A pulsão no pensamento mítico: Freud, Lacan e o estruturalismo na potière
jalouse, de Claude Lévi-Strauss
Introdução
Para elaborar as duas componentes fundamentais da teoria narrativa, a
componente sintática e a componente semântica, Greimas inspirou-se nos estudos
de Propp sobre a forma do conto popular russo assim como nos estudos de Lévi-
Strauss sobre a estrutura dos mitos. Por isso, o modelo da sintaxe actancial é
a morfologia do conto e o da semântica profunda é o pensamento mítico. No
pensamento mítico Greimas encontrou a dimensão paradigmática não manifesta que
constrange o desenrolar sintagmático dos mitos e suporta a sua coerência
lógica. De facto, a noção lévi-straussiana de pensée mythique, designa um
plano para lá da diversidade das narrativas míticas e da sua semântica
superficial, que é o plano da estrutura constituído por relações lógicas entre
categorias que Lévi-Strauss designa por códigos. Neste nível é possível
formalizar lógico-matematicamente as belas regularidades e as leis universais
que sustentam a atividade do espírito humano na produção e na comunicação de
significações. O pensamento mítico é, com o sistema fonológico e o sistema de
parentesco, uma expressão das leis estruturais do espírito. Não é por acaso que
Lévi-Strauss definiu a antropologia como théorie générale des rapports(1958:
115) e connaissance de l'esprit humain (1958: 97): como é que o espírito (a
razão) opera para produzir significações. Lévi-Strauss declara frequentemente
que o que ele visa é o plano de articulação lógica subjacente ao narrativo. De
facto, a definição do pensamento mítico como estrutura matricial atemporal
(sincrónica) que precede e constrange a ordem de sucessão cronológica das ações
ou sintagmática narrativa (diacrónica) ' e é precisamente o que está em jogo no
seu artigo de polémica com Propp, acusado de não ir além do plano da observação
empírica ' determina a questão de saber como se processa a conversão do
paradigmático (lógico) em sintagmático (narrativo). Trata-se daquilo a que
Greimas chamou a narratividade ou percurso generativo, que o quadrado
semiótico tenta formalizar, mas que ficou aquém das expectativas, pois a
questão de saber como é que o quadrado semiótico, que é uma instância lógica,
pode transformar relações lógicas em operações sintáticas nunca chegou a ser
elucidada. O que nos interessa porém aqui não é o impasse da teoria semio-
narrativa de Greimas mas apenas perceber que os estudos de Lévi-Strauss sobre o
mito são já uma teoria narrativa. Tanto assim é que a fórmula canónica do mito
(FCM) é uma equação lógico-matemática que pretende exprimir a lei da conversão
do paradigmático no sintagmático. Donde decorre que o pensamento mítico
constitui a estrutura matricial atemporal não apenas dos mitos mas de toda e
qualquer narrativa. Por isso mesmo, o facto de Greimas assimilar o pensamento
mítico (códigos) à semântica profunda (categorias sémicas) sublinha que ele não
se restringe à especificidade do discurso mítico mas constitui a base das leis
da narratividade que dão forma ao semantismo profundo[1].
Serve este breve intróito sobre o alcance narratológico da noção de pensamento
mítico para enquadrar a problemática da pulsão nos dispositivos de
narratividade como a FCM ou o Édipo. Esta questão é um dos pontos nodais em que
antropologia e psicanálise se desencontram. Os estudos sobre as leituras que
Lévi-Strauss faz da obra de Freud e sobre as suas polémicas com a psicanálise
têm tratado preferencialmente dois conjuntos de questões que se sobrepõem
parcialmente: as que se polarizam em torno do interdito do incesto e as que
dizem respeito ao estatuto do mito (Édipo, parricídio primitivo)[2]. Ao
analisar as diferentes perceções do mito que cada autor desenvolve, Alain
Delrieu (1993) nota em Lévi-Strauss uma estratégia de anexação de Freud ao
pensamento mítico (Freud como pensador mítico, precedência do xamã sobre o
psicanalista), mas abstendo-se de tomar a FCM em linha de conta, mesmo quando
aborda a Potière Jalouse, obra tardia em que Lévi-Strauss reabilita a FCM após
anos de escamoteamento. Já Lucien Scubla dedica Lire Lévi-Strauss (1998) ao
estudo da enigmática fórmula, defendendo que ela não é um tema marginal na obra
do grande antropólogo, mas antes uma intuição teórica que organiza e orienta a
sua pesquisa. Porém, na análise da Potière Jalouse, Scubla não considera aquilo
que, nesse texto de polémica com Freud, põe em jogo a pulsão, apesar de o
pensamento mítico e o circuito pulsional partilharem a topologia em dupla
torsão, i.e., a dupla reversão ativo-passivo e dentro-fora[3]. Neste artigo em
que tratamos do desencontro da antropologia e da psicanálise em torno da
pulsão, aproximamos e confrontamos FCM e Édipo enquanto dispositivos de
narratividade que processam diferentemente o material pulsional. Na Potière
Jalouse, ensaio que assimila a pulsão ao pensamento mítico, lemos a polémica
explícita de Lévi-Strauss com Freud como uma polémica subentendida com Lacan
sobre a identificação do inconsciente freudiano e do inconsciente estrutural
(para Lacan, Freud teria descoberto no Édipo o simbólico, i.e., a estrutura); e
demonstramos a extemporaneidade da crítica de Lévi-Strauss, dado que o percurso
intelectual de Lacan o tinha levado, desde os anos 60, a empreender um outro
retorno a Freud, desta vez sem a mediação do estruturalismo antropológico que
tinha sido uma ou mesmo a referência privilegiada do seu primeiro ensino (cf.
Zafiropoulos, 2003). Esta inflexão de Lacan, agora mais focado na
metapsicologia freudiana, decorre da perceção da pulsão como causa, ou melhor,
como coisa impossível de narrativizar, de significar, de coletivizar. Esta
impossibilidade é equacionada no matema do significante da falta no Outro,
fórmula que Zafiropoulos mostra estar associada ao distanciamento de Lacan em
relação a Lévi-Strauss (idem:235-40). É pois o irredutível da pulsão ' o real
sexual - que assinala a fronteira entre psicanálise e antropologia.
A fórmula canónica do mito e o Édipo
A relação entre pulsão e narratividade está no âmago da psicanálise. Afinal o
próprio dispositivo analítico postula um devir-narrativa da pulsão: o
recalcado, a verdade do desejo do sujeito, deve advir à palavra. O acesso do
ça à palavra do Je passa por uma rememoração, orientada pelo esquema
hereditário (fantasma), que se organiza em forma narrativa (actancial) de tal
maneira que o sexual traumático advenha, parcialmente, à significação. A
psicanálise assume que o sexual não é todo significante, não é todo fálico. E
por isso ela lida com o impasse que o real sexual constitui para os processos
semióticos. E parece ser esta perceção do real como sexual e do sexual como
real, como não relação, que faz da psicanálise uma pedra no sapato das outras
ciências sociais e humanas, nomeadamente da antropologia estrutural que é
théorie des rapports. O conceito que mais dramaticamente assume a objeção que
o real sexual constitui para a produção da significação é o conceito de pulsão.
A pulsão caracteriza-se por uma antinomia. Por um lado, Freud sempre sublinhou
a plasticidade das pulsões, a sua capacidade de mudar de alvos, a sua faculdade
de se fazer representar a sua capacidade de ser diferidas. Em Au-delà du
principe du plaisir, diz ele:
Les pulsions partielles communiquent dans une certaine mesure les
unes avec les autres, une pulsion provenant d'une certaine source
érogène peut abandonner son intensité pour renforcer une pulsion
partielle d'une autre source, la satisfaction d'une pulsion peut se
substituer à la satisfaction d'une autre, etc. (Freud, 1981: 258).
Em Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort (1915), Freud escreve
: "Elles sont inhibées, dirigées vers d'autres buts et d'autres domaines,
elles fusionnent les unes avec les autres, changent d'objets, se retournent en
partie contre la personne propre" (1981: 16-17). Por outro lado, o
polimorfismo e as vicissitudes das pulsões são pretexto para postular le
caractere démoniaque da compulsão de repetição e da pulsão de morte (idem:78),
ou seja, o cerne impossível da pulsão: impossível de educar, de converter em
vínculo social ou em relação lógica. Os dois dualismos pulsionais ' pulsões
sexuais e de autoconservação; pulsões de vida e de morte ' visavam dar conta
desta antinomia que situa o real sexual.
Em 1985, Lévi-Strauss publica La Potière Jalouse, livro de polémica com Freud e
com a psicanálise, onde a pulsão é redefinida como categoria do pensamento
mítico. Nele Lévi-Strauss volta a articular duas questões que havia tratado
conjuntamente trinta anos antes em La structure des mythes (1955): o mito de
Édipo e a fórmula canónica do mito (FCM). A copresença destes dois conceitos
mereceria uma reflexão aprofundada. Porque é que Lévi-Strauss escolhe o tema-
chave da obra de Freud, o Édipo, quando apresenta e utiliza a fórmula lógico-
matemática das leis do espírito?
Podemos dizer, numa reapropriação do estilo do próprio Lévi-Strauss, que a FCM
está para a antropologia estrutural como o Édipo está para a psicanálise. FCM e
Édipo são conceitos que designam, no seio dos respetivos campos teóricos, a
prevalência da estrutura sobre o sujeito : Ça pense no inconsciente lévi-
straussiano, Ça parle no inconsciente freudo-lacaniano. O Édipo, ou antes a
castração, é a operação estrutural que integra a sexualidade na esfera do
sentido: é o que o imperativo freudiano Wo Es war, soll Ich werden implica. O
sujeito é assim introduzido na categoria humana. Em L'homme aux loups, Freud
compara o Édipo às categorias de Kant :
les schèmes congénitaux phylogénétiques, qui, comme des catégories
philosophiques, assurent le classement des impressions de la vie. Je
voudrais soutenir la conception qu'il s'agit de précipités de
l'histoire culturelle des hommes. Le complexe d'dipe, qui englobe la
relation de l'enfant aux parents, en fait partie, plus encore il est
l'exemple le mieux connu de cette espèce. Là où les expériences
vécues ne se plient pas au schème héréditaire, on en vient à un
remaniement dans la fantaisie ( ). Ce sont précisément ces cas qui
sont propres à nous prouver l'existence autonome du schème. Nous
pouvons souvent remarquer que le schème remporte la victoire sur
l'expérience de vie individuelle (Freud, 1990: 117).
O Édipo aparece aqui como um esquema canónico, um constrangimento logico-
narrativo que transforma uma vida qualquer numa narrativa (ou num mito
individual do neurótico), elevando-a à dignidade de categoria. Fazer de uma
vida uma narrativa é torná-la inteligível, conferindo-lhe uma dimensão
universal e uma racionalidade além da particularidade e da contingência. Uma
vida torna-se um mito ' um mito no sentido lévi-straussiano de expressão
narrativa das leis do espírito humano. Freud e Lévi-Strauss encontram-se aqui
sob os auspícios de Kant para designarem, com o Édipo e a FCM, o conceito de
estrutura.
Lacan funda-se na definição freudiana do Édipo como categoria no sentido
kantiano para fazer dele o nó do simbólico e o ponto crucial em que o sujeito
assume a consequência maior da prevalência da lei do significante, que é a de
configurar a impossibilidade do gozo (do corpo da mãe) como interdito do
incesto. O Nome do Pai é a instância que ata a lei do significante e o
interdito do incesto. Lacan toma o Édipo como forma narrativa da operação
estrutural da castração que constitui a dimensão sexual da incidência
(desvitalizante) da linguagem sobre a vida : l'impasse sexuelle sécrète les
fictions qui rationalisent l'impossible dont elle provient (Lacan,1974: 51).
Daí que a questão de saber se as memórias de infância são reais ou
fantasmáticas seja uma questão menor: o sujeito tem que inventar as memórias,
invenção que é constrangida por um esquema autónomo e canónico que as encadeia
para traduzir o impossível (do gozo) como interdito, dando forma narrativa de
conflito familiar a uma operação estrutural. Lacan substitui o que Freud
considera ser a herança arcaica filogenética pela estrutura da linguagem e
mantém a perceção do Édipo (compactado no conceito de Nome do Pai) como
processo necessário à integração do sujeito na categoria humana. A autonomia da
razão ou do simbólico, isto é, da estrutura, manifesta-se no funcionamento das
leis universais e necessárias independentemente da experiência e da vivência
particulares. A constatação de Freud segundo a qual o comportamento das
crianças em relação aos pais aparece frequentemente como injustificado do ponto
de vista das suas vivências reais, toma todo o sentido no quadro da
interpretação do Édipo como categoria que subsume a diversidade empírica. A FCM
exerce a mesma ação, pois ela exprime un schème suffisamment abstrait pour
avoir été conçu n'importe où sans rien devoir à l'expérience ni à
l'observation(Lévi-Strauss,1985: 209), que constrange e regula a produção dos
mitos, e é, portanto, uma instância de narratividade "inhérente aux
démarches de l'esprit chaque fois que celui-ci cherche à creuser le sens"
(idem, 268). Em suma, tanto o Édipo como a FCM são dispositivos de produção da
forma narrativa da significação.
Mas se em Freud e em Lacan a significação mantém o cariz ou alcance sexual ' e
é precisamente o que significa o conceito lacaniano de significante fálico ',
em Lévi-Strauss a significação é despojada não apenas de conteúdo sexual mas da
dimensão sexual do jogo do significante. Lacan associa lógico e fálico, fazendo
do falo o significante da conjunção do logos ao desejo. Lévi-Strauss dissocia-
os. Para fazer da pulsão uma categoria do pensamento mítico, Lévi-Strauss
achata o relevo daquilo que ele chama le code sexuel no discurso da
psicanálise: este é apenas um código entre outros e, como tal, deve ser tratado
em termos de comunicação. Contrariamente à psicanálise que interpreta em termos
sexuais ce qui ne va pas na realidade, Lévi-Strauss interpreta impasses e
mal-estares relatados nos mitos como defeitos ou excessos de comunicação.
Contradições, impasses, relações bloqueadas ' entre masculino e feminino, entre
humano e divino, entre vivos e mortos ', tudo o que releva do impossível é
resolvido pelo mito cujo modelo lógico constitui uma gramática da comunicação
entre códigos. No caso do mito de Édipo, por exemplo, trata-se da contradição
entre reprodução sexuada e autoctonia: como é que um nasce de dois? O modelo
lógico do mito resolve ou apazigua o problema através das traduções recíprocas
dos códigos (parentesco e monstros) e das mediações progressivas que aproximam
os opostos (correlações, analogias, cruzamento): relações de parentesco
sobrestimadas (incesto), subestimadas (parricídio); autoctonia do homem negada
(Cadmos mata o dragão que é ctónico, nasce da terra), persistência da
autoctonia (Édipo é coxo, o que é uma característica dos homens que nascem da
terra).
O pensamento mítico segue uma lógica de correlação de oposições binárias que
enfraquecem progressivamente graças à intervenção de mecanismos de mediação e
de inversão simétrica. Daí resulta o estabelecimento de relações de analogia e
de complementaridade. Mutuamente convertíveis, os códigos refletem-se uns aos
outros en système clos, como os níveis cósmicos de que falam os mitos (Lévi-
Strauss, 1985: 152). Quando Lévi-Strauss faz da pulsão oral e da pulsão anal
categorias do pensamento mítico, oral e anal organizam-se numa oposição
binária a partir da qual uma combinatória de orifícios se forma através das
operações de inversão: a avidez oral sofre uma dupla inversão e torna-se
retenção anal; estas oposições cruzam-se em incontinência anal e em retenção
oral. Oral e anal deixam de designar pulsões e passam a designar códigos
que se organizam em pares de opostos correlativos para constituir uma
combinatória de que o sexual, o erógeno e o corpo são excluídos. Ainda que
desprovidos de forma humana e de género, logo inassimiláveis às imagens
simbólicas que Carl Gustav Jung estudou, os códigos reenviam a um cosmos
dualista constituído não por casais divinos mas por relações lógicas. Apesar da
ausência de antropomorfismo, as oposições binárias deslizam impercetivelmente
do plano estrutural (lógico) da distância diferencial para o plano imaginário
da reciprocidade das perspetivas, das belas simetrias, das correspondências
[4]. O negativo da diferença pura positiviza-se em identidade ' identidade que,
de acordo com a axiomática estruturalista, não é de substância mas é de
posição. A valorização lévi-straussiana do modelo social arcaico, em que cada
coisa está no seu lugar, evidencia esta estabilização identitária da estrutura
como cosmos.
Tal como a Potière Jalouse o descreve, o pensamento mítico aproxima-se do Édipo
no sentido em que ambos constituem dispositivos de articulação da significação
a partir de um real que é um impossível. A divergência essencial consiste no
facto de que a psicanálise entende o real-impossível como sexual (pulsional)
enquanto que a antropologia limpa a pulsão daquilo que faz dela pulsão sexual e
de morte para a converter em código. A pulsão é assim desembaraçada daquilo que
nela resiste à subsunção significante e se manifesta como compulsão
independente par rapport à l'organisation des autres processus psychiques ( )
qui obéissent aux lois de la pensée logique (Freud, 1986: 164). Isto quer
dizer que o Édipo, eixo do recalcamento, não é o único constrangimento que
afeta o sujeito. Ao constrangimento (à lei) que o logos exerce sobre o real
sexual ' o pathos ', este opõe o seu próprio constrangimento. O constrangimento
patológico ataca as leis estruturais (lógicas) que Lacan descobriu no
recalcamento (a cadeia significante). Trata-se, no constrangimento
patológico,da compulsão de repetição que, na medida em que afeta o
constrangimento lógico, marca a distância que separa Freud de Kant assim como a
psicanálise do estruturalismo enquanto nova filosofia transcendental.
O que fica como coisa
Ainda que o texto da Potière Jalouse não faça nenhuma menção a Lacan, então já
falecido, Lévi-Strauss sustenta com ele uma linha de divergência sobre a
controversa questão da relação entre Freud e o estruturalismo. Lacan defendia a
tese de um Freud precursor do estruturalismo e, pelo menos durante a primeira
década do seu ensino, de uma coincidência entre freudiano e estrutural. Ora
Lévi-Strauss escreve La Potière Jalouse para acentuar a distância que separa
Freud do estruturalismo. Contrariamente a Lacan que sublinhava com força que
Freud tinha descoberto o simbólico e o primado do significante no inconsciente,
Lévi-Strauss acusa Freud de ignorar o axioma fundador do estruturalismo: o
valor de posição dos elementos estruturais que faz com que o sentido seja o
efeito de relações formais. Em vez de considerar o sentido como resultado,
Freud tenderia, diz Lévi-Strauss, a atribuir a priori um conteúdo a um símbolo
:
Tout au long de son uvre, Freud oscille ' et n'arrive pas à choisir
en fait ' entre une conception réaliste et une conception relativiste
du symbole. ( ) Sous une forme encore naïve et rudimentaire, elle [la
conception relativiste] reconnait donc que le symbole tire sa
signification du contexte, de son rapport à d'autres symboles qui ne
prennent eux-mêmes un sens que relativement à lui. ( ) Or, au lieu de
suivre cette voie qu'il avait pourtant ouverte, il semble que Freud
se soit de plus en plus tourné vers le langage courant, l'étymologie,
la philologie ( ) dans l'espoir de trouver aux symboles une
signification absolue. Ce faisant, il ne diffère pas de Jung par le
but recherché (1985 : 247-8).
Em 1955, Lévi-Strauss tinha dirigido a mesma crítica não a Freud mas a Jung, ao
mesmo tempo que referia a estrutura em dupla torção da FCM ao modelo freudiano
da retroacção (après-coup) do fantasma sobre o traumatismo (cf.1958: 263).
Freud era então uma referência da análise estrutural dos mitos. Mas em 1985, a
Potière Jalouse, decidida a apropriar-se o conceito freudiano mais radical, a
pulsão, arruma estrategicamente Freud ao lado de Jung para o deslocar do
simbólico, onde Lacan o havia alojado, para o simbolismo (imaginário). Lévi-
Strauss explicita assim uma ideia antes aflorada em L'efficacité symbolique,
que é também um texto de polémica com a psicanálise: o inconsciente freudiano
não é o inconsciente estrutural.
O que é que está aqui em jogo na relação entre freudiano e estrutural? O
que é que implica afirmar ou negar o estruturalismo de Freud?
O que está aqui em jogo é de cariz epistemológico e trata-se do acesso da
psicanálise à cientificidade. Para se tornar científica, a psicanálise tem, na
esteira da linguística, de se tornar estrutural, pois a revolução fonológica
dos anos 50 tinha demonstrado que um sector da área das ciências sociais e
humanas só se torna objeto científico na condição de se estruturar como uma
linguagem.
Ora, Lacan, proclamando o estruturalismo avant la lettre de Freud, mostrou que
a metapsicologia freudiana exige uma perceção de estrutura, e da relação da
estrutura com o real, que constitui um desafio para o estruturalismo standard,
de que Lévi-Strauss é o representante mais autorizado. Entendida como sistema
fechado e totalizado de relações lógicas, a estrutura é um logos que subsume o
real. No espaço estrutural não há real fora do lugar, desalojado, deslocado,
pois o Ça pense é todo-poderoso. Em L'efficacité symbolique, Lévi-Strauss
escreve:
Au contraire, l'inconscient est toujours vide; ou, plus exactement,
il est aussi étranger aux images que l'estomac aux aliments qui le
traversent. Organe d'une fonction spécifique, il se borne à imposer
des lois structurales, qui épuisent sa réalité, à des éléments
inarticulés qui proviennent d'ailleurs: pulsions, émotions,
représentations, souvenirs (1958 : 233).
O inconsciente lévi-straussiano é vazio porque a sua eficácia simbólica não é
condicionada pelo empírico, o fenomenológico e o patológico. Pelo contrário, a
eficácia do simbólico subsume o pathos em logos, passa o sensível para o plano
do inteligível, anula o real em significação. É o que acontece na cura xamânica
na qual a experiência da dor física é convertida, graças à narração do mito, em
expressão verbal e une forme ordonnée et intelligible (idem: 226). Pôr no
lugar e pôr em ordem: o informulável, o incoerente e o arbitrário tomam lugar
num ensemble où tout se tient (ibidem). Este poder da função simbólica retoma
o da razão pura de transcender objetivamente o material que releva da
particularidade subjectiva para o subsumir num princípio formal universal
apático (lei).
O real sexual é anulado nas relações lógicas e nas operações significantes como
consequência da estratégia transcendental inerente ao racionalismo
estruturalista. O estruturalismo proclama que o real é racional. Ora a obra de
Freud é, como Lacan demonstrou, uma teoria da destotalização, um pensamento do
resto, que implica que o real não é todo racional e que a eficácia do simbólico
falha. Afinal, o inconsciente é ce qui ne va pas. Aquilo que em L'esquisse
(Entwurf) Freud chama o que fica como coisa ' als Ding ' é o que lhe permite
conservar, contra a tese monista de Jung sobre a libido, o famoso dualismo
pulsional'. O dualismo pulsional não deve ser confundido com o dualismo cósmico
de Jung. O que nele está em jogo nada tem a ver com as conjunções e as
coincidências dos opostos, apaziguados e pacificados, mas, ao contrário, com
disjunções e tensões. O segundo constrangimento, o da compulsão de repetição
(malaise), põe em disfunção o primeiro, o da lógica das articulações
significantes que produzem o recalcamento (maladie): Thanatos, a pulsão de
morte, rompe os laços que Eros tece. Mas que o gosto de Freud pelo mundo antigo
e a sua vasta cultura clássica e humanista não nos enganem: o universo
freudiano do desejo não é comparável nem ao cosmos junguiano nem ao universo
lévi-straussiano que elegem, ambos, o modelo pré-moderno da União/Unidade (Um),
seja sob o regime do imaginário transbordante da sex ratio, em que o sentido se
situa a priori, seja sob o regime da pura forma da ratio unicamente, em que o
sentido é a posteriori. Ora o dualismo freudiano postula que a pulsão de morte
é o impossível da pulsão de vida, o sexual o impossível da relação. O aforismo
lacaniano il n'y a pas de rapport sexuel sintetiza o impossível que reside no
coração da pulsão, constituindo um limite à sua erotização-socialização e à sua
des-sexualização total .
Para Freud, todo o dispositivo de regulação da pulsão através das articulações
sociais e significantes, como é o Édipo, é entravado por um resto sexual que a
Kultur não consegue assimilar, que os interditos e ideais ao serviço de Eros,
instância que une pessoas e grupos, não consegue recalcar nem sublimar. Algo de
inalienável e irredutível escapa e objeta ao Outro, tanto na aceção romântica
de comunidade orgânica (Kultur), como na aceção racionalista de ordem simbólica
(structure) : la chose freudienne, l'objet petit a. Em Freud, o real não é
todo racional. O Édipo é talvez uma categoria no sentido kantiano, mas não a
pulsão. Para usar os termos de Lévi-Strauss em Mythologiques, diremos que
Édipo, como todo mito, nous tient au groupe (alienação). A pulsão, ou mais
precisamente o que fica como coisa da conversão edipiana da pulsão em laço
social e significante, é justamente o que separa o sujeito do grupo e impede
que a sua alienação à relação significante seja total. Nos termos de Lacan, a
estrutura é inconsistente e o Outro comme lieu il ne tient pas (Lacan, 1975a:
31).
Durante a primeira década do seu ensino, Lacan tentou absorver a pulsão em
desejo. A sua estratégia consistiu em colocar a pulsão do lado do imaginário
para a fazer aceder à ordem simbólica: Libido et moi sont du même côté. Le
narcissisme est libidinal (...) C'est ici que nous débouchons sur l'ordre
symbolique, qui n'est pas l'ordre libidinal où s'inscrivent aussi bien le moi
que toutes les pulsions. (1978: 375). O acesso à ordem simbólica determina a
circulação da pulsão nos desfiladeiros do significante e de facto aí a pulsão é
purificada em desejo, i.e., projetada para fora dos limites da vida, para lá do
princípio do prazer. O desejo resulta da subsunção em relação significante de
um real patológico e inarticulado, constituído de tous les ça', objets,
instincts, désirs, tendances (Lacan, 1975: 128). O desejo é um conceito
eminentemente lógico pois tanto a sua causa como a sua finalidade estão no
significante, ou melhor no vazio aberto pelo significante na vida. É certo que
Lacan desenvolve, ao longo da década de 60, o conceito de objeto a enquanto
objeto do fantasma - $ ? a - e causa retroativa do desejo. Mas até então,
pulsão e objeto pertenciam à esfera do imaginário e, como tal, o seu destino é
a subsunção em desejo puro, sustentado unicamente na relação significante (cf.
Álvares, 2010: 169-186).
Quando no Séminaire XI, Lacan faz da pulsão um dos quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, isso significa o fracasso da tentativa de reduzir
a complexidade e a heterogeneidade do sexual freudiano ao conceito lógico de
desejo: o inconsciente não é só um ça parle. Cremos que, com o Séminaire XI,
Lacan marca a distância de Freud com o postulado central do racionalismo
estruturalista de linha kantiana que assume o poder de subsunção do empírico,
do fenomenológico e do patológico, pela estrutura, sendo esta a versão que a
razão pura toma no século XX. No início do seminário em que reabilita o
conceito de pulsão, Lacan apresenta o inconsciente freudiano como algo
diferente do inconsciente estrutural:
De nos jours, au temps historique où nous sommes de formation d'une
science, qu'on peut qualifier d'humaine mais qu'il faut bien
distinguer de toute psychosociologie, à savoir, la linguistique, dont
le modèle est le jeu combinatoire opérant dans sa spontanéité, tout
seul, d'une façon pré-subjective, ' c'est cette structure qui donne
son statut à l'inconscient. C'est elle, en tout cas, qui nous assure
qu'il y a sous le terme d'inconscient quelque chose de qualifiable,
d'accessible et d'objectivable.
Mais quand j'incite les psychanalystes à ne point ignorer ce terrain, qui leur
donne un solide appui pour leur élaboration, est-ce à dire que je pense tenir
les concepts introduits historiquement par Freud sous le terme d'inconscient ?
Eh bien, non ! je ne le pense pas. L'inconscient, concept freudien, est autre
chose, que je voudrais vous faire saisir aujourd'hui (1973: 29).
Isto mostra suficientemente que a psicanálise choca não propriamente com o
estruturalismo mas com aquele estruturalismo que define a estrutura como um
todo completo e fechado que expropria o real para o elevar à dignidade de
significante e o ordenar em relações lógicas determinadas por uma lei, de modo
a produzir e a comunicar significações. Pois a psicanálise diz: há um real que
fica como coisa, que se encarrega da porção de sexual impossível de significar,
um Ça que não fala nem pensa, e que negativiza as relações estruturais.
A lição de Freud é que, para usar os termos do Seminário XX, a pulsão não é
toda convertível em significação. O que fica como coisa objeta à sua vocação
semântica. A antinomia da pulsão implica uma conceção de estrutura que não é a
de Lévi-Strauss e do estruturalismo standard. O inconsciente freudiano não é
uma estrutura fechada e consistente como é o pensamento mítico (que é um
sistema de operações lógicas que captura o real em sentido: tudo faz sentido,
diz Lévi-Strauss em La Pensée Sauvage). É porque faz desaparecer o impossível,
o real, que o mito apazigua as angústias e pode ser usado com fins terapêuticos
mas ilusórios. O inconsciente freudiano é uma estrutura aberta sobre o real. De
facto, Lacan di-lo desde o seu primeiro seminário em 1953:
En effet, à saisir la fonction du signe, on est toujours renvoyé au
signe. Pourquoi ? Parce que le système des signes, tels qu'ils sont
concrètement institués, hic et nunc, forme par lui-même un tout.
C'est dire qu'il institue un ordre qui est sans issue. Bien entendu,
il faut qu'il y en ait une, sans quoi ce serait un ordre insensé
(Lacan, 1975 : 399).
Não é por acaso que Lacan nunca foi um estruturalista como os outros e que ao
longo de 30 anos o que ele fez foi abordar sob diferentes ângulos o
desfasamento entre freudiano e estrutural para apreender a coisa freudiana:
tem ela um lugar na estrutura, é ela redutível à relação significante, ou não
é, e quais são então os seus efeitos sobre a ordem de lugares e de relações que
é a estrutura? Se, durante a primeira década, Lacan tende a minimizar o
desfasamento entre freudiano e estrutural, esse desfasamento vai aparecer
mais vincadamente no seu discurso a partir da viragem ética, quando Lacan toma
as suas distâncias com a matriz kantiana do estruturalismo standard, logo com a
antropologia estrutural de Lévi-Strauss:
la loi morale (...) n'est rien d'autre que le désir à l'état pur,
celui-là même qui aboutit au sacrifice, à proprement parler, de tout
ce qui est l'objet de l'amour dans sa tendresse humaine ' je dis
bien, non seulement au rejet de l'objet pathologique, mais bien à son
sacrifice et à son meurtre. C'est pourquoi j'ai écrit Kant avec
Sade (1973: 306).
Em A paixão do negativo. Lacan e a dialéctica, Vladimir Safatle explicou
detalhada e convincentemente o papel crucial que Kant avec Sade desempenha
naquilo a que chamou a viragem do paradigma da intersubjectividade para o do
objeto no pensamento de Lacan. O autor defende que nesse texto Lacan descola a
sua teoria do sujeito da estratégia transcendental que, como Deleuze bem
lembrava, é inerente ao racionalismo estruturalista e adota uma estratégia
verdadeiramente dialética (em que a razão afronta o seu heterogéneo). Para tal,
Lacan apresenta Sade como a verdade de Kant, mostrando que há um curto-circuito
entre perversão e lei moral; exigindo a rejeição de todo e qualquer objeto
empírico e patológico, de todo e qualquer bem, os imperativos categóricos de
Kant e de Sade aparecem como modelo da lei do desejo puro, a qual muito
dificilmente se destrinça do imperativo do gozo. De facto, aquilo que Vladimir
Safatle caracteriza como um jogo orquestrado por Lacan contra si mesmo, em
que a crítica de Kant é afinal uma autocrítica, constituiu uma operação
necessária para repensar o fantasma e, no Seminário XI, a pulsão (que sai da
esfera imaginária do eu e do narcisismo). Neste seminário, e no écrit que lhe
corresponde, Position de l'inconscient, a alienação do desejo ao desejo ao
Outro é destotalizada pela separação, onde a pulsão e o objeto desempenham uma
função de primeiro plano. A separação é necessária para que o sujeito não fique
bloqueado na alienação ao significante. Nos mesmos textos encontramos também
duas repetições, tychê automaton, e duas vertentes da sexualidade: a do vivo,
em que se encontra a pulsão, e a do Outro, lugar da palavra, dos ideais, da
ordem e da norma. Mais uma vez, não é de dualismos que se trata, mas, como diz
Safatle, de dialética, de dialética destotalizada, sem síntese, que vai
culminar nas fórmulas da sexuação e na elaboração da noção de pastoute.
O desfasamento de Lacan com Lakant parece pois ter sido necessário ou, talvez
melhor, exigido pela perceção da não-coincidência entre o inconsciente
freudiano e o inconsciente estrutural que a pulsão, mais do que qualquer outro
conceito, permite verificar: o inconsciente freudiano implica que a estrutura
não é uma totalidade, que o inconsciente não é todo verbo, logos, mythos. E não
deixa de ser interessante notar que é em torno da pulsão que tanto Lévi-Strauss
como Lacan situam o bordo de inadequação entre Freud e o estruturalismo.