Comentário a democracia e anti-liberalismo(capítulo VI)
Comentário a democracia e anti-liberalismo(capítulo VI)
Marta Nunes da Costa*
*Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Centro de
Estudos Humanísticos, 4710-057 Braga, Portugal.
nunesdacosta77@gmail.com
No sexto capítulo de Futuro indefinido: Ensaios de Filosofia Política,João
Cardoso Rosas oferece-nos uma leitura crítica da relação entre democracia e
liberalismo, apontando para as convergências e divergências teóricas e práticas
ou históricas entre ambos. De acordo com o autor, temos tendência para pensar
as democracias contemporâneas dentro de um horizonte definido por parâmetros e
critérios ditos liberais. Porém, como o mesmo reconhece, vivemos num ambiente
de tensão permanente entre, por um lado, um discurso, bem ou mal fundamentado,
sobre a democracia enquanto poder do povo e por outro, um discurso que visa
reforçar o papel do indivíduo enquanto agente moral e politicamente livre.
Embora muitos possam ter tendência para convergir ambos os planos ' de
governação e de direitos individuais ' a verdade é que democracia e liberalismo
têm uma história de conflito e desarmonia, que só nas últimas décadas alcançou
uma resolução aparente, estando contudo sujeita a diferentes interpretações,
consonante o país ou democracia em análise. Apesar deste conflito imanente,
Rosas defende que as democracias devem ser sempre pensadas no contexto liberal,
e que as próprias correntes anti-liberais adquirem o seu sentido mais profundo
num estado democrático.
Olhemos então para o argumento defendido pelo autor. Na análise histórica do
conceito e práticas de democracia, Rosas começa por apoiar-se na distinção
entre a democracia (e liberdade) nos antigos e nos modernos, iluminando o
percurso histórico ' e polémico ' da democracia. Podemos retraçar a experiência
democrática à polis ateniense, mas mesmo aquando desta, o modelo era alvo de
ataques. Platão, por exemplo, denunciou a democracia como modelo próximo da
anarquia, defendendo uma oligarquia especifica, onde os melhores deveriam
governar ' os melhores, definidos por mérito e educação, e não por
hereditariedade. A visão da democracia enquanto modelo indesejável manteve-se
em vigor, dentro da filosofia política, até ao século XX, onde encontramos
autores como Schumpeter a defender uma concepção de democracia enquanto
processo político e mínimo necessário para a legitimação do governo, excluindo,
porém, toda a sua vertente mais participativa ou radical. Dahl e Sartori são
outros autores que defendem a limitação das nossas leituras democráticas e
projeções acerca das expectativas da própria democracia. Seria, no entanto,
errado pensar que as posições destes autores traduzem um consenso quase
hegemónico sobre a conceptualização e instanciações democráticas. Como Carole
Pateman bem denuncia na sua obra incontornável Participação e Teoria
Democrática (1970), não há uma teoria democrática, nem uma teoria democrática
clássica'; há sim várias teorias democráticas, cada uma refletindo um conjunto
de ideais e prioridades político-institucionais. O que importa sublinhar, de
acordo com Rosas, é que a recuperação dos ideais democráticos em geral ' quer
na sua vertente mais procedimentalista, quer na sua vertente mais substantiva '
só foi possível a partir de finais do século XVIII, com a experiência do
liberalismo.
Liberalismo, na sua acepção original, remete para a introdução do
constitucionalismo moderno, e não deve ser entendido apenas como mutação
ideológica especifica do século XX e XXI. Como Rosas diz, o liberalismo
consiste na defesa teórica e nas instituições jurídicas de protecção dos
direitos naturais do homem ' na linguagem jusnaturalista ' e dos direitos
fundamentais do cidadão, a começar pelos civis e políticos, mas podendo
alargar-se aos direitos sociais. Para o liberalismo, o poder legítimo assenta
no contrato e na utilidade social. O princípio do império da lei predomina. A
soberania reside, em última instância, no povo ou na nação. Mas esse poder é
exercido por representantes nomeados pelo soberano, embora dividido em
diferentes poderes e sujeito a um esquema de freios e contrapesos. (p. 90)
Percebe-se, desta passagem, que a relação entre democracia e liberalismo nunca
pode ser óbvia. Porém, as dificuldades desta relação assentam numa mutação mais
profunda, na medida em que a introdução do liberalismo obrigou a uma
reformulação do conceito original de democracia. Retrospectivamente, podemos
observar como o modelo político promovido a partir do século XVIII assentava na
representação política. Esta representação visava contrabalançar os perigos
eminentes potencialmente presentes numa política mais participativa, garantindo
ao mesmo tempo uma participação, porém, mediada, pelos representantes.
Esta é a nossa herança. Falar de democracia hoje é falar da democratização dos
regimes liberais', de democracia representativa, ou, por outras palavras, de um
sistema político que assenta na relação primordial entre representantes e
representados. Mas à medida que os direitos políticos foram progressivamente
projetados como fundamentais, a experiência democrática alterou-se, abrindo
campo para novos modelos políticos que passariam a articular a dimensão
representativa com as dimensões participativa e deliberativa.
A coexistência destas dimensões traduziu-se na proliferação de discursos
políticos que são normalmente designados por anti-liberais'. Porém, estes
discursos só se desenham e se afirmam como pertinentes por estarem desde logo
enquadrados no horizonte conceptual do liberalismo. Quer entendamos o
liberalismo como fenómeno essencialmente político, ou como fenómeno também
económico, o liberalismo esteve até ao século XIX associado à esquerda. Porém,
seria simplista pensar que o liberalismo é sóisto. Há tantas correntes liberais
como autores que as propõem, daí que para o mesmo conceito possamos encontrar
leituras dispares, mesmo que suportadas pela partilha de teses centrais.
Rosas denuncia e expõe a complexidade do liberalismo e das suas diferentes
correntes, assim como das suas críticas. Depois de retraçar alguns dos
argumentos centrais dos anti-liberais, Rosas mostra como essas críticas
assentam numa leitura redutora e simplificada do liberalismo. Com efeito, ser
liberal não implica necessariamente defender uma visão atomista da sociedade,
mesmo sendo considerada como essencialmente individualista. Além disso, o
individualismo subjacente ao pensamento liberal não invalida a adopção de uma '
ou várias ' concepções de bem comum. Rosas sublinha ainda o facto de o
liberalismo não poder ser confundido com relativismo ou cepticismo moral tout
court,já que o liberalismo por si só engloba várias visões do mundo e da
sociedade política.
É verdade que pensar hoje na democracia implica, quase de forma automatizada,
pensar no fundo liberal da sociedade que se quer e diz democrática. Porém, como
mencionei acima, a reflexão sobre a relação entre democracia e liberalismo
assenta num modelo democrático específico ' e dominante ' que é o modelo
representativo. As tendências de democratização da sociedade, sobretudo pela
expansão de mecanismos participativos e deliberativos ' como por exemplo a
iniciativa popular, orçamento participativo, referendo, entre outros ' pode
parecer anti-liberal na sua natureza, seadoptarmos a visão mais simplista de
liberalismo enquanto defesa de direitos individuais específicos
constitucionalmente determinados. Mas poderíamos olhar para a questão de outro
ângulo, e dizer que esses mecanismos não só visam o aprofundamento das
democracias contemporâneas, como o próprio desenvolvimento e atualização dos
direitos individuais, na medida em que os indivíduos, enquanto agentes morais e
políticos autónomos, passariam a controlar de forma mais direta (e
participativa) o seu destino pessoal assim como o destino da sua comunidade.
Assim, o que parece inicialmente como anti-liberal torna-se um fenómeno de
redefinição do paradigma democrático, numa era em que as crises do sistema
representativo são incontornáveis e exigem respostas institucionais,
substantivas e de políticas públicas.
Assim, queria mencionar alguns factores que considero importantes não só para
repensar a relação entre democracia e liberalismo, mas também a redefinição do
paradigma democrático.
O tópico da representação política e da relação desta com a democracia tem sido
alvo de vários trabalhos por diferentes autores desde sempre. Não entrarei aqui
nos detalhes do debate, até porque para o nosso propósito interessa realçar a
transformação que essas leituras estão tomando.
Em qualquer teoria da representação (política), há vários elementos que devem
ser explorados:por um lado,o carácter dinâmico e a relação de interdependência
entre representantes e representados. Representantes existem porque representam
os representados e vice-versa; porém, a representação não é um fenómeno
estático e permanente no tempo, no sentido em que quem representa não fica ad
eternum na posição de representante; a representação é uma relação que se
afirma na sua legitimidade ao longo do seu próprio exercício, implicando o
reconhecimento da validade das demandas por parte dos representados, que
encontram corpo e voz nos representantes. Por isso, essa relação deve traduzir
as próprias mutações e transformação das demandas, interesses e posições dos
cidadãos ao longo do tempo; a legitimidade da relação representativa assenta na
capacidade de escutar e traduzir as várias demandas, em vários momentos no
tempo e no espaço, no domínio político do processo de deliberação, constituição
da agenda política e tomada de decisão. Defendo, por isso, uma concepção mais
orgânica de representação, seguindo a linha de Saward (2010), e contrariando a
tendência dominante de pensar representação através de uma leitura
essencialista baseada em interesses e necessidades ossificados dos cidadãos.
Representação deve implicar semprereciprocidade e mútua constituição, apoiando-
se em estratégias de comunicação eficazes.
Hoje, a demanda pela reciprocidade torna-se mais gritante, na medida em que
muitos cidadãos não se sentem representados pelos representantes oficiais. Com
efeito, encontramos desafios à representação política em várias frentes: por um
lado, podemos identificar um hiato na relação representativa tradicional, isto
é, pensada através das instituições políticas representativas de deputados,
parlamentos, assembleias, entre outros. A política partidária não é suficiente
nem capaz de responder à multiplicidade (quantitativa e qualitativa) de
demandas de cidadãos. Por outro lado, a constelação pós-nacional (Habermas
1998) do século XXI, obriga-nos a expandir e redefinir o conceito de ator
político, que não está necessariamente determinado pela dinâmica da relação
representativa tradicional. Com efeito, alguns atores políticos não estão
sujeitos aos mecanismos clássicos de responsabilização, nem de justificação
política ou controle democrático. Além destes dois factores, encontramos um
terceiro, a saber, a proliferação de instituições políticas representativas que
se projetam à escala global mas cuja representatividade não está definida nem
nos seus parâmetros, nem na sua legitimidade. Quem representa quem, como e
porquê? Esta é uma leitura breve de elementos que obrigam a repensar o
paradigma representativo democrático.
Para responder a alguns destes dilemas, autores contemporâneos como Mansbridge
(1980), Pateman (1970), Gutmann e Thompson (2004) ou Benjamin Barber (1984)
oferecem alternativas à conceptualização e prática democráticas. Cito Barber
quando diz
[d]emocracia só pode sobreviver como democracia forte, assegurada não por
grandes líderes mas sim por cidadãos competentes e responsáveis. Ditadura
eficaz requer grandes líderes. Democracias eficazes requerem grandes cidadãos.
Somos livres somente enquanto somos cidadãos e a nossa liberdade e a nossa
igualdade só duram enquanto dura a nossa cidadania. Talvez nasçamos livres, mas
só morremos livres quando trabalhamos na liberdade nesse intervalo. (Barber,
1984, preface to the 1990 edition, xxix)
Esta passagem é elucidativa pela forma como recoloca a questão da natureza da
própria democracia. Se a democracia representativa está em crise, fará sentido
olhar para a forma como os mecanismos representativos sobre a qual se baseiam
se podem transformar, apostando na redefinição da relação entre as vertentes
representativa, participativa e deliberativa.
Autores como Barber ou Arendt defendem que a política democrática se afirma
pela participação e ação cidadã. Ser cidadão de uma comunidade democrática não
pode significar apenas deter certos direitos (individuais), mas também cumprir
deveres perante si mesmo, enquanto indivíduo autónomo e membro de uma
comunidade mais vasta. O conceito de liberdade (sob o qual o liberalismo se
edifica e constrói) adquire assim um carácter mais dinâmico e de permanente
atualização. Ser livre é ser cidadão, e isso implica participar e agir de forma
concertada na vida pública e política, visando um bem comum no qual os direitos
individuais possam ser maximizados.
Muitos países têm sentido a necessidade de reconfigurar as tradicionais
instituições representativas, introduzindo novos mecanismos participativos que
possam dar resposta às demandas cidadãs, ao mesmo tempo que possam espelhar o
vinculo entre o cidadão e a comunidade política. Olhemos para o exemplo do
orçamento participativo, que começou em Porto Alegre, no Brasil, em 1989 e que
hoje está espalhado pelos vários continentes. Mas esse é apenas um exemplo que
cumpre o seu papel, ou seja, que demostra quão necessário é para a democracia
se manter aberta à transformação e mudança, não se deixando iludir por ideais
até totalitários.
O reconhecimento da importância da participação política vem reforçar a
necessidade que as democracias têm de se redefinir constantemente. Se a
democracia é atualidade e utopia, enquanto projeção de um futuro onde os seus
ideais simultaneamente nos pautam a conduta e nos guiam pelo caminho,
depreende-se que a relação entre democracia e liberalismo está também ela em
constante mutação.
Mas a vertente mais participativa da democracia não é a única resposta às
crises da representatividade. Podemos encontrar no paradigma da democracia
deliberativa outros exemplos de reconstrução do espaço político e do cidadão
democrático. Neste paradigma a reflexão desempenha um papel essencial na vida
democrática. Deliberação deve ser entendida simultaneamente como processo
(deliberativo) e como finalidade ou objectivo a alcançar. A deliberação assenta
nos princípios da reciprocidade ' ou reconhecimento de igualdade moral e
política entre todos os que participam do processo ' e da publicidade. A
publicidade aqui remete-nos à máxima kantiana do pensamento alargado,
funcionando por isso como teste de legitimidade das máximas proclamadas pelos
indivíduos.
O que a experiência da deliberação nos ensina é que as preferências que um
indivíduo possa ter são sempre resultado de um contexto económico, político,
social e cultural específico, ou como Foucault diria, são sempre a tradução de
um a priorihistórico. Por outro lado, ela também nos mostra que essas
preferências podem mudar, a partir do processo deliberativo entre vários
indivíduos. O objectivo deste é alcançar soluções mais justas para os
indivíduos, sempre pensados a partir e no âmbito deuma comunidade política. Em
poucas palavras podemos dizer que o paradigma deliberativo obriga a
reequacionar a forma como os interesses e demandas se constroem e se projetam,
assim como a forma como cada indivíduo lida e aceita (ou não) a carga da
responsabilidade individual e coletiva.
Para concluir, reitero a importância de repensar a relação entre democracia e
liberalismo, tendo em conta os diferentes paradigmas democráticos, liberais e
anti-liberais. O que a crise da representatividade democrática nos ensina é que
a democracia se traduz e se manifesta pela tensão constante entre os seus
ideais fundadores de liberdade e igualdade. Para que ambos se concretizem é
preciso articular as diferentes dimensões democráticas de representação,
participação e deliberação, procurando construir um modelo ou teoria mais apto
a explicar a atual realidade, e a prever futuras crises. A participação
política tem-se afirmado como elemento essencial à saúde do projeto democrático
' não só político mas também social e económico. Sem participação não há
democracia. Nesse sentido, os direitos individuais ' direitos de primeira,
segunda, terceira e quarta geração ' só poderão atualizar-se plenamente quando
as estruturas dominantes de política representativa se abrirem às propostas
oferecidas por mecanismos participativos e deliberativos.