração do “eu”
suscitada pelos atributos do Romantismo e pela vertigem de uma enciclopédia
pessoal, mas ao excesso, tal como Espinosa o enuncia na sua proposição XLIV da
Ética, livro III: “ O amor e o desejo podem ter excesso”. [4]
A dimensão estética, o lugar da arte, corre hoje um sério risco de se (deixar)
ficar no imediato da contextualização tribal, e dispor-se a uma amplificação
mediática que apenas lhe acentua os contornos, que a torna folclórica,
hedonista, que a banaliza baralhando a indistinção Pop entre a cópia e o
original, ele próprio já de si uma réplica, na prateleira de um qualquer
supermercado.
Portugal tende a torna-se num lugar de passagem (e de emigração, como agora se
volta a dizer), em vez de ser um destino (tal como poderíamos entender o país,
à maneira de Eduardo Lourenço). Em discursos recentes sobre este “país navio”
perpassa por vezes o fantasma de uma encarnação do mal à qual, recorrendo a uma
metáfora pessoana, só um super Camões seria capaz de fazer frente. “Tanto
Camões como Pessoa – escrevia Jacinto do Prado Coelho – cantores da pátria, são
poetas da ausência. Poetas do que foi ou do que poderá vir a ser” (Coelho,
1978:308). Conter essa tendência para nos encontrarmos num local de passagem,
(em vez de sermos passageiros de uma longa viagem, como já o soubemos ser)
implica, em termos culturais, a valorização ética do que em nós é origem e
genialidade. Paradigma de um gesto artístico fundador, por outros identificado
e vivenciado. O cinema de Manoel de Oliveira ou de Pedro Costa, a arquitetura
de Siza ou de Souto Moura, alguma da nossa literatura (de Agustina a Saramago,
de Vasco Graça Moura a Herberto Hélder), são disso mesmo exemplo.
2. Nas duas últimas décadas a promoção dos nossos valores culturais tem sido
fomentada, sobretudo a partir de duas conceções políticas. Uma, de feição
tecnocrática, assente numa perspetiva redutora de gestão das artes, limita-se a
fazer destas objeto de curiosidade turística mais ou menos espalhafatosa. Com
frequência, os resultados decorrentes deste entendimento traduzem-se numa
espécie de sacralização da representação (mediática) do objeto artístico,
fundada numa obsessão demagógica por estatísticas, quantidade de exibições,
respostas dos públicos.
A outra (que não é inconciliável com a anterior) consiste numa euforia
ideológica, monopolizadora da administração simbólica da Cultura em nome de
supostos grandes valores da tradição da esquerda europeia, que na prática
procuram impor um consenso totalitário, logo negação da instabilidade utópica
que George Steiner tanto valoriza quando diz que “a esperança é a gramática”
(Steiner, 2001:106).
A gramática utópica das linguagens artísticas articula espaços improváveis de
um futuro que se desloca já no presente através de uma “cartografia do
desconhecido” (Steiner). É esse desconhecido que verdadeiramente importa. Só
ele traz essa condição da Estética contemporânea onde a arte implica a
realidade, reclamando-a como uma matéria prima, para melhor nos poder falar,
sempre de um mundo deslocado, de uma universalidade em crise de representação,
de uma entidade ontológica de novo no encalço do seu imaginário individual.
Esta esperança na arte, não depende em primeira instância de programas de apoio
governamentais, nem de diretrizes de partidos que promovem a criação como
veículo doutrinário e exibem os autores como troféus nas cíclicas disputas
eleitorais. Depende antes de mais da conjugação entre educação e vontade de
poder ( Nietzsche).
A este propósito, valeria a pena examinar os argumentos que pretendem
justificar o modelo civilizacional da chamada “democratização cultural”. Embora
esta se exiba cada vez mais como equívoco. Um equívoco, alimentado pelo Estado
e por boa parte dos interesses institucionais privados na Cultura. No que toca
às artes plásticas, observe-se, por exemplo, a moribunda “Fundação Elipse” com
ligações ao Banco Privado de João Rendeiro ou a cedência da coleção Berardo ao
Estado via Centro Cultural de Belém (CCB),[5] com toda a lógica de dependências
e clientelas daí decorrentes, ambas realidades típicas de uma falácia animada
por interesses especulativos. Estes, nada tem a ver com sinalização de
instrumentos simbólicos que permitam encadear histórias e a sua duplicidade, na
esteira do que Godard designa como a “fraternidade das metáforas”, e que
convoca cada um na diversidade e inconstância das suas paixões a aproximar-se
de si, e, tanto quanto possível de outros.
Em vez disso, o que temos é a substituição da emoção estética - e do trabalho
de solidão que esta exige, afinal a base da mundividência comum ao gesto
artístico e à fruição hermenêutica -, pela decoração cosmopolita, pela
instantaneidade de formas de estar em vez da insistência em formas permanecer.
O espectador, o visitante, o leitor, tropeça com frequência na trivialidade do
objeto artístico, mascarado por um protocolo de dignidade (a sala do museu, o
auditório ou festival onde se exibe o filme, a sala de teatro onde a
performance decorre), em vez de participar na construção intelectual necessária
para que o acontecimento artístico seja apreendido na sua enigmática
genealogia. Em suma, confundir a promoção da cultura com a promoção das
instituições culturais é um erro enorme, mas talvez sem correção possível.
A discussão promovida pela agenda jornalística relativa ao facto da Cultura
dever, ou não dever ser tutelada por um ministério, constitui um bom exemplo
desta artificialidade. Curiosamente, em 2002 aquando da campanha para as
legislativas, os dois principais partidos que alternam a presidência dos
sucessivos governos concordavam que devia ser um ministério a tutelar a
cultura. As razões eram diversas (e não podemos entrar agora na sua análise
detalhada), porém os motivos apontados na ocasião pelo PSD eram basicamente os
seguintes: “a cultura deve um ministério não tanto por uma questão de
operacionalidade (...) mas por uma questão de dignidade” (fórmula que na
recente campanha não foi oficialmente equacionada). Esta mesma tese acabou por
ser agora veementemente defendida por alguns “especialistas” (conotados com a
esquerda designadamente em declarações ao diário “Público” por ocasião da
campanha eleitoral de para as eleições legislativas de junho de 2011).
Diferente era a posição do economista Augusto Mateus, personalidade de grande
notoriedade na área socialista e principal responsável por um marcante
relatório sobre o setor cultural e criativo em Portugal.[6]
Face a esta diversidade de questões, filosóficas e sociais, em que ficámos?
Na exposição apresentada pelo Museu de Arte Contemporânea de Serralves, “Às
Artes Cidadãos, [7] protagonizada por artistas nascidos depois de 1961, ano em
que surgiu o Muro de Berlim, via-se uma peça do coletivo Claire Fontaine: um
néon, (que podia ser observado junto a um dos muros do parque que envolve o
museu) com a frase Capitalism Kills Love. A peça funcionava como símbolo de um
gesto artístico e a sua ambiguidade textual remetia para um amor assassinado,
e/ou para o amor como assinatura, a selar uma declaração contra o capitalismo
porventura mortal. Em qualquer das hipóteses trata-se de trazer ao quotidiano
de uma realidade urbana (neste caso o Porto), com as suas aparências e
contradições, a ilusão de uma frase irredutível.
Serve este exemplo para situar o papel do Estado na Cultura, caso seja aceite a
metáfora aqui proposta: o ministério (a instância política) deve escolher entre
o “capitalismo” e o “amor”, ou deve, como muitos entendem que devia ser, deixar
essa escolha para “os cidadãos” (os verdadeiros entes políticos)? E nesse caso
não serão os “cidadãos” (isto é, os espectadores) essa terceira instância, onde
um mal estar se instalada pelo diferendo entre o ato de assistir (participar no
espetáculo) e a atitude emancipadora de olhar para ele. Em suma, a dignidade
encontra-se em primeiro lugar na criação, e só depois nas instituições que a
devem servir, sem subserviência nem dirigismo.
Um ministério podia ser útil se, em vez de uma atividade voltada para os
programas de atribuição de subsídios, para a legitimação ritual das
organizações que atribuem prémios, para o exercício do poder de escolher quem o
representa nas fundações, para o estabelecimento de uma rede interna de
pequenos poderes, (que vai da nomeação dos diretores gerais ao diretores
artísticos, e por aí fora), começasse, isso sim, por concretizar uma estratégia
coerente e credível de preservação dos patrimónios e de estímulo à difusão e
circulação plural da criação artística contemporânea. O desafio às políticas
culturais no caso de um país como Portugal passa por fazer delas um instrumento
de irradiação, uma plataforma de permutas, uma garantia de pluralidade
esteticamente exigente.
3. A questão da promoção da cultura não pode ser equacionada a partir de um
lugar exterior, falsamente utópico e falsamente político, que seria
supostamente o espaço técnico da administração da arte pelos especialistas.
Desde a década de 90 do século passado que a cultura experimenta uma espécie de
limite histórico do qual decorre o desconforto terrível de se lhe aplicarem
modelos (de leitura, de difusão, de codificação) que já não correspondem à
experiência que dela é feita. Um dos sintomas mais interessantes disso mesmo
consiste na sua utilização como meio de diagnóstico para uma crise
civilizacional que, sabemo-lo agora, se tornou muito mais grave e assustadora
do que se podia imaginar há uma dúzia de anos atrás. Neste momento temos a
certeza, parafraseando Herman Hesse (pela via de uma sedutora epígrafe de
Eduardo Lourenço), não existir “em parte alguma uma unidade, um centro, um
ponto à volta do qual a roda gire”.
Esta perda de unidade é, em primeiro lugar a perda de unidade da cultura como
sistema que permitia conectar saberes e disciplinas e organizar uma espécie de
entretenimento erudito que, consoante fosse socialmente alargado, melhor
garantia uma dinâmica de progresso e qualificação. Oscilando entre o consumo e
a melancolia o sujeito culto da atualidade parece relegado à situação
minoritária de um gosto excedentário.
Mas a ausência de um centro, a desmultiplicação de géneros, a homogeneização
das atitudes estéticas, a par de um domínio cada vez maior da economia pela
cultura, tem como principal consequência uma perda de autonomia que passa em
muitos casos a fazer parte do fenómeno artístico, o qual é sempre uma crítica
da linguagem, e por consequência do sujeito.
No âmbito da já aqui mencionada exposição “Às artes, cidadãos!” a realizadora
de cinema Hito Steyerl faz uma constatação que corrobora perfeitamente esta
ideia, ao afirmar que “com exceção do trabalho doméstico e de assistência, a
arte é a indústria com o maior número de trabalhadores sem salário”.[8] Claro
que a arte contemporânea também se alimenta de “migalhas de uma redistribuição”
que opera a partir das “grandes refinarias” da cultura, esse petróleo em
deflação, exemplificadas nos mega-museus globais, espécie de Guggenheim
planetário. Esta situação, praticamente impensável nos gloriosos anos 80, é ela
própria uma consequência da banalização artística e de uma diluição da estética
na antropologia urbana. Depois de ter sido um sistema hierarquizado no
classicismo, a arte deu lugar a todas as indefinições e fez dessa uma das suas
principais qualidades distintivas. As outras duas seriam manter a prerrogativa
sobre a ficção (o que já deixou ser completamente verdade) e elaborar uma
ontologia do imaginário (no sentido de possibilitar a identificação individual
equivalente ao que na conceção freudiana remete para uma relação de semelhança
relativa à que ocorre com o sonho). A arte como se fosse a vida.
Face a esta última anotação, e na moldura sociológica atual, a promoção da
cultura fica restrita a uma lógica de mercado. Não basta “comprar”. É também
necessário saber o que fazer com os bens (neste caso culturais) que se
consomem. Até porque o contágio nocivo do termo promoção, associado a toda uma
gama de descontos, saldos e feiras, com os media a cobrirem a celebração pelas
minorias ideológicas dos grandes acontecimentos oferecidos às maiorias
sociológicas, só pode ter um desfecho: a desvalorização do sujeito. Ou, como
escreve Eduardo Lourenço (1988:61), ao analisar o nosso desacerto com a Europa,
ou o desacerto dela connosco, “ a Cultura é o sujeito como realidade”. Aquilo a
que assistimos hoje é à perda da razão iluminista, qual ferida narcísica, que
só pode suturada pelo regresso ao texto, a cada um dos textos, tomados
subjetivamente por necessários. Nesse caso, os homens falariam talvez de outras
coisas e a compaixão podia, finalmente, desembaciar as imagens.