No centenário do nascimento de Paul Ricur: a memória como espaço de
experiência e horizonte de espera
RÉSUMÉ
Paul Ricur, né il y a 100ans, est un des grand philosophes dont l'histoire de
la philosophie a gardé mémoire. Pour lui rendre hommage, nous avons écrit ce
petit article qui a comme thème configurateur la mémoire. Comme un grand
artiste, constructeur de ponts, comme de possibilités, le sujet est traité par
le biais d sa phénoménologie herméneutique. Le pouvoir se souvenir est une
possibilité de plus de l'homme capable. Dans ce jeux, la mémoire individuelle e
collective sont enchevêtrées, étant le témoignage le point de passage. L'auteur
soutient la thèse que le jeu de mémoire en toute sa radicalité se joue
paradoxalement dans les structures d'altérité e médiation constitutives de
l'ipséité. C'est à travers de la fonction narrative que la mémoire est
incorporée à la constitution de l'identité. Le devoir de mémoire met l'histoire
dans le sens du futur e se prend vraiment comme une tache éthique.
Mot-clés: mémoire heureuse; mémoire collective; communauté.
Seja o teu rosto
O brasão da casa,
A alegria, o mosto
Na aflição, a asa
Sejam os traços
Do teu nome em fuga
O rebento, o laço
Com o sol, a uva
Dá à nossa vida
A graça de ser
No corpo em partida
Tendas de acolher
E que ouçamos vir
O teu dia, o som
De paisagens verdes,
Promessas do Dom
(José Augusto Mourão, O Nome e a Forma)
Introdução
Celebramos este ano de 2013 o centenário do nascimento de Paul Ricoeur. Um
acontecimento que merece ser festejado embora o mesmo, nas obras finais da sua
vida, se mostre reticente face ao excesso de comemorações em que a nossa época
se tornou fértil. As mesmas procuram disfarçar o que o autor identifica como
uma certa fragilidade da identidade.
O nascimento é o evento primordial de cada ser humano, que se manifesta como
uma vinda e o coloca no paradoxo primordial da existência. É o acontecimento
fundamental do qual não guardamos memória, isto é, pelo menos não o conseguimos
recordar. Estávamos lá, sem lá estar. Mas outros estavam ali por nós, para nos
acolher, mostrando não apenas que não somos a origem de nós próprios, mas que
nascemos no berço de uma alteridade constitutiva, dita em forma narrativa.
Somos os protagonistas desta história que os outros e a sociedade escreveram
também connosco.
Pensamos que seria apropriado escrever um pequeno ensaio acerca da comemoração
do centenário de Paul Ricoeur, recordando a sua memória, através de um dos
livros que nos deixou: La mémoire, l'histoire, l'oubli. Deixemos os dois
termos finais, para nos concentrarmos no primeiro. O nosso propósito é
dissertar acerca da memória que nos legou este grande filósofo evocando a
própria fenomenologia hermenêutica desenvolvida pelo autor, nesta tríade
distinta, mas não distante, que se cruza e entrecruza mutuamente ao nível quer
da mnésis, quer da práxis.
Estão lançados na mesa os três elementos sobre os quais o nosso texto versará:
a comemoração, a memória e o rememorar. O primeiro desafio está em procurar
demonstrar que a memória e o ato de rememorar são uma questão privada, mas
também um ato de pertença que convoca não só a comunidade no seu todo, como
também os outros em particular. Seguidamente, a memória reclama um sujeito,
quer individual, quer coletivo, declinando-se quer no eu singular, quer no nós
plural. Por isso, a mesma equaciona a questão de uma identidade, que se move no
tempo e da qual o recordar é o garante, pois, como diz a canção, recordar é
viver, isto é, recordar faz-nos viver e o homem não pode viver sem recordar.
Esta identidade está no centro do sujeito capaz, a quem a memória e o recordar
não paralisa, mas cujo trabalho de rememoração capacita para a ação.
Assim, num primeiro ponto, equacionaremos os dois polos, memória e identidade e
as relações que os dois conceitos estabelecem entre si, ligados à problemática
ricoeuriana da fenomenologia do homem capaz. Depois analisaremos a tríade:
memória ' rememoração ' comemoração, que o autor olha numa perspetiva de
caráter individual e comunitário e mostraremos que o ponto de encontro entre as
duas perspetivas está na alteridade, isto é, no outro a que podemos chamar
pessoa e no outro a que chamamos linguagem e comunicação.
Finalmente, evocaremos o binómio memória-história, mostrando que a fidelidade
ao passado, unida ao presente pelo testemunho, se projeta no dever de guarda
deste depósito vivo, que no instante do presente já passado solicita a
densidade do tempo e antecipa a possibilidade de uma memória feliz.
1. Uma questão a trabalhar
Os primeiros escritos de Paul Ricoeur sobre esta problemática remontam ao tempo
do seu ensaio Histoire et vérité, publicado em 1955. Nessa época, o autor
confessa que tinha deixado, para segundo plano, a problemática da memória.
Quando o autor regressou novamente à questão da históriacomoprojeto de verdade,
apareceu novamente a temática da memória, dado que se nós não tivéssemos
memória, não saberíamos nada acerca do que significa a palavra passado'
(Ricoeur, 2000: 4). Assim, apesar de todas as debilidades, a memória é o nosso
único acesso ao que uma vez foi e que agora deixou de ser. Esta seria uma das
primeiras razões de interesse pelo tema.
Uma outra, de caráter ético-político, vem reforçar a precedente. Além da
importância do binómio memória-história, os acontecimentos trágicos do século
XX, duas guerras mundiais, os múltiplos genocídios, principalmente a Shoah,
colocam-nos diante da violência e do trágico da ação. Diante dos mesmos, temos
não apenas o dever ético de memória, como também a obrigação moral de os não
esquecer.
Assim, o enfoque que orientará este ensaio, a título meramente exploratório, de
um tema tão vasto e complexo quando este, será a tríade memória ' rememoração '
comemoração. E, no coração desta problemática, existe um entrelaçar entre a
experiência viva e o trabalho da linguagem que coloca a fenomenologia no
caminho da interpretação, ou seja, da hermenêutica (Idem 29).
1.1. Ser capaz de recordar
Para desenvolver esta problemática, Ricoeur recorre à fenomenologia do eu posso
desenvolvida nos vários estudos de Soi-même comme un autre: eu posso falar
(estudos I e II), eu posso agir (estudos III e IV), eu posso narrar (estudos V
e VI). Da mesma forma que eu posso falar, agir e narrar e ser imputado como o
verdadeiro autor dos atos (Ricoeur, 2004: 170-171; 1990: 28), também eu posso
recordar-me.
Encontrámos inicialmente as capacidades corporais e todas as modalidades do eu
posso desenvolvidas na sua própria fenomenologia do homem capaz: poder
falar, poder intervir no curso das coisas, poder narrar, poder ser imputado de
uma ação da qual se é o verdadeiro autor (Ricoeur, 2000: 32). A memória é,
assim, mais uma possibilidade e deve ser acrescentada às atribuições do homem
capaz. Logo, estabelece-se uma ponte entre o homem capaz e os estudos de Soi-
même comme un autre e a questão da memória e da história, as quais, por sua
vez, incorporam uma terceira vertente de caráter ético-político. Ricoeur
estabelece um ponto de ancoragem entre Soi-même comme un autre publicado em
1990 e La mémoire, l'histoire, l'oubli, evocativa sobretudo do final de século
e que deu à estampa uma década depois.
Podemos, também, dizer que além da ponte que Ricoeur estabelece entre a memória
individual e coletiva, uma das características maiores deste tratado é o fundo
ético-político que não apenas Ricoeur atribui à questão da história, mas também
à dialética entre a memória e o esquecimento no foro interior e no espaço
público.
A fenomenologia da memória e do recordar entrecruza-se com a questão da
ipseidade, ou seja, da identidade pessoal, que se concretiza numa hermenêutica
da ação do homem agindo e sofrendo. A memória participa da dialética
característica de estilo indireto de uma hermenêutica do eu, ao contrário das
pretensões, neste campo, reivindicativas de uma instantaneidade do cogito. Da
mesma forma que o cogito ricoeurianoassume como característica o seu caráter
fragmentário não dissociativo, que recusa uma simplicidade indeconstrutível e
uma transparência total, também a memória, enquanto participante fundamental do
processo da identidade, se constitui no tempo nas sendas características de um
cogito ferido.
O contraponto desta fragilidade estaria na ars memoriae, verdadeiro cume da
contemplação-ação e fruto de um percurso, de uma disciplina e de uma ascese
(Idem 71). A ars memoriae visa sobretudo a superação do esquecimento e
pretende, também, furtar-se ao constrangimento que tornam a memória tributária
da mnesis das marcas (Idem 79).
1.2. Identidade/esquecimento
Existe um nexo intrínseco entre memória individual e singularidade pessoal. É
Locke que explora este vínculo íntimo entre a memória e a identidade, afirmando
que é a consciência que faz a identidade pessoal. Identidade e consciência
fazem um círculo, de modo que consciência e memória são uma só e mesma coisa
(Idem 127).
É também na questão da identidade que é preciso procurar as causas da
fragilidade da memória (Idem 98). A fragilidade da identidade deve-se a três
aspetos fundamentais: permanecer o mesmo através do tempo; a confrontação com o
outro, tida como uma ameaça; a herança de uma violência fundadora. A este
propósito, enquanto fator de integração, a ideologia seria uma réplica
simbólica tendente a minimizar as consequências de fragilidade da identidade
(Idem 99-100). Mais à frente veremos que a ideologia assume uma outra face - a
manipulação (Cf. infra 12).
O esquecimento é aquilo contra o qual é dirigido o esforço de recordação. O
esquecimento pode dizer-se de duas formas diferentes: seja o apagamento
definitivo das marcas ou vestígios, seja o impedimento provisório,
eventualmente superável, de aceder às mesmas (Idem 34). O esforço de memória
conseguido conduz-nos também aquilo que Ricoeur designa como a memória feliz
(Ibidem).
Contudo, Ricoeur está longe de concordar totalmente com as teses de Locke. O
seu cavalo de batalha é mostrar que é através da função narrativa que a
memória é incorporada à constituição da identidade (Idem 103).
2. Que espécie de memória!?
O postulado que orienta toda a exploração de Ricoeur está em Aristóteles e no
pequeno texto Parva Naturalia(449b). Aristóteles conecta a memória à
experiência do tempo através da célebre frase: a memória é do passado
(Aristóteles, 1847: 111). Só é possível recordar aquilo que está separado de
nós através da conquista da distância temporal.
Outra consideração introdutória é que aos Antigos era impensável colocar a
alternativa se a memória é a título primordial pessoal ou coletiva. Só com o
advento das ciências humanas é que a consciência coletiva se torna uma das
realidades cujo estatuto ontológico não é colocado em questão. Logo, abre-se um
espaço narrativo de atribuição, potencialmente extensivo à totalidade das
pessoas gramaticais (Ricoeur, 2000: 112-114).
2.1. Memória Individual
Os Gregos foram os primeiros a equacionar esta problemática da memória
individual, sobretudo através da questão da forma de conservação dos traços
mnésicos como uma marca material no cérebro. A problemática que verdadeiramente
interessa não é a conservação desta marca, mas a forma como nos recordamos,
isto é, como é que fazemos regressar ao presente o passado. Os Antigos
apresentaram esta marca através da célebre metáfora da impressão do selo na
cera.
Duas outras discussões levantadas também pelo pensamento dos Antigos dizem
respeito à relação entre a memória e o tempo e a memória a imaginação, pois só
existe memória quando o tempo passa e a tarefa está em como fazer ressurgir
novamente essa marca e trazê-la para o presente. A sua origem está no Teetetoe
no Sofista, onde aparece a conjugação entre eikone tupos. Se existe uma imagem,
temos de procurar não apenas o seu lugar, mas também a forma de acedermos a ela
(Idem 15). Vemos que esta e outras questões suscitaram, ao longo do tempo, um
cortejo de dificuldades não apenas à teoria da memória, mas também, por
arrasto, ao estatuto epistemológica da história.
Esta discussão acerca das marcas não fica completa sem evocar o esquecimento,
ou seja, a dificuldade ou a impossibilidade de recordar-se daquilo que já foi e
não é mais. Pois, o esquecimento acontece a dois níveis: a título definitivo,
quando os vestígios são completamente apagados; construído por nós, umas vezes
para nos reconciliarmos com o nosso passado, como no trabalho do luto, outras
vezes, como os psicanalistas o definem, como recalcamento, isto é, não é a
perda dos vestígios que está em causa, mas a vontade de os esconder ou de
impedir o seu livre acesso.
Diante deste enunciar muito simples de alguns velhos e sempre novos problemas,
Ricoeur não ignora as questões que atravessam a história da filosofia. Também
não procura resolver a disputa, quer das marcas, quer da fidelidade ao passado,
mas tão-somente enunciar duas teses: inicialmente, considerar a nossa memória
pessoal enquanto frágil e, por isso, sujeita às vicissitudes do tempo e da
história; depois, mostrar que o esforço de memória depende sempre quer das
marcas que foram deixadas, quer da capacidade de as recordar.
A partir daqui várias linhas de investigação se cruzam. A primeira é o estatuto
das próprias marcas. Pois, para Ricoeur, fiel à tradição fenomenológica
husserliana, os vestígios podem ser consideradas de duas formas, como
impressão-afeição, ou então como impressão material no cérebro. Assim, a
questão está em elucidar a relação entre a impressão cerebral e a impressão
vivida. Somos confrontados com duas leituras do corpo e da corporeidade, corpo-
objeto face ao corpo-vivido, ou seja, a passagem de um plano ontológico ao
plano semântico e linguístico. A noção fenomenológica de marca, distinta da
condição material, corporal, cortical de impressão, constrói-se sobre a base do
ser-afetado pelo acontecimento do qual é feito, após, testemunha por narração
(Idem 80).
Depois, o ato de se recordar não é encarado apenas sob a forma de uma simples
afeição, mas como uma indagação que releva de um poder procurar que nos
pertence em próprio e faz do ato de se recordar, não algo de passivo, mas uma
procura ativa (Idem 22). Deste modo, Ricoeur procura passar da célebre
metáfora, aparentemente passiva dos Gregos, da impressão deixada pelo selo, a
uma metáfora onde a acentuação está colocada na definição do saber em termos de
poder ou capacidade (Idem 11).
Em seguida, aceitando a dependência em relação às marcas passadas,
testemunhadas pela corporeidade, levanta-se a discussão acerca da fidelidade da
memória. E, a questão que se coloca prende-se com o facto de determinar o
seguinte: quando nos recordamos e fazemos ressurgir do passado no presente,
colocamos ou não os pés na mesma impressão? Dito de outro modo, quando nos
recordamos, recordamo-nos de quê?
Ao contrário, é preciso, também, considerar que temos necessidade que o passado
passe e que a nossa memória seja uma memória serena. Por isso, é tarefa do ato
de memória a reconciliação com o passado. Surge, assim, a problemática da
memória como catarse. É necessário fazer o luto de uma memória obsessiva, que
nos bloqueia num dado momento passado e nos impede de temporalizar o tempo.
Este luto consiste sobretudo em aceitar que um objeto de amor ou de ódio seja
um objeto perdido.
Uma última questão: será que em todo este trabalho, já que se trata da minha
memória, o cogito fica preso num solipsismo constrangedor, ou a própria
capacidade de rememorar convoca também outras estruturas que estão para além do
eu individual? É aqui que Ricoeur convoca o pensamento de Edward Casey que nos
fenómenos mnemónicos distingue entre in mind e beyond mind, ou seja, entre
os que se conservam na mente e os que estão para além dela. No meio destes dois
polos complementares existe aquilo a que chama de mnemonic modes, a saber:
reminding, reminiscing, recognizing, que constituem fenómenos de transição
entre o polo de reflexividade e o polo de mundanidade da memória[1].
O primeiro é uma espécie de sinal indicador contra o esquecimento, isto é,
através da associação, uma coisa faz-nos pensar numa outra e impede-nos de a
esquecer. O segundo consiste em fazer reviver o passado evocando-o em conjunto,
um ajudando o outro a fazer memória de um acontecimento. O terceiro afigura-se
como a manifestação de uma alteridade complexa, pois reconhecemos como mesma a
recordação presente e a impressão primeira visada enquanto outra. É o que
Ricoeur chama de pequeno milagre do reconhecimento pois envolve de presença a
alteridade do já passado (Idem 46-47). É a partir desta alteridade complexa
reclamada pela memória individual, que passamos ao campo da memória coletiva.
2.2. Memória coletiva
Ao nível individual, como tivemos oportunidade de constatar, as coisas não são
nada lineares. E, como Ricoeur observa, intervém, logo desde aí, um resvalar da
memória individual na direção da memória coletiva. Este deslizamento acontece
porque o ato de se recordar tem lugar através de uma pequena história interior
que nós contamos a nós mesmos, isto é, para nos recordarmos tornamo-nos os
interlocutores de nós próprios, através de uma narração, que acontece no foro
interior. A este primeiro aspeto acrescenta-se um outro. Para que essa narração
seja possível é preciso uma língua, habitualmente a nossa língua materna, ou
então uma língua de adoção. E é assim, como podemos constatar, que o elemento
social se integra numa narrativa pessoal e interior. Logo, passamos para o lado
social, público ou coletivo.
É a Agostinho que podemos atribuir a tradição do olhar interior, principalmente
aos livros X e XI das Confissões, respetivamente sobre a memória e o tempo, à
qual Ricoeur acrescenta a teses de Locke acerca da identidade e o eu
transcendental da fenomenologia de Husserl. Porém, Ricoeur socorre-se também do
pensamento de Maurice Halbwachs e da tradição do olhar exterior, que toma a
audaciosa decisão de atribuir a memória diretamente a uma entidade coletiva.
Muito rapidamente, Halbwachs defende duas teses complementares na sua obra La
mémoire collective[2]: a memória individual toma posse dela própria, enquanto
pertença de um grupo e sobre a base do ensinamento dos outros;
consequentemente, não apenas a memória, mas também o sentimento de unidade do
eu deriva deste pensamento coletivo (Cf. Idem 147).
No sentido de resolver esta aporia, Ricoeur desenvolve a ideia chave de
apropriação, retirada da filosofia analítica. O nosso autor socorre-se do
pensamento de Peter Strawson, mais concretamente de uma das suas teses, onde
defende que quer os predicados práticos, quer os psíquicos têm uma
característica comum: podendo ser atribuídos a si-mesmo, podem consequentemente
ser também atribuídos aos outros. É na base desta proposição acerca da
atribuição a qualquer um de fenómenos psíquicos em geral e de fenómenos
mnemónicos em particular, que podemos reconciliar a tese fenomenológica e a
tese sociológica (Idem157). E, o ponto nuclear de passagem está no facto que a
experiência do outro é para cada um, um dado tão primitivo, como a experiência
de si. A fenomenologia do mundo social pode assim conviver com uma sociologia
do viver em comum, onde os sujeitos agindo e sofrendo se tornam de imediato
membros efetivos de uma comunidade (Idem 159).
Ao nível coletivo, coloca-se, do mesmo modo, a problemática das famosas marcas,
dos vestígios que as neurociências procuram com tanto afã. A primeira discussão
diz respeito à forma de conservação das mesmas. Por conseguinte, as próprias
sociedades, para que a memória coletiva não desapareça, elaboram sobretudo
arquivos ou socorrem-se de outras estratégias do mesmo género, precisamente
porque o coletivo funciona à maneira de um grande sujeito, uma espécie de nós
gramatical: a uma primeira pessoa do singular evocativa da memória individual,
corresponde um nós plural, duas pessoas gramaticais entrelaçadas, como já
tivemos oportunidade de constatar, que se cruzam e entrecruzam.
Um grande desafio que se coloca às sociedades hodiernas é a escolha, a triagem
daquilo que podemos e devemos guardar. Um assunto muito sensível, já que exige
um conjunto de opções a tomar, ao abrigo de certos critérios. Esta tarefa
assume-se não apenas como um dever, mas também como um ensejo que não deixa de
ter uma forte componente ética.
Analogicamente à memória individual, também a memória coletiva guarda as marcas
felizes dos momentos gloriosos, como as feridas e cicatrizes dos seus
traumatismos. A memória coletiva sofre das mesmas patologias da memória
individual. Muitas vezes podemos cair no excesso de memória ou então na falta
dela. É mesmo possível cair numa espécie de memória-repetição onde o coletivo
não acede ao trabalho de rememoração, resistindo à crítica que lhe traz a
memória-recordação (Idem 96-97). Existem também outras estruturas fundamentais
da memória coletiva como é o caso da relação primordial entre a história e a
violência, uma relação ambivalente, já que aquilo que é a glória de uns foi a
humilhação dos outros. Como vemos, uma história sempre difícil de contar, onde
não podemos deixar de lado, nas nossas análises, esta espécie de fragilidade
epistemológica que nos cerca e que acaba também por nos habitar.
3. Rememoração, comemoração, memória dos próximos
Neste ponto, de forma muito sintética, após equacionar os conceitos de memória
individual e coletiva e já termos aflorado algo a propósito da sua mútua
interdependência, procuramos mostrar como estes três fenómenos contribuem cada
um, como capacidade, para a definição do sujeito e da sociedade e aproximam e
entrelaçam ainda mais a memória nas suas múltiplas facetas.
3.1. Rememoração
A rememoração abre-se a duas situações, ou seja, a da memória individual e a
memória coletiva. E, não apenas nos coloca neste duplo horizonte de sentido,
como os cruza numa mútua interdependência crítica e interpretativa.
A palavra rememoração coloca inicialmente a acentuação sobre o ato de
memória, que se diz essencialmente em português, como noutras línguas, na
palavra recordar-se e nos seus equivalentes. O se reflexivo dá um tom de
autorreflexão, de reflexividade sobre si próprio. Manifesta-se, através da
mesma, que, no ato de se retornar sobre si-mesmo, fazemos voltar ao presente
algo ausente sucedido algures num momento passado. Depreende-se, assim, que a
memória não apenas associa o sujeito individual ao seu passado, como o institui
numa singularidade individual, com as suas vivências próprias e a sua história.
É necessário fazer, neste aspeto, um verdadeiro trabalho de rememoração oposto
à compulsão da repetição (Idem 85).
A rememoração assume-se a este nível como a guardiã do sujeito e da sua
individualidade. Para Ricoeur é um autêntica função terapêutica, pois se a
memória pode desempenhar um papel terapêutico em relação às patologias do
passado e prevenir as do futuro, a mesma também está em posição terapêutica em
relação a uma doença bem mais grave, que não seria a da destruição simples dos
vestígios, mas a pura eliminação integral das singularidades.
Como vemos, Ricoeur é aqui um grande leitor do pensamento de Freud e consagra
neste grande ensaio, um longo estudo ao trabalho do luto, muito próximo do
trabalho de recordação, por oposição à compulsão e à repetição, características
da melancolia. Uma vez terminado o trabalho do luto, o eu torna-se novamente
desinibido e livre, pois este é um trabalho libertador. O tempo do luto opera a
passagem da repetição à recordação. Ao contrário, a melancolia leva a uma
diminuição do sentimento de si, ou seja, a um eu pobre e desolado que acaba
caindo sobre o peso da sua própria desvalorização. As críticas dirigidas a si
não servem que a mascarar as censuras visando o objeto de amor (Idem 88).
É extremamente interessante a proeminência que Ricoeur atribui à questão da
rememoração como protetora da identidade e o caminho cheio de escolhos por onde
esta passa. Este trabalho de rememoração tem também uma função terapêutica
semelhante ao trabalho de luto, que abre à possibilidade de uma memória
reconciliada e feliz.
3.2. Co(m)-memoração
A comemoração apresenta-se à partida como pertença do espaço público, embora
possa também enquadrar-se no campo privado. Celebrações públicas de eventos
marcantes, as comemorações são, a maior parte das vezes, elementos fundadores
triunfantes e heroicos, mas também momentos dolorosos da vida de um povo,
humilhações e derrotas que marcaram a memória coletiva. Certamente, estes
acontecimentos têm incontestavelmente um caráter coletivo, pois um elemento de
celebração ' ritualização festiva ou dolorosa ' tem de imediato um caráter
público.
E também a comemoração encerra as suas patologias. A época atual pode ser
caracterizada como uma época de comemorações. Sente-se uma espécie de
necessidade acentuada, em relação ao passado, de comemorar, de homenagear
oficialmente, de recordar publicamente certos acontecimentos. Ricoeur relembra
que esta necessidade imperiosa de tudo comemorar encontra paradoxalmente a sua
causa num défice de memória. E este é devido a duas espécies de esquecimento:
propositado, para não nos colocarmos face aos erros ou faltas do passado;
estrutural, pois a orientação tecnológica da nossa civilização torna-a uma
civilização do esquecimento.
Uma das teses de Ricoeur que pode ser controversa prende-se com a defesa que
uma das características dos objetos tecnológicos está no facto que os mesmos
não têm memória, por isso, uma vez usados e gastos, são descartáveis. Os
objetos tecnológicos substituem-se naturalmente uns aos outros. Não temos
tendência a guardar os seus traços, mas a procurar a última novidade que torna
supérflua e aniquila a precedente. Existe, assim, uma estrutura do substituível
e do descartável que corrompe a memória, ou seja, parece que existe memória a
mais, quando na prática o que existe é memória a menos, porque do outro lado
subsiste um défice, consequência direta da estrutura tecnológica da nossa
civilização.
Uma outra patologia está em recuperar de tradições já defuntas. Certamente que
muitas tradições do passado podem voltar a reviver, habitarem o presente e
enriquecer novamente a nossa memória coletiva. O problema está quando existe
uma inversão que está na base da obsessão comemorativa. Esta consiste na
recuperação de tradições defuntas, pedaços do passado dos quais já estávamos
separados e que fazem reviver problemáticas historicamente já superadas. A este
propósito, Ricoeur consagra longas páginas à questão das amnistias, que apesar
de todas as reticências que podem causar, são necessárias à reconciliação da
memória coletiva, desde que não ponham em causa valores inalienáveis e
princípios fundamentais da humanidade (Idem 111).
Numa outra perspetiva, este caráter incontestavelmente público da memória é
celebrado e vivido, de uma forma particular, por cada um. E aí a comemoração
volta-se no sentido do particular, como uma rememoração, que nos lança na
direção do outro próximo, distinto, mas não distante. Que estatuto dar às
nossas cerimónias de família e aos seus próprios rituais!? Podemos pensar a
propósito nas cerimónias festivas alegres, como nascimentos, casamentos,
batizados, aniversários ou então acontecimentos dolorosos como as exéquias, os
nossos lutos privados, que nos confrontam com o trágico da ação.
Se estes acontecimentos se fazem sobre o modelo da comemoração, isto é,
coletivo, eles assumem também um caráter público-privado e assim estamos diante
de uma situação intermédia, isto é, entre o privado da memória pessoal e o
público da memória coletiva. Este espaço de transição é o espaço do próximo.
Ninguém poderia celebrar a sua própria memória sem este nós próximo. Logo,
daqui podemos concluir que é a memória dos próximos que opera a transição entre
a memória pessoal e a memória das testemunhas. E, testemunha é aquele que
atesta alguma coisa acerca de alguém. Logo, estamos sempre diante do mesmo
problema e da mesma estrutura intermediária de passagem.
3.3. Memória dos próximos
Como acabámos de constatar, existe um entrelaçamento entre a memória individual
e coletiva. A este momento intermédio, Ricoeur atribui um estatuto particular.
Ele está presente na memória daqueles que nos estão próximos, dos amigos, pois
os próximos são os mediadores entre um espaço público e o foro interior (Idem
48). Ricoeur coloca-se na mesma linha dos Antigos que escreveram acerca da
amizade.
O plano intermédio entre o polo da memória individual e da memória coletiva
está na relação aos próximos, a quem podemos atribuir uma memória de um género
distinto pois, entre nós e os outros existe uma variação de distância que os
transforma em outros próximos, outros privilegiados. A proximidade seria a
réplica moderna da amizade celebrada pelos Antigos, meio caminho entre o
indivíduo solitário e o cidadão na pólis. Entre mim e os próximos existe uma
aprovação mútua, uma partilha de poderes que Ricoeur chama de atestação em Soi-
même comme un autre. O que eu espero dos meus próximos é que eles aprovem o que
eu atesto: que eu posso falar, agir, narrar e imputar-me a responsabilidade das
minhas ações. Ricoeur inclui também nos próximos não apenas aqueles que aprovam
as nossas ações, mas também aqueles que as desaprovam. Aprovando ou
desaprovando, nunca deixam de aprovar a nossa existência (Idem 162-163).
Os próximos são os intermediários entre uma zona privada e o mundo público. O
próximo é sobretudo aquele que se alegrou com o meu nascimento e que
eventualmente lamentará a minha morte. O estado civil define-nos apenas como
individualidades numéricas e substituíveis, neutralizadas pela sociedade. A
quem pertence ' pergunta Ricoeur ' o nosso nascimento e a nossa morte? Aos
próximos. Existe um critério simples de identificação: quem é o nosso próximo?
É aquele para quem eu sou insubstituível. Por isso, os outros não são apenas
eticamente aqueles pelos quais eu sinto solicitude, mas também o garante último
da unicidade do indivíduo, ou seja, precisamos da aprovação dos outros para
sermos nós próprios.
Existe uma espécie de partilha de memória entre nós e os próximos. A partilha
mútua de recordações é uma forma de reconstituir a sua própria memória. Para
isso, concluímos com Ricoeur que é preciso admitir que nós sejamos ditos pelos
outros e não apenas que digamos doutra forma o nosso passado. Ser recitado
pelos outros é também aceitar ser uma parte da sua memória, isto é, da sua
identidade.
4. A memória de um dever
Embora não seja aqui nossa pretensão alargar mais o leque da nossa reflexão,
não podemos terminar sem deixar de mostrar a interseção existente entre a
memória e a história, que Ricoeur analisa na segunda parte do seu grande
ensaio. Esta tarefa hercúlea é o dever de memória. Da mesma forma que
equacionamos a questão central da identidade pessoal ligada à memória, também
sucintamente abordaremos a problemática existente entre identidade coletiva e
história.
4.1. Memória e História
A declinação da memória assume, assumiu e assumirá sempre um papel fundamental
no curso dos acontecimentos da humanidade. Evocando a memória, tornamo-nos
primeiramente atentos a um estado particular da história, aquela que é contada
oralmente.
Hoje, graças aos inúmeros trabalhos no campo da antropologia e sociologia,
estamos extremamente atentos às civilizações sem escritura, onde a história
existe contada oralmente. Estas civilizações são habitadas por uma espécie de
cultura da memória e um trabalho de memorização que quase equivale a uma
espécie de escritura. A acentuação é colocada em repetir aquilo que aprendemos
e o conceito de recitação torna-se fundamental, pois inscreve na repetição uma
narração constituída em testemunho.
Contudo, a história está dependente também da escritura, pois, embora que
discutível, só existe verdadeiramente história quando ela é escrita.
Constatamos, já, em todo este processo, a importância de constituir arquivos
que guardem o depósito da escritura. Da mesma forma que para a memória
individual, a memória coletiva depende de documentos. Os arquivos funcionam ao
nível coletivo, como o cérebro funciona do ponto de vista individual. É
necessário não apenas juntar as marcas de uma memória coletiva, mas conservá-
las e protegê-las. Para isso existem os arquivos. Assim, é necessário arquivar
o passado para que ele possa ser recordado.
Ao nível histórico, Ricoeur acentua a ideia que é preciso interrogar os
documentos não exatamente como se aborda uma experiência de laboratório, mas
como lugares de testemunhos múltiplos e parciais. Evidentemente que um
historiador debruçar-se-á preferencialmente sobre a memória coletiva, enquanto
um biógrafo acentuará uma perspetiva preferencialmente individual, centrada não
apenas na memória do personagem, mas também na memória das testemunhas. Este é
apenas o enfoque que podemos dar à questão. A verdadeira problemática não está
aqui, pois o ponto nevrálgico é o trabalho do historiador.
O historiador não é aquele que cheio de questões desenterra os acontecimentos
do passado. Pois, um acontecimento histórico, não é aquilo que acontece, tal
como aconteceu, mas tal como podemos reconstruí-lo a partir de testemunhos
concordantes. Assim, Ricoeur demonstra de uma forma exemplar que o testemunho
consiste na estrutura fundamental de transição entre a memória e a história
(Idem 26).
O jovem Nietzsche dizia que nós somos esmagados pela história, isto é, a
história, o passado pode oprimir-nos ao ponto de não nos deixar viver o
presente e projetar o futuro. Porém, hoje somos talvez oprimidos pelo
esquecimento. É necessário que as pessoas ganhem novamente uma densidade
temporal. A falta de dimensão histórica dos objetos técnicos e o prestígio que
a memória perdeu diante das ciências da comunicação esvaziou a consistência da
dimensão temporal e da própria memória. O esquecimento está ligado não apenas a
uma cultura tecnológica, como já refletimos anteriormente, mas também à
promoção de uma vontade de esquecer ou de não pensar, ou seja, um esquecimento
perverso ligado a uma estratégia de manipulação. Aqui colocar-se-ia o lado
obscuro da ideologia e o papel perverso que a mesma pode desempenhar.
4.2. Dever de memória
Os modernos, por oposição aos antigos, denunciaram uma cultura repleta de
memória, que à força de querer recordar o passado nos torne incapazes de agir.
Esta denúncia não dizia tanto respeito à memória ou ao passado, mas a uma
cultura carregada de história, mais que de memória. Mesmo assim, como vimos, o
jovem Nietzsche denuncia aquilo que seria um excesso de memória em relação à
vida. Mas não é isso que hodiernamente nos preocupa, como já constatámos.
Hoje, o dever de memória consiste essencialmente em não podermos esquecer, pelo
menos os acontecimentos exemplares e fundadores do nosso passado. E, uma boa
parte das investigações do passado estão relacionadas com esta tarefa (Idem
37). O dever de memória projeta-nos muito além, seja de uma simples
fenomenologia da memória, seja de uma epistemologia da história. Ele penetra no
coração de uma hermenêutica da condição humana (Idem 105). A comunidade é
convidada a fazer memória dos acontecimentos passados de uma forma tranquila. O
dever de memória formula-se assim como uma tarefa, como um movimento prospetivo
do espírito, paradoxalmente voltado para a recordação e o passado enquanto
tarefa a realizar. Esta será sempre uma empresa inacabada.
A memória que Ricoeur convida a cultivar não é apenas aquela que nos marcou,
que nos afetou, mas também aquela à qual demos e continuamos a dar importância,
pois essa memória, mais que evocar marcas passadas, está ligada ao presente e
também aos projetos futuros. A memória que temos de cultivar é aquela que tem
um interesse para a vida do presente, como forma de projetar o futuro. Ao nível
coletivo, o dever de memória, mais que a necessidade de preservar os vestígios
do passado, deve ser encarado como a obrigação de tratar corretamente esses
vestígios.
Uma das possíveis dificuldades que pode surgir está na falta do elemento
imperativo no dever de memória, mas presente, como reconhecemos, quer ao
trabalho de memória, quer ao trabalho do luto. Ricoeur vê uma possível saída
para esta dificuldade na questão do outro. O postulado central é que o dever de
memória convoca sempre o outro. A partir daqui a dificuldade começa a ser
resolvida. E, assim, esta aparente ausência do elemento imperativo é superada
na ideia de justiça, aquela que por excelência e constituição está voltada para
o outro. O dever de memória é o dever de fazer justiça, pela recordação, a um
outro que si (Idem 108). Somos, também, confrontados com uma dívida perante
todos aqueles que foram, mas já não são, dívida que nunca está completamente
saldada. E, finalmente, perante aqueles dos quais somos devedores, têm
prioridade as vítimas (Idem 109). Mais que razões, três grandes motivos que dão
força ao dever de memória.
Conclusão
Na sua obra, La mémoire, l'histoire, l'oubli, Ricoeur assume como tarefa, no
quadro de uma fenomenologia hermenêutica, a resposta a duas questões: do que
nos recordamos? De quem é a memória?. Estas duas questões são mediadas por uma
terceira, a questão como?, já que recordar-se tanto é ter uma recordação como
colocar-se em busca da mesma. Assim, o percurso que Ricoeur define no início da
análise do primeiro vetor do tríptico ' a memória ' orienta-se segundo o
caminho: do que?' ao quem?' passando pelo como?' (Idem 4).
A problemática inicial que surge como uma espécie de obstáculo manifesta-se na
dificuldade em equacionar o problema da memória como uma questão privada, ou
então como algo de público. Depois de uma reflexão atenta sobre esta questão, o
autor chega à conclusão que a memória a que chamaremos de privada e a memória
pertença de uma comunidade, ou seja, memória colectiva, estão entrelaçadas.
A principal tese que o autor desenvolve e que aqui procurámos explanar prende-
se com o facto de que entre o eu individual é o nós coletivo, ou seja, entre a
memória própria e a memória distante, existe uma espécie de nós próximo, quer
dizer, a memória dos próximos que operada a transição entre as duas.
Essa estrutura de passagem, se inicialmente é a própria linguagem, ela é também
a figura do outro próximo que encarna e manifesta uma alteridade não apenas
formal, mas irredutível e dinâmica, porque parte de uma história comum que se
declina na identidade e na alteridade próxima ou distante. Ricoeur, como é
característico do seu pensamento filosófico, é um grande artífice a estabelecer
pontes, desta vez entre uma fenomenologia não apenas reflexiva como poderíamos
esperar, mas também hermenêutica, e entre estas e uma filosofia da linguagem.
Dois outros pontos extremamente importantes do trabalho de Ricoeur prendem-se
com a relação que procura estabelecer entre a memória e a história, por um
lado, e, por outro, entre a memória e o esquecimento. Além disso, como já
vimos, a memória é parte integrante das potencialidades do homem capaz e o
autor institui a categoria do próximo como elemento de transição entre uma
memória de pendor individual e uma outra de pendor coletivo.