Referências interculturais oitocentistas nas obras metalinguísticas em
Português e Chinês do P.e Joaquim Gonçalves
1. Introdução
Não é nosso objectivo neste trabalho demorarmo-nos sobre a biografia, a
bibliografia ou o reconhecimento histórico dos méritos de Joaquim Afonso
Gonçalves (1781-1841)[1], por um lado porque não cabe na economia de um estudo
centrado num tema específico como aquele que nos motiva, quase três séculos
depois ainda inexplorado, e que mais fácil e justamente os fará ressaltar, e
por outro lado porque, desde 2012, o fizemos já em várias conferências
plenárias e comunicações, cujos textos se acham em preparação, submetidos para
publicação ou no prelo [2]; podemos, contudo, apontar resumidamente alguns
dados preambulares.
Innocencio Francisco da Silva (1859: 57) oferece-nos a seguinte nota
biobibliográfica acerca do seu contemporâneo, à data já falecido:
P. JOAQUIM AFFONSO GONÇALVES, Presbytero da Congregação da Missão, e
Professor no collegio de S. Joseph de Macau, onde passou os ultimos
trinta annos de sua vida. Além dos conhecimentos que possuia na
Theologia e Mathematica, e na arte da Musica, foi tido por habil
mestre, não só das linguas europeas, mas do intrincado e difficilimo
idioma chinez, a cujo estudo se applicára ex professo,com incansavel
trabalho, em beneficio das missões do seu instituto. Da sciencia que
adquiriu por este estudo deu provas exuberantes nas obras que
escreveu, e que vão descriptas no presente artigo. Foi Membro da Real
Sociedade Asiatica, e eleito Socio Correspondente da Academia R. das
Sciencias de Lisboa, em 18 de Novembro de 1840, cujo diploma não
chegou a receber, bem como o de Cavalleiro da Ordem de N. S. da
Conceição de Villa-viçosa, que o Governo lhe conferira em attenção ao
seu merecimento. – Foi natural do Tojal, no concelho de Serva, da
provincia de Traz-os-montes, e m. no sobredito collegio de Macau, de
febre maligna, a 3 de Outubro de 1841. – A sua Necrologiasahiu no
Diario do Governo,n.º 20, de 24 de Janeiro de 1842. – E.
1409) Grammatica latina, ad usum sinensium juvenum.Macau, in Collegio
St. Joseph Typis mandata 1828. 12.º Diz Brunet, que este pequeno
volume, não valendo alias 12 francos, fôra pago por 50 na venda da
livraria de Klaproth.
1410) Arte china, constante de alphabeto e grammatica, comprehendendo
modelos das differentes composições.Ibi, no mesmo Collegio 1829. 4.º
de VIII-502-45 pag.
1411) Diccionario portuguez-china, no estylo vulgar mandarim, e
classico geral.Ibi, no mesmo Collegio 1831. 4.º Foi, conforme Brunet,
vendido por 60 francos um exemplar da referida livraria.
1412) Diccionario china-portuguez, no estilo vulgar mandarim e
classico geral.Ibi, 1833. 4.º Tambem d’ este se vendeu um exemplar
por 66 francos, na mesma occasião.
1413) Vocabularium latino-sinicum, pronuntiatione mandarina latini
litteras. Ibi, 1837.
1414) Lexicon manuale latino-sinicum, continens omnia vocabula utilia
et primitiva etiam scriptae sacrae.Ibi, 1839.
1415) Lexicon magnum latino-sinicum, ostendens etymologiam,
prosodiam, et constructionem vocabulorum.Ibi, 1841.
1416) Versão do Novo Testamento em lingua china.– Inedita. 1417)
Diccionario sinico-latino.– Tambem inedito.
De todas as referidas obras impressas vieram para Lisboa alguns
exemplares, que estiveram em tempo á venda na loja do sr. Lavado, na
rua Augusta.
A esta lista de obras impressas e manuscritas podemos acrescentar pelo menos
mais um caderno manuscrito do autor, igualmente de carácter metalinguístico e
didáctico, em português e chinês, com que travei conhecimento na Biblioteca
Nacional de Portugal, e cuja edição crítica acabo de preparar para publicação,
com a colaboração de Ana Ng Cen para a fixação do chinês e o esclarecimento de
aspectos relativos a esta língua, no momento de dirimir certas dúvidas
interlinguísticas na constituição do aparato crítico e na transcrição da
romanização dos caracteres chineses. Quanto às obras acima mencionadas, foram
em 2011 integradas, juntamente com outras, no projecto Tesouro Lexicográfico e
Gramaticográfico do Oriente – Contributos portugueses para a descrição do
chinês e de outras línguas asiáticas,que nessa data tive ocasião de propor a
Carlos Assunção, investigador do Centro de Estudos em Letras da Universidade de
Trás-os-Montes e Alto-Douro, e que tem, para além dos dois responsáveis pela
parte portuguesa das obras elencadas no projecto (que tratarão da edição
crítica ou reedição dos manuscritos e impressos dos séculos XVI a XIX, dos seus
estudos introdutórios e da orientação de estudos monográficos a elas
respeitantes), responsáveis particulares para cada uma das línguas estrangeiras
envolvidas. Nesse âmbito, e no tocante a Joaquim Gonçalves, efectuei até esta
data a fixação do texto em português e preparei a reedição da Arte Chinae dos
dois dicionários que compõem o seu tríptico didáctico para ensino do chinês,
para além da edição crítica do caderno acima referido, todos a dar brevemente
ao prelo. Tendo desde 2011 incluído no programa da disciplina de Gramática
Aplicada II, do Mestrado em Estudos Interculturais Português-Chinês, para
estudantes de língua materna chinesa, a apresentação e o estudo das obras
metalinguísticas em língua portuguesa descritivas do chinês[3], tem igualmente
dado frutos esse labor didáctico, tendo o primeiro deles sido a orientação da
dissertação de Tao Yang (2013), corajosa mestranda que aceitou o desafio de
tratar o tema por mim proposto, envolvendo português e chinês oitocentistas e
um número elevado de fontes chinesas impressas que o Padre Gonçalves conhecia
bem, e de que aproveitou eloquentes exemplos para a construção das suas obras,
conforme veio a comprovar no seu trabalho pioneiro.
A acrescentar ao testemunho laudatório de Inocêncio da Silva (1859: 57), vários
autores têm reconhecido a importância do trabalho de Gonçalves, logo desde a
sua contemporaneidade. O britânico Thomas Francis Wade, autor de diversas obras
no âmbito do ensino do chinês, todas posteriores às do padre lazarista,
menciona-o por duas vezes – e como o melhor dos mestres cujas pisadas gostaria
um dia de seguir – logo nas palavras proemiais ao primeiro dos seus manuais
para o ensino daquele a que chama o “Peking dialect”, ??? The Hsin Ching Lu, or
Book of Experiments; being the first of a series of contributions to the study
of chinese, escritas em Hong-Kong a 13 de Maio de 1859:
...for all our respect for the labours of Morrison, Gonçalves, and
other (...)
To the desired end our elementary means are few. The best is perhaps
Gonçalves’ s Arte China,but it is written in Portuguese, a tongue few
Englismen under age have cared to cultivate. If the writer’ s health
ant strength be spared him it is his purpose one day to produce a
Student’ s Manual somewhat in the style of the Arte. (Wade, 1859:
[fl. 3 inumerado])
Jean-Pierre Abel-Rémusat, o fundador da Escola de Sinologia francesa, dedicou-
lhe alguns parágrafos bastante elogiosos no Journal des Savans,em Setembro de
1831, colocando-o a par de precursores como Robert Morrison (1782-1834), o
primeiro missionário protestante na China, de cujas obras em inglês e chinês o
próprio Gonçalves (1831: i) se reconheceu devedor:
Le P. Gonçalvez, prêtre de la congrégation de Macao, et auteur du
second ouvrage dont nous avons inscrit le titre au commencement de
cet article [a primeira é a Notitia linguae sinicae,manuscrito de
Prémare de 1828, editado em 1831], s’ est proposé le même objet en
publiant en portugais son Arte china.
Pour donner aux étudians tous les moyens d’ entrer dans la
connoissance pratique de la langue chinoise tant parlée qu’ écrite,
il a cru nécessaire de composer trois différens volumes qui feront
suite l’ un à l’ autre; une grammaire, un dictionnaire chinois-
portugais, et un dictionnaire portugais-chinois (...) il seroit
injuste de n’ y pas reconnoître l’ oeuvre d’ un littérateur très-
versé dans le sujet qu’ il traite, bien qu’ on ait lieu de penser qu’
il ignore absolument l’ existence de tout travail antérieur relatif à
ce sujet; et l’ on doit avouer que son premier volume, qui sera
vraisemblablement suivi des deux autres qu’ il annonce, suffit pour
lui assurer une place honorable à côté de Varo, de Prémare, et des
docteurs Marsleman et Morrison. (Rémusat, 1831: 543-545)
Recentemente, António Aresta, que cita Rémusat numa tradução portuguesa com
algumas liberdades (Aresta, 681-682), reconhece logo no início do seu breve mas
eloquente artigo o valor de Gonçalves e a urgência de fazer justiça a este
incontornável autor no Macau oitocentista, estudando, editando os seus
manuscritos e reeditando as suas obras impressas:
Joaquim Afonso Gonçalves é uma figura de capital importância no
contexto das relações culturais entre Portugal, Macau e a China no
século XIX. Fora do círculo erudito da sinologia portuguesa, a
memória da vida e da obra deste transmontano ilustre encontra-se
injustamente esquecida, delida por um tempo apressado que cura pouco
dos valores da espiritualidade e da cultura. Afora algumas
referências circunstanciais (...), é tempo de esta personalidade ser
convenientemente estudada.
No que mais de perto interessa a este trabalho, sublinha ainda o autor a
admirável abertura de espírito de Gonçalves – bem patente em toda a sua obra,
como adiante confirmaremos: “Será interessante reflectir no facto de um homem
formado numa matriz civilizacional latina e cristã se abrir compreensivamente a
uma mundivivência civilizacional outra, tão diferenciada e contrastiva, sem
complexos eurocêntricos e etnocêntricos” (Aresta, 2000: 680).
Num artigo posterior, Joseph Abraham Levi (2007) anuncia de imediato o carácter
inovador da obra portuguesa logo no título do seu trabalho, em seguida no seu
resumo, e por último no corpo e conclusões do seu texto, que se detém a
descrever detalhadamente a Arte,mas sem que se centre no assunto de que nos
ocupamos no presente trabalho: “Padre Joaquim Afonso Gonçalves (1781-1834) and
the Arte China(1829): an innovative linguistic approach to teaching chinese
grammar”.
2. O tríptico metalinguístico e didáctico de Joaquim Gonçalves em português e
chinês oitocentistas
De 1829 a 1833, o Padre Joaquim Afonso Gonçalves lançou ao prelo no Colégio de
S. José, em Macau, onde residia e leccionava desde 1813, um tríptico para o
ensino do chinês composto por uma gramática e dois dicionários que formavam um
conjunto pedagógico indissociável e incontornável, nas suas 2596 páginas de
estudo detalhado e contrastivo:
1. [4] Arte China / constante de / Alphabeto e Grammatica /
Comprehendendo Modelos das Differentes Composiçoens(Gonçalves, 1829)
2. Diccionario / Portuguez-China/ No estilo vulgar Mandarim e
Classico Geral (Gonçalves, 1831)[5]
3. Diccionario / China-Portuguez(Gonçalves, 1833)
O próprio autor explica o seu método integrado no Pròlogo à Arte China
(Gonçalves, 1829: I):
Sendo o meu intento dar ao Estudante da Lingua China todos os meios,
para entrar no seu conhecimento, e pratica, tanto na falla, como na
escrita; foi-me necessario fazer tres differentes volumes que devem
andar juntos, por fazer hum todo combinado, e necessario: combinado,
para não engrossar os volumes: necessario; porque ficão as suas
partes dependentes, e o Estudante nam obtera o seu fim sem a posse de
todas ellas: assim he, que a Arte he necessaria tanto por ensinar a
ler, traduzir, e compor, como por dar ideas, que facilitam o uso, e
intelligencia dos Diccionarios: o Diccionario China-Portuguez he
necessario ao Portuguez-China para a pronuncia, e uso das letras
neste indicadas.
Sendo obras reconhecidamente pioneiras no que toca a uma abordagem comunicativa
e contrastiva do chinês como língua estrangeira (ainda que ancorada em muita
tradução), atentas à adaptação contextual e à variação diafásica e diastrática
na produção e recepção linguísticas, em estilo “vulgar” como em estilo
“elevado”, nas vertentes coloquial e escrita, revelam um posicionamento
intercultural não menos inovador. São frequentes e ricas as referências
culturais que, transportadas pela própria língua que se explica (e não
meramente evocadas pelo autor, ou pelo professor, como peças soltas retiradas
de uma “arca” turística de factos de cultura e sociedade, numa anquilosada
perspetiva dicotómica ainda hoje tão repisada de “língua e cultura”),
desembocam na explicação breve das peculiaridades do mundo e do homem chinês,
em contraste com o português e ocidental. Tais informações culturais, sem as
quais a decodificação de uma língua nunca se faz em pleno, revelando-se hoje
datadas, inscritas na história e em grande parte arredadas da contemporaneidade
sino-portuguesa, continuam a valer pela visão que oferecem do outro e que
revelam do próprio, enquanto indivíduo e enquanto representante de um povo.
Para além das referências interculturais directas, existe ainda outra dimensão
notável e extremamente actual nestas obras, e em particular na Arte China:
a introdução equilibrada de exemplos, textos, diálogos, representando a
mundividência sínica ao lado da lusa, colocando em diálogo real as diferentes
religiões, raças, mentalidades, filosofias, experiências e visões do mundo em
presença no palco de conciliação que era (e é) Macau, às portas da China de
oitocentos.
Nos últimos dois séculos, não tenho notícia de que algum investigador tenha
recenseado, coligido e estudado essas referências, bem como as implicações e
intenções pedagógicas e linguísticas desse harmonioso diálogo intercultural, em
obras a tal ponto compendiosas e reflexivas que conjugam a linguística
contrastiva com as culturas, literaturas, filosofias e religiões comparadas. E
tudo isto num (simples) método de ensino-aprendizagem do chinês: o do Padre
Joaquim Gonçalves, lazarista, sacerdote da Congregação da Missão, muito
diretamente dirigido aos seus alunos, e precisamente por isso sem contar com as
muitas explicações que certamente lhes forneceria no decurso das aulas, apesar
da sua natureza enciclopédica e da notável organização e profundidade dos
conteúdos gramaticais e lexicais.
2.1. Das referências interculturais na Arte China
Logo no início do Prólogoà Arte China,apresentando os principais méritos do seu
método para aprendizagem tanto da língua escrita como da oral, Gonçalves
introduz a comparação didáctica, interlinguística e cultural para explicar a
peculiaridade da escrita chinesa, com recurso ao símile dos algarismos árabes
(Gonçalves, 1829: I):
Sendo as suas letras na sua origem geroglificos, como ainda hoje muitas o
mostrão v. g. c’ ouboca, menporta, indicam palavras, bem como os nossos
algarismos, e sam, como elles igualmente entendidos, mas differentemente
pronunciados nos differentes dialectos; mas poucas sam simplices como elles,
sendo as mais compostas de elementos, como as nossas palavras o sam de letras,
v. g. venperguntar; sem com tudo sacar huma pronuncia composta da dos
elementos; mas hum monosyllabo; e isto faz ver logo a maior difficuldade da
escrita China, á semelhança das linguas, que se nam escrevem, como se
pronunciam.
Ora, diante das dificuldades que entende oferecer, a nativos e a estrangeiros,
a aprendizagem da língua chinesa, considera o próprio Gonçalves inovador e mais
eficiente o seu método ao apresentar os caracteres chineses decompostos nos
seus elementos mínimos, a contrapelo do método tradicional na China, de
tratamento dos vocábulos como um todo:
Ainda que as letras sejam compostas de elementos, como temos visto,
os Chinas principiam por ensinar a ler as palavras, que encontram em
qualquer livro, sem ensinar os seus elementos, que vale o mesmo, que
ensinar a ler, sem ensinar primeiro o A B C (1829: I)
Para justificar estas diferentes perspectivas didácticas, buscando-lhes raízes
culturais e históricas, refere-se o P.e Joaquim Gonçalves ao carácter muito
estruturado do pensamento chinês, no âmbito do qual já poucas novidades se
considerava poderem vir a surgir, pois já tudo teria sido feito, e às
qualidades (embora podendo redundar em defeito) da humildade, acomodação e
obediência relativamente ao amplo legado tradicional e histórico com que não
poderia deixar de contar-se, numa civilização de tamanha antiguidade (ibid.:I):
Tem-se dito com bastante razam, que os Chinas fizeram ponto em artes,
e sciencias: ainda que presunçosos, estam geralmente persuadidos, que
nada podem adiantar, ao que os seus maiores descobriram, e ainda se
julgam mui avantajados, quando pensam ter chegado tam longe, como
elles; daqui vem huma aversam (maiore que em outros paizes) que tem
principalmente o Governo, a tudo, o que he mudança, sem examinar se
he boa, ou ma. Bem conhecem elles a vantagem, por exemplo, da arte da
navegaçam, e ainda se nam resolvem a aprende-la, aprendendo antes as
linguas europeas, em que ella se ensina; porque he huma innovaçam.
Bem poderião tambem conhecer a falta de methodo nas escolas da
propria lingua, e remedia-la: mas nam o fazem.
Todavia, existem igualmente, e com muito maior frequência, referências
interculturais diluídas como exemplos no interior dos capítulos e secções. Se
muitos desses contextos são tão consensuais, humanos e universais que
dificilmente precisariam de provir de uma fonte escrita específica, chinesa ou
portuguesa (por ex., “Em tôda a parte ha homens sisudos ”, ibid., 93, para
contextualizar as frases vulgares de letras de sete rasgos), e se outra parte
deles tem como principal intuito a simples e directa ilustração do aspecto
linguístico em causa (“Dôze homens batêrão em vinte mulheres ”, ibid., 90, para
exemplificar as frases de letras de cinco rasgos em estilo vulgar), outros há
em que claramente o autor pretende, não só ilustrar o facto gramatical
pretendido, mas ainda fornecer aos seus alunos, os seus primeiros leitores,
maioritariamente ocidentais, informações socioculturais e históricas do país e
das gentes cuja língua se dedicam a estudar. Veja-se um exemplo (Gonçalves,
1829: 90):
Os indígenas do paiz não podem passar sem amas de leite.
Esses contextos interculturais convivem muito equilibradamente no seu manual,
que chega, não raro, a casar numa mesma frase culturas, religiões, histórias da
China e de Portugal, da Europa, de Ocidente e Oriente. Em Joaquim Gonçalves
parece sobressair mais o professor do que o padre, o humanista do que o
evangelizador, o gramático e lexicógrafo curioso do que o religioso (ibid.,
124):
Mas desde logo, uma visão justa e equilibrada do outro começa com o
reconhecimento da sua diferença e o respeito do direito à mesma; a testemunhar
a verificação destas condições nas obras de Joaquim Gonçalves, temos no
Capítulo IV (Syntaxe) um dos exemplos de ablativo antes do verbo (ibid., 148):
É a aceitação dessas diferenças que leva este padre e evangelizador português
na China a admitir ou mesmo criar para a sua gramática e dicionários inúmeros
exemplos ou contextos que equilibradamente oferecem uma panorâmica igualitária
e quase sempre imparcial tanto da cultura e da visão do mundo chinesas como das
ocidentais e portuguesas, não edulcorando ou cerceando a História por motivos
evangelizadores ou que poderiam até ser da ordem da sobrevivência pacífica em
terras da China imperial (ibid., 95, entre os exemplos de frases vulgares de
letras de 8 rasgos):
Os excertos discursivos que apresenta, coloquiais ou de fonte escrita, não se
restringem ao que é católico, canónico, euro-centrado (ibid., 90):
A gente em todo o mundo pela maior parte he ma.
Isto embora, naturalmente, tampouco sejam incomuns os contextos ou exemplos
mais morigeradores e mesmo catequizantes:
Reforma-te e reformaràs os mais. (ibid., 91, nos exemplos de frases
sublimes de letras de 5 rasgos):
Muitas vezes, porém, essa catequização ou evangelização do leitor é delicada e
segue um princípio de descentramento extremamente inteligente e humano, pois
que feita através da selecção de textos e exemplos do outro – o autor prega
princípios que são também os católicos ou cristãos, mas eleitos e citados de
entre os clássicos da literatura, da filosofia, da religião e da cultura
transportados pela língua estrangeira em estudo. Veja-se, por exemplo, no
capítulo VIII, entre os modelos de composições, o início e o final daquele que
se oferece como modelo da Segunda oraçaõ periodica (atente-se igualmente nas
constantes explicações culturais e linguísticas por parte de Gonçalves, quer em
nota de rodapé, quer no correr do texto de Mâncio, ibid., 441-445):
Segunda Oraçaõ PeriodicaPor Iu-cham-ch’ am.
[6]
Naõ resistas ao marido.[a] Mom-çu.
[a] (He preceito dado por huma fi lga a sua fi que ia casar, referido
por Mom-çu.)
A virtude da mulher he naõ resistir, grande preceito; mas huma mulher
poderá resistir? quanto mais ao marido? tal he o preceito, que a mãi
da a filha, o ponto consiste nisto, e em mais nada. Haverá quem diga,
que nesta vida he infelicidade ser mulher; neste mundo o que custa
mais a dizer, he o que pertence aos casados; o que he necessario, he
esforçar-te a conservar a uniaõ, para naõ ficares para sempre mal
comigo: agora que vas principiar a atar o cinto, (ornato da
noiva,)usarei de reserva, e naõ te fallarei? Apartando-te de teus
pais, e indo para tua casa, nenhum dos senhores parentes, te torna a
ver; quem te importa, he so o marido, e mais ninguem (...) o homem
naturalmente he altivo, e deixar-se-ha elle abater por muito tempo?
naõ te fies no seu amor; fiando-te no amor, [tomarás
liberdades,]perderas a graça; posto que o marido talvez releve, no
principio releva por affecto, e depois se ira contra ti: o favor do
homem he mui delicado, e naõ terás cuidado? este he o emprego de toda
a tua vida: (...) tudo isto digo por propria experiencia, por isso ao
puxar-te pela manga, e vestido, (para partir), fallo-te com miudeza:
saõ chegados os coches, cantaõ os patos mandarins, vai, contenta o
teu noivo, vivei como irmaõs, e naõ sejas a desgraça de teus pais.
Esse equilíbrio e imparcialidade nos temas e opiniões representados perdem-se
raramente, mesmo em temas como o religioso, todavia, existem alguns testemunhos
de tomada de posição em favor da doutrina cristã, por exemplo, na questão,
célebre, dos ritos. O diálogo XLIV, Religiaõ ( ), entre um ocidental ou
português e um chinês, presumivelmente, dá conta dessa convivência menos
pacífica de religiões, quando se entra na dimensão quotidiana e prática (ibid.,
299-301):
[7]
Em alguns excertos quase que podemos surpreender um instante de uma aula do P.e
Joaquim Gonçalves, providencialmente dialógico, pois que saído do capítulo dos
Diálogos, em contextos muito específi e quiçá se harmonizassem aqui as práticas
magistrais do Ocidente ao Oriente (ibid., 231):
Um dos aspectos pioneiros da sua obra e do seu método de ensino-aprendizagem de
uma língua estrangeira é a constante preocupação, de excelente professor que
certamente seria, em representar tanto a língua oral como a escrita, quer a
formal quer a informal, em ampla variedade de contextos, quando necessário,
reais, e não somente de fontes literárias:
Sendo indespensavel, que o Estudante aprenda os dois estilos, de
fallar, e escrever, e sendo geralmente as regras as mesmas; na
Grammat[ic]a, posta a regra, ponho cada exemplo nos dois estilos, com
o que abreviei, e com huma vista se nota facilmente a differença
delles (p. inumerada, precedendo a 128)
Logo no Prólogo da parte relativa à Grammatica, o próprio autor alerta para a
necessidade que teve de incluir quer diálogos, ou seja, fontes orais, contextos
inventados ou reproduzidos (já que as fontes escritas não passariam de
sucedâneos para o estudo da língua falada ou vulgar), quer igualmente exemplos
históricos e literários, para ilustrar a vertente formal da língua, alguns de
fontes escritas, mas outros certamente de sua autoria, já que referem
circunstâncias da sua época e contexto social, geográfico e situacional:
Ainda que procurei incluir todos os torneios mais avessos a nossa
lingua na Grammatica, foi necessario para o exercicio do estilo
vulgar multiplicar os dialogos, pela falta de livros neste estilo; e
para a intelligencia do sublime, dar noticia da Historia, e
differentes Composições Chinas (p. inumerada anterior à 128)
Devido a esse facto, são muito abundantes, embora ocasionais, as referências
históricas nos exemplos gramaticais e lexicográficos, capazes de conceder
profundidade e pormenor ao espaço temporal e físico durante o qual e no qual o
autor construiu as suas obras. No capítulo III, de morfologia, entre os
exemplos de gerúndios, figura a primeira referência directa à cidade onde
vivia, escrevia e aplicava os seus exercícios e livros (ibid., 139; 140):
Em Macao naõ ha arrôz para vender.
Sendo imperador Kia-Kim a religião Christã foi mui perseguida.
Abundam igualmente na sua Arteda Gramática valiosas referências às cidades
chinesas tal como seriam na época, aos produtos comercializados, a episódios
históricos mais ou menos importantes e passíveis ou não de se acharem
registados ou mais directamente explicados em obras literárias chinesas (ibid.,
121):
[8]
Em contextos culturais novos, também as palavras evidenciam a sua flexibilidade
e continuam a adaptar-se semanticamente, como já acontecera também ao
transitarem, no nosso caso, para a zona noroeste da Hispânia, onde vieram
engrossar o caudal lexical da língua a que veio a chamar-se galego-português.
Veja-se, a título ilustrativo, o caso de calamidade, etimologicamente um
cataclismo económico, que afectava a sobrevivência, resultante da destruição
dos caules (< calamum) do trigo, das searas, mas na China naturalmente aplicado
à destruição dos casulos dos bichos da seda, nesse início do século XIX,
algures na cidade de Xuntien; Gonçalves, o linguista, é um tradutor requintado,
conhecedor de etimologia (ibid., 126):
Em todos os casos até agora referidos, as referências culturais e
interculturais poderão ser da responsabilidade do autor ou apenas por ele
admitidas e traduzidas de fontes chinesas, que deverão naturalmente ser
primeiro identificadas e estudadas no seu conjunto, de forma que possamos
avaliar que tipo de tratamento lhes deu o P.e Joaquim Gonçalves[9]. Existe,
porém, outro tipo de referências que não é possível estudar do ponto de vista
chinês, já que delas não existe versão chinesa nestas obras bilingues; trata-se
de explicações contextuais, diante de um vocábulo, colocação, idiomatismo,
exemplo ou versão portuguesa previsivelmente difíceis de compreender por
estudantes ocidentais ainda pouco familiarizados com a China. Nestes casos,
somente a identificação, colecção e categorização prévias de todas as
referências, na Arte China,no Diccionario Portuguez-Chinae no Diccionario
China-Portuguez,por parte de um investigador que conheça a língua portuguesa
oitocentista, tornarão possível uma colaboração futura com investigadores da
língua e cultura chinesas do século XIX a fim de tratar e analisar no seu
conjunto essa informação, retirando conclusões históricas,sociais, culturais
com interesse para o estudo das relações luso-chinesas, da linguística
contrastiva e da didáctica das línguas estrangeiras (em particular da relação
indissociável entre língua e cultura, pois achando-se a cultura já representada
e imbricada na própria língua, é pouco produtivo, senão mesmo empobrecedor, o
princípio do tradicional “ensino da cultura”, dissociada da própria
linguística, que por vezes se pretende impor como medida positiva).
Vejam-se, por exemplo, as seguintes passagens da Arte China,a primeira
representando o conjunto das eventuais traduções de fontes escritas chinesas,
enquanto as restantes são parte de diálogos extremamente vívidos, imitativos ou
colhidos em contexto real (ibid., 198; 241-242; 268):
align="center">Ja he dia claro, a sombra vem a travez da janella. (As
casas Chinas olhão para o sul.)
Embora o P.e Gonçalves não forneça habitualmente amplas explicações e
comentários descritivos na sua gramática e manual de ensino do chinês, já que
ele mesmo se encarregaria de os fazer diante dos estudantes – os primeiros
leitores a quem se destinavam os seus livros impressos (veja-se como se dirige
ao aluno, tuteando-o sempre ao longo das três obras referidas, para o
aconselhar a ir ler ou estudar alguma passagem de interesse) –, surgem por
vezes esclarecimentos, que podem ser de natureza intercultural; leia-se, por
exemplo, a nota informativa que acrescenta para justificar, no Capítulo V, a
longa secção dos Provérbios (ibid., 308):
PROVERBIOS (a) (Pela leitura deste capitulo se formará huma idea da
moral dos Chinas, que da sua Mythologia fallão pouco, segundo o
exemplo, e conselho de Confucio.)
Quanto ao Capítulo VII da sua gramática e manual de Chinês, intitulado
HISTORIA, E FABULA, a que frequentemente se allude no discurso,é na íntegra um
riquíssimo acervo de informação cultural, importante para a compreensão global
de uma língua de família tão diferente e de ubicação física e enraizamento
sociocultural e histórico tão distantes da portuguesa.
Logo no seu início, a propósito das figuras dos reis chineses, anota (ibid.,
327):
Fu-hi riscou os 8 diagrammas. (a) (A Historia China regeita, como
fabuloso, tudo, o que se escreve, anterior a estes reis.)
Xen-num inventou o arado.
Hoam-ti inventou os barcos, e carros. 2696. A. C. (b) (Os annos antes
de Christo mostraõ o principio da Dynastia, que serve de epoca: os
Chinas naõ tem certeza desta data, e muito menos de outras
antecedentes: ve...)
Mais adiante, no §. 11. Extractos da Historia, e Fabula, a que frequentemente
se allude nas Composições Chinas (ibid., 343), alinham-se centenas de figuras
habitualmente mencionadas nos textos em língua chinesa, e para os quais o
estudante estrangeiro necessita de uma “chave intercultural”, fornecida pelo
docente ou autor da gramática. Separando na primeira secção as figuras da
História e na segunda as que costumam destacar-se como pertencendo ao domínio
da fábula, Gonçalves vai acrescentando sintéticas indicações culturais:
HISTORIA. (a) (Ainda que huma parte he fabula, (como o Estudante
poderá observar), naõ he tida por tal nos livros Chinas...)
No extracto ou explicação histórica número 23, em que se explicam as figuras
que ficaram histórica e literariamente conhecidas como “Os bons sócios”,
regista-se mais um caso de mediação intercultural (ibid., 348):
Os Bons socios:negociavaõ ambos, ainda que o primeiro gastava mais,
por ser pobre: havendo revoluçaõ no reino, o primeiro fugiu com o
infante, e o segundo com o principe; sendo estes procurados por morte
de seu pai, voltaraõ ao reino, e encontrando-se, contenderaõ sobre a
coroa: atirando o infante huma setta, que deo na pedra do cinto do
principe, e encolhendo-se este, entendeo ter cahido morto; dormiu por
tanto descançado aquella noite; mas sabendo pela manhã, que seu irmaõ
estava rei, se retirou a hum reino visinho com Cuon Chum, seu guarda,
como para logo o executar, mas realmente para empregar os seus
talentos no seu serviço: voltado este, foi feito ao mesmo tempo
ministro, e general, e a elle se deve naõ invadirem a China os
barbaros de Noroeste, de cabello cortado, e aba do vestido para a
esquerda: (o China abotoa da esquerda para a direita.)
O extracto número 128, em que a compreensão de um idiomatismo implica o
conhecimento ou estudo de todo um episódio, lenda ou história factual, é um bom
exemplo de como a aquisição integral de uma língua se acha dependente de factos
da história e da cultura, como todo este capítulo aliás evidencia (ibid., 372):
Iam-hium-po O Semeador de perolas:encontrou hum desconhecido em hum
caminho, o qual lhe deo humas sementes, que naõ conhecia, dizendo-lhe
ao mesmo tempo, que as fosse semear na sua terra, por que lhe haviaõ
de ser uteis; voltando elle, as semeou no seu campo Azul (?)[10] e
pertendendo depois casar com huma bella menina, cuja mãi exigia por
ella duas pedras preciosas, que elle naõ tinha, depois de pensar
muito, foi cavar no campo Azul, e em lugar de duas achou dez, que deo
pela menina; por isso hoje o passar as arras se chama semear pedras
no campo Azul.
No extracto 188, mais uma referência cultural necessária ao entendimento
ocidental da língua (ibid., 385):
O Saudoso morto:sendo dois condiscipulos mui intimos, nunca o
primeiro soube, que o segundo era rapariga; se bem ella lhe dizia
algumas gracinhas, naõ entendia: para se livrar de toques, por onde
fosse conhecida, naõ queria brincar, e se brincavaõ com ella,
propunha sempre algum jogo, em que se perdia papel de comprimento de
hum homem, (a folha China he comprida,)o que os outros naõ queriaõ;
acabados 3 annos de escola, recolhendo-se a casa, disse Chu-im-t’ ai
ao companheiro, que fosse a sua casa, que lhe queria dar huma irmã em
casamento; indo elle depois a sua casa, veio a saber, que a irmã
promettida era ella mesma; mas que por desgraça, estava ja ajustada
por sua mãi, para casar com outro; voltou por tanto para casa com
grande sentimento, que cresceo tanto, que delle morreo; casada a
menina, foi hum dia visitar a sepultura do seu condiscipulo, e a
terra se abriu, e a enterrou com elle.
Em §. III. Alluso?s á Historia, e Fabula,o próprio autor apresenta numerosos
contextos chineses, começando sempre pela tradução portuguesa, contendo cada
qual uma referência histórica ou fabulosa contida nos extractos de História ou
de Fábula anteriormente explicados; o mestre tornava assim evidente, portanto,
a importância do seu conhecimento e estudo. Essa contextualização literária
exige, em alguns casos, informação cultural suplementar, que o “tradutor”
acrescenta no lugar apropriado, entre parênteses rectos, respeitando o original
na sua tradução, embora não dê habitualmente conta das suas fontes nem refira
estar a traduzir (ibid., 402):
No início do capítulo XVIII, dedicado às Composições Chinas,no seu §. I. Regras
de Rhetorica, e Partes da Oraçaõ, opróprio mestre dá testemunho de como
pretendia a sua Arte Chinabem enraizada, não esquecendo o contexto cultural, as
referências literárias, históricas, folclóricas, sem as quais os elementos
linguísticos isolados, as formas, não sobrevivem em língua alguma, ou seja,
deixando clara a posição, muito inovadora, de que entre língua e cultura não
existe qualquer divórcio (ibid., 422):
Devendo comprehender tantas materias em hum so volume, naõ me posso
estender em todas ellas: neste artigo pois vou apresentar em resumo
as leis, e ornatos Rhetoricos na ordem costumada dos Chinas...
Para os tempos modernos, recordarei um simples exemplo ilustrativo: um
estudante de português como língua materna só compreenderá o que se pretende,
no âmbito da cozinha, quando se pede um salazarcaso conheça a história de
Portugal e do ditador Oliveira Salazar, que, segundo a vox populi,terá rapadoos
bens ao povo do mesmo modo que esse raspador há-de arrancar os restos da massa
do bolo agarrados à tigela. Não se trata de ensinar ou aprender História em
partes estanques da aula em que se explora a “mala dos factos e tradições
folclóricas dos países de língua portuguesa”, trata-se de estudar Linguística e
língua, já que são sempre as próprias unidades e combinatórias lexicais a
transportar no seu interior essa “bagagem de factos históricos e
socioculturais”.
Os referidos modelos de composição chinesa encerram igualmente informações
culturais de utilidade para o falante estrangeiro; veja-se o início do modelo
de Edital (ibid., 467, a versão portuguesa; 468, o texto chinês):
A prohibir as mulheres de ir aos pagodes, a offerecer incensos. Por
Hoam-leu-hum.
(Publica-se este) para prohibir a propagaçaõ da luxuria, e ruina da
boa moral, e reformar os costumes. Consta, que he da recta razaõ,
cuidarem as mulheres em estar recolhidas no seu repartimento, (as
mulheres moraõ à parte)...
2.2. Das referências interculturais no Diccionario Portuguez-China
No Diccionario Portuguez-China(1831), Joaquim Gonçalves inclui entre as
Advertenciasessa noção de que os equivalentes linguísticos, enformados por
distintas culturas e em diferentes pontos geográficos, não são, muitas vezes,
coincidentes, mas apenas aproximados (Gonçalves, 1831, II):
8. Sendo as vezes em climas taõ distantes as coisas naturaes mui
differentes das nossas, muito mais o saõ as instituições humanas;
assim quando traduzo v. g. Rabeca naõ pense o estudante, que este
instrumento China he inteiramente como o nosso.
9. Algumas coisas ha na Europa, que nem por semelhança ha na China, e
as avessas; neste caso ponho algumas vezes o som da palavra
Portugueza em letras Chinas, ou as avessas: outras vezes as omitto
inteiramente: muitos destes sons estando ja corrompidos pelo uso,
pensei melhor seguir o costume, e assim escrevi, v. g. Ginsaõ,se bem
que em China Mandarim soa Jen xen:logo se conhece, que a palavra naõ
he classica, quando tem a prenuncia tirada do China.
Ao referir a importância do estudo contextual do léxico (na estrutura, na
frase) – contextualização que alarga, na gramática, à prática da língua em
contextos reais, admiravelmente coloquiais no português do século XIX, quer
formais quer informais ou vulgares –, bem como a relevância do seu enraizamento
cultural (ideias inovadoras para a época num dicionário bilingue), o autor
justifi ainda a sua isenção, ou intencionalidade linguística não judicativa,
diante da inclusão, como faria qualquer lexicógrafo leigo, de entradas pouco
“católicas” (por exemplo, abôrto, procurar abôrto,etc.):
10. Considerando, que ha grande difficuldade em traduzir muitas
frases, e que o sentido, e uso de huma palavra se naõ pode algumas
vezes exprimir bem senaõ por huma sentença; demais disto, que seria
util algumas vezes mostrar a doutrina singular do China sobre algum
assumpto (sem a approvar), sobrecarreguei (ao parecer) o Diccionario
de frases. (ibidem)
Apresento de seguida o inventário de algumas das referências culturais mais
relevantes oferecidas no Diccionario China-Portuguez(1831), cujo estudo futuro
para determinação de eventuais fontes em ambas as línguas poderá trazer alguma
luz sobre o material utilizado por Joaquim Gonçalves para a construção do seu
método de ensino-aprendizagem do Chinês e sobre a bibliografia chinesa
conhecida em Macau entre os missionários de oitocentos.
Frequentemente, ao fornecer um equivalente português para um lema, ou expressão
que o contém, e diante da sua correspondência imperfeita ou indutora em erro,
por não coincidência dos conceitos, o lexicógrafo alerta o utilizador através
de informações socioculturais:
_______________________________________________________
|ABRAÇAR_______________________________________________|
|--_pelo_pescoço_______________________________________|
|--_pela_cintura__Naõ_se_pratica.______________________|
|BOTAÕ_________________________________________________|
|--_de_pao_dourado______________________________________|
|Casa_do_–__O_China_usa_de_Alamares___________________|
|(...)__________________________________________________|
|--_do_barrete_Ve_INSIGNIA______________________________|
|RIO____________________________________________________|
|(Rios_da_China)_Amarello,_e_Kiam_______________________|
|3_deoses_do_–________________________________________|
|Da_outra_banda_do_–_Kiam_____________________________|
|Para_a_parte_de_cima_do_–____________________________|
|Á_direita,_e_esquerda_do_–_Kiam_____________________|
|Á_esquerda_do_–__(O_China_volta-se_segundo_a_corrent|.)
|SEMANA_________________________________________________|
|De_dez_dias[11]________________________________________|
Como o próprio autor referia no início do seu trabalho, no tocante à
lexicografia bilingue é comum não existirem perfeitos equivalentes; quando
ocorre uma flagrante falta de correspondência, que pode atingir o inverso do
termo “traduzido”, entra o autor com as suas explicações culturais:
_____________________________________________
|CASTIÇAL____________________________________|
|--_do_candieiro______________________________|
|Boca_do_–__O_China_espeta_a_vela_em_hum_pre|o
|DIREITA______________________________________|
|Dar_a_–_(na_China_he_a_esquerda)___________|
|ESPORA_(usa-se_chicote)______________________|
A informação fornecida no lema direitapara aclarar o equivalente chinês é
noutras entradas complementarmente oferecida no exemplo, como reforço
didáctico, que é preocupação de qualquer bom professor:
HONRADO
Homem –
Na Europa a direita he a mais –
Em outros casos, a informação sociocultural e histórica é directamente
transmitida pelos próprios exemplos seleccionados ou criados, e facilmente esta
sua criação ou selecção pode dar informação sobre o autor e o(s) mundo(s) em
que se move (um palco chinês onde se movimenta como português):
_____________________________________________________________________
|NAVIO________________________________________________________________|
|--_de_guerra_________________________________________________________|
|--_de_pôr_fogo______________________________________________________|
|--_cruzeiro__________________________________________________________|
|--_mercante__________________________________________________________|
|Os_–_mercantes_saõ_originalmente_navios_dos_embaixadores_occidenta|s
|PORTUGUÊZ___________________________________________________________|
|Os_–_vieraõ_a_China_no_reinado_de_Van-li_da_dynastia_Mim__________|
|RECONHECER___________________________________________________________|
|(...)________________________________________________________________|
|Naõ_reconheço_senaõ_o_rei_de_Portugal_____________________________|
|CABELLO______________________________________________________________|
|(...)________________________________________________________________|
|Do_–_fazem_hum_rabo_de_mais_de_hum_covado_para_traz________________|
|NAÕ_________________________________________________________________|
|(...)________________________________________________________________|
|Teria_Confucio_a_Fó_por_santo?_certamente_--________________________|
|MULTIPLICAÇAÕ______________________________________________________|
|A_--,_e_divisaõ_principiou_na_figura_Lo-xu__________________________|
|PORCELANA____________________________________________________________|
|Famosa_fabrica_de_--,_na_villa_Fu-Leam_______________________________|
|RONDAR_______________________________________________________________|
|O_vigia_da_matraca_ronda_as_ruas_____________________________________|
|DECENTE______________________________________________________________|
|Naõ_nos_he_–_correr_na_rua________________________________________|
|PROHIBIR_____________________________________________________________|
|(...)________________________________________________________________|
|As_leis_prohibem_o_vinho_____________________________________________|
|RESPEITO_____________________________________________________________|
|(...)________________________________________________________________|
|Isto_escrevi_com_--,_lavando_as_maõs________________________________|
|Isto_escrevi_com_--,_purificando_o_corpo_____________________________|
Ou então, surge na contextualização do lema, ou nas restrições e âmbitos de
uso:
_________________________________________________________________________
|PRÉGÁR_________________________________________________________________|
|--_o_Decreto_(instrucçaõ)_imperial_todos_os_mezes_do_10_ate_aos_16_da_l|a
|--,_os_pobres_fabulas_na_rua_____________________________________________|
Tendo em conta que a inscrição da língua numa cultura e num tempo histórico a
condiciona directamente, o dicionário é um repositório de numerosos termos e
combinatórias lexicais que já transportam e exigem semanticamente toda a
informação cultural e histórica que o lexicógrafo se vê na necessidade de
acrescentar, na forma de sub-entradas, as quais marcam necessariamente uma
época, na qual estão ou estiveram vigentes exactamente desse modo. Se é muitas
vezes preciso contar a história e traduzir a cultura que a língua exige, também
é possível, inversamente, reunir e enriquecer a história com a informação
muitas vezes contida nas palavras, em obras de natureza metalinguística. As de
Gonçalves são obras enciclopédicas interculturais que impuseram certamente
notável esforço de pesquisa e sistematização. Vejam-se as seguintes entradas:
_______________________________________________________________________________
|ARTE___________________________________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|As_seis_–____________________________________________________________________|
|(que_saõ)_Ritos,_Musica,_Arco,_Coche,_Escritura,_e_Arithmetica________________|
|CONSELHO_______________________________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|Os_6_conselhos_________________________________________________________________|
|--_de_estado___________________________________________________________________|
|--_da_fazenda_<________________________________________________________________|
|--_dos_ritos_<_________________________________________________________________|
|--_da_guerra_<_________________________________________________________________|
|--_da_justiça_<_______________________________________________________________|
|--_das_fabricas_<______________________________________________________________|
|--_grande_(dos_6_presidentes,_e_3_ministros)___________________________________|
|--_privado_da_guerra___________________________________________________________|
|CRIME__________________________________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|Os_10_–_irremissiveis________________________________________________________|
|Ruina_do_throno________________________________________________________________|
|Ruina_de_coisas_reaes__________________________________________________________|
|Deserçaõ_____________________________________________________________________|
|Parricidio_____________________________________________________________________|
|Extincçaõ_de_huma_familia____________________________________________________|
|Roubo_de_templo,_ou_paço,_e_Fazer_sello,_ou_moeda_falsa_______________________|
|Naõ_honrar_os_pais____________________________________________________________|
|Desordem_com_os_parentes_______________________________________________________|
|Morte_de_magistrado,_e_incesto_________________________________________________|
|DESCANÇO______________________________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|Tres_tempos_de_--______________________________________________________________|
|Noite,_Inverno,_e_Chuva________________________________________________________|
|DRAMA__________________________________________________________________________|
|4_especies_de_--,_Tragico,_Comico,_Repartido,_e_Unido__________________________|
|FALTA__________________________________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|As 4 faltas: de palavra, de paciencia, de honra, de moderaçaõ |
|_______________________________________________________________________________|
|INSÍGNIA______________________________________________________________________|
|--_na_maõ_____________________________________________________________________|
|Nota. A – da nobreza China, que na dynastia presente se reduz aos empregados,|
|principalmente_consiste_no_remate_do_barrete,_como_se_segue____________________|
|A primeira, e segunda ordem tem remate de pedra preciosa vermelha (o da segunda|
|mais_pequeno)__________________________________________________________________|
|A_terceira,_e_quarta_de_pedra_azul_____________________________________________|
|A_quinta_de_cristal,_ou_vidro_claro____________________________________________|
|A_sexta_de_jaspe,_ou_vidro_baço_______________________________________________|
|A_setima,_oitava,_e_nona,_de_ouro_lavrado______________________________________|
|(em_resumo)____________________________________________________________________|
|JURAMENTO______________________________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|(Formas_de_--)_Hum_raio_me_mate________________________________________________|
|Se_engano,_morra_aqui__________________________________________________________|
|O_ceo_me_mate,_e_a_terra_me_aniquile___________________________________________|
|(Ceremonias_de_--)_degollar_gallinha___________________________________________|
|Tocar_o_dragaõ_azul___________________________________________________________|
|--_a_tigela[12]__(No_Norte_naõ_ha_estas_tres.)________________________________|
|Com_sangue_proprio_nos_beiços_________________________________________________|
|POÉMA_________________________________________________________________________|
|6_especies_de_–_(3_especies_de_assumpto,_e_3_de_estillo)_____________________|
|Povo,_Rei,_Pagode;_Directo,_Metaphorico,_e_Alusivo_____________________________|
|POVO___________________________________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|4_classes_de_–_______________________________________________________________|
|Estudante,_Lavrador,_Artista,_Mercador_________________________________________|
|PRIVILÉGIO____________________________________________________________________|
|Os_8_privilegios_______________________________________________________________|
|(Que saõ:) – de infante, de valido, de benemerito, de virtude, de valor, de |
|industria,_de_nobreza,_de_sangue_real__________________________________________|
|PROVÍNCIA_____________________________________________________________________|
|As_18_provincias_da_China______________________________________________________|
|PROVINCIAS_DA_CHINA,_E_SUAS_METROPOLIS._[seguem-se_os_seus_nomes]______________|
|SACRIFÍCIO____________________________________________________________________|
|(4 sacrificios do imperador) Ao ceo, a terra, aos montes e rios, aos deoses do |
|tempo_e_searas_________________________________________________________________|
|--_a_Ceo,_e_terra______________________________________________________________|
|--_de_cha_aos_defunctos__Ve_FESTA______________________________________________|
|--_aos_defunctos_desamparados__________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|Sacrificios_humanos_(pelos_regulos_de_Sum,_e_Siam_)____________________________|
|SÉITA__Ve_RELIGIAÕ___________________________________________________________|
|(...)__________________________________________________________________________|
|3_seitas_(da_China,_approvadas)________________________________________________|
|--_dos_Letrados,_--_de_Fó,_--_de_Tau._________________________________________|
|--_(tollerada)_Mehometana______________________________________________________|
|-- (prohibidas:) A Religiaõ Christã, a seita dos Trez, a do Ceo e Terra, a da|
|flor_de_Trate_branca___________________________________________________________|
|SOCIAL__Ve_ORDEM_______________________________________________________________|
|As_5_relações_sociaes________________________________________________________|
|Que saõ: Do rei e vassallo, do pai e filho, dos consortes, dos irmaõs, e dos |
|amigos_________________________________________________________________________|
Por vezes, a informação interlinguística parece coincidir, servindo a
observação do lexicógrafo para chamar a atenção do utilizador ou estudante
diante de discrepâncias pragmáticas (neste caso, o costume chinês torna o termo
redundante):
INCLUSIVAMENTE
Desde a primeira ate a quarta Lua –
(O China sempre conta inclusivamente.)
Noutros casos, apenas se acrescenta informação histórica ou sociocultural que
vem a propósito do lema e o completa, sem que esteja necessariamente implicada
qualquer divergência de tipo linguístico entre o termo de partida e o seu
equivalente e/ou significado.
______________________________________________________________________
|ALGODAÕ_(introduzido_no_seculo_13)___________________________________|
|-_bengalim____________________________________________________________|
|IMPRENSA______________________________________________________________|
|--_de_apertar_________________________________________________________|
|Taboas_da_--,_gravadas________________________________________________|
|(Auctor_da_–_anno,_220)_____________________________________________|
|(O_ministro_protector_da_–)_________________________________________|
|SÊLLO________________________________________________________________|
|--_de_empregado_______________________________________________________|
|--_do_imperio_________________________________________________________|
|Tirar_os_–_dos_edictos______________________________________________|
|Nota._O_sello_naõ_consta_senaõ_do_nome_do[s]_officiaes_em_letra_anti|a
|TISANA(de_que_o_China_usa_muito_no_veraõ)____________________________|
Sendo um dicionário também, necessariamente, uma obra ideológica, existe por
vezes nos exemplos apresentados curiosa informação datada, de valor filosófico,
religioso e sociocultural, que somente através de uma aturada pesquisa de
fontes se poderá determinar a que ambiente, código de conduta e língua diz
respeito, numa obra bilingue ou multilingue:
______________________________________________________________________________
|DEMANDA_______________________________________________________________________|
|(...)_________________________________________________________________________|
|No mundo naõ ha coisa, que arruine mais a fazenda, e a casa, que crie mais |
|inimigos,_e_queixas,_do_que_as_demandas_______________________________________|
|MINISTRO__Ve_MAGISTRADO_______________________________________________________|
|(...)_________________________________________________________________________|
|Fóm-tan_foi_–_de_cinco_dynastias_succesivas________________________________|
|A_casa_do_–_he_a_corte_celeste_do_mundo_____________________________________|
|O_–_firme_he_recto,_e_o_que_condescende_por_temor,_he_lisongeiro_(valido)___|
|O_rei_he_o_ponteiro,_e_o_–_a_sombra;_move-se_o_ponteiro,_e_a_sombra_segue-o_|
|SEVERO________________________________________________________________________|
|A rainha de Cham era taõ severa, e prudente, que elrei de Leam (marido) tinha|
|medo_della____________________________________________________________________|
A proveniência de exemplos mais marcadamente literários, como é o caso destes
últimos, suscita a curiosidade quanto às obras chinesas conhecidas e
aproveitadas por Joaquim Gonçalves, e ainda quanto ao valor proverbial e
idiomático de certas construções passíveis apenas de sofrer uma transposição
explicativa na língua portuguesa, sem equivalente ou com equivalentes que não
foram (ainda) determinados. Terão alguns contextos ou expressões fonte chinesa
ou ocidental? É natural que, para o ensino do chinês como língua estrangeira,
um professor não nativo e autor de obras metalinguísticas se socorra
essencialmente de fontes autênticas e locais, maioritariamente escritas,
clássicas e populares. Provirão outros do senso comum, farão parte das
convicções portuguesas, chinesas ou especificamente de Macau? Considerem-se,
por exemplo, os seguintes:
____________________________________________________
|MIÓLOS_____________________________________________|
|Naõ_se_devem_comer_os_–_dos_animaes______________|
|MUNDO_______________________________________________|
|(...)_______________________________________________|
|Quem_quer_conhecer_o_--,_deve_ler_a_historia_antiga_|
|As_coisas_do_–_saõ_mudaveis,_e_indignas_de_affei?aõ
|(...)_______________________________________________|
|Este_mundo_he_so_huma_hospedaria____________________|
|(...)_______________________________________________|
|O_homem_he_hum_pequeno_–__________________________|
|NAMORAR_____________________________________________|
|(...)_______________________________________________|
|O_–_por_palavras,_e_gestos_he_peccado_de_50_graos_|
|POESIA__Ve_a_ARTE___________________________________|
|A_–_move_o_Ceo,_e_a_terra,_e_commove_os_espiritos_|
|A_–_nasce_do_gosto,_e_a_musica_da_poesia__________|
|Dar-se_à_--,_para_temperar_o_genio_________________|
|REPUTAÇAÕ_________________________________________|
|(...)_______________________________________________|
|A_mulher,_perdida_a_--,_se_enforca,_e_acaba_________|
|SERÊA______________________________________________|
|O_osso_de_–_he_bom_para_parir[13]_________________|
|SERPENTE____________________________________________|
|A_–_he_agouro_de_rapariga_________________________|
Um dos raros autores que se depreende facilmente haver constituído fonte dos
seus trabalhos, e cuja obra não será estéril pesquisar (tendo em conta as vezes
que o cita e a raridade com que menciona obras ou nomes de outros), é Confúcio:
RENUNCIAR
(...)
Confucio renunciava 4 coisas: a vontade, prevençaõ, teima, e egoismo
Falta igualmente determinar a que contexto específico (de Macau, da China
continental?) se referem as explicações contextuais acrescentadas em certos
lemas:
MOEDA
(Naõ ha senaõ a de cobre, que responde ao real: a prata se usa em
barras com cunho)Ve PRATA
Em outros casos, a própria entrada ou combinatória lexical a ela subordinada
oferecem de imediato informação histórica e sociocultural, que seria
interessante desenvolver para fins didácticos – e com as quais o P.e Joaquim
Gonçalves não tinha necessidade de engrossar as suas já monumentais obras,
tendo em conta que, durante as suas aulas, poderia explicar, e certamente
explicava, desenvolvidamente cada aspecto aos mesmos alunos para quem as tinha
redigido ou publicado. Assim, por exemplo, após o lema Infantenão existe uma
entrada Infanticídio, mas sim, muito culturalmente marcada, a que a seguir se
lê:
__________________________________________________
|INFANTICÍDIO_das_meninas_________________________|
|ESCALER___________________________________________|
|(...)_____________________________________________|
|--_de_meretrizes__________________________________|
|JALEIA[14] |
|__________________________________________________|
|--_de_corno_de_veado______________________________|
|--_de_vompite_____________________________________|
|MÃI______________________________________________|
|--,_primeira_mulher_do_pai________________________|
|--,_concubina_do_pai______________________________|
|NAVEGAR___________________________________________|
|--_por_terra_(brinco_do_imperador)[Suiyang]_______|
|NINHO_____________________________________________|
|(...)_____________________________________________|
|--_de_passaro_(comestivel)________________________|
|SEPULTURA__Ve_GRADUAÇAÕ_________________________|
|(...)_____________________________________________|
|Ficar_sem_--______________________________________|
|Visita_as_–_(a_5_de_Abril)_Ve_FESTA_____________|
|Por_papeis_nas_–________________________________|
|TÔRRE____________________________________________|
|--_de_9_andares_(dedicados_a_outros_tantos_deoses)|
|(...)_____________________________________________|
|Ultimo_andar_da_--,_dedicado_ao_supremo___________|
Uma nota curiosa nos suscita a existência dos lemas patacae patacoada; as
unidades monetárias, tal como as de peso e medida, podem caracterizar uma época
e um lugar, e patacaremete de imediato para o território de Macau; contudo,
patacoadarevela um valor etimológico ainda sem a evolução semântica
posteriormente verificada:
______________________________
|PATACA________________________|
|A_–_vale_7_mazes,_e_2_condri|s
|PATACOADA_Ve_OSTENTAÇAÕ_____|
Algumas expressões sob um lema que não impõe(m) qualquer dificuldade ou
discrepância lexical interlinguística podem simplesmente invocar informação
histórica e cultural cuja investigação e aclaramento se deixam por completo à
iniciativa do utilizador, e que será útil compilar e acrescentar a uma nova
edição destas obras, devidamente modernizada e anotada para uso didáctico
(projecto em curso):
__________________________
|FORCA_____________________|
|Praça_da_–_____________|
|--_--_--_em_Pekim_________|
|INTÉRPRETE_______________|
|Junta_dos_4_–___________|
|LAGO______________________|
|Os_5_--___________________|
|O_–_Po-iam______________|
|LIVRARIA__________________|
|--_imperial_______________|
|Catalogo_das_4_–_imperia|s
|MÉDICO___________________|
|(...)_____________________|
|(4_celebres_--)___________|
|MONTE_____________________|
|Os_5_--___________________|
São abundantíssimos os exemplos e combinatórias lexicais capazes de suscitar a
curiosidade do leitor ou do linguista, pela ausência de uma informação
contextual que se faz necessária, mas que falta investigar. Veja-se este lema,
a título de exemplo:
___________________
|PEGAR__Ve_PRENDER__|
|--_o_vicio_________|
|--se-lhe_o_vicio___|
|--_nelle___________|
|--_a_orelha_cortada|
3. Conclusão
Aproveitando o projecto já em curso de reedição e edição crítica das obras do
Padre Joaquim Gonçalves, tanto manuscritas como impressas (fora do mercado e
com deficiências tipográficas várias), teria, a meu ver, especial interesse que
investigadores especializados em estudos linguísticos e interculturais
português-chinês, com amplo conhecimento da cultura e da história da China, em
colaboração com investigadores do âmbito da História da Língua Portuguesa, da
ecdótica e da historiografia linguística, aprofundassem o estudo destas
referências e as completassem, determinando as suas fontes e enraizando-as na
literatura chinesa, para uso contemporâneo no âmbito do ensino-aprendizagem do
chinês por aprendentes estrangeiros, mas também do estudo contrastivo do
português por estudantes de língua materna chinesa, já que esses serão aspectos
susceptíveis de colocar entraves a uma aquisição ampla de qualquer um desses
idiomas enquanto língua estrangeira ou segunda.
Por outro lado, constituem estas obras um campo de estudo riquíssimo do
imaginário chinês e português em contacto, da construção da imagem do outro, da
apreensão cruzada de culturas, das consequências quotidianas, locais, da
experiência portuguesa dos Descobrimentos em terras orientais. Transcrevo, a
encerrar este trabalho, e como símbolo do convívio harmonioso de línguas,
culturas e povos, e do mais que nele se procurou significar, um dos diálogos
didácticos de Joaquim Gonçalves (1829: 252-254), admirável no seu recorte
coloquial, sublimemente enraizado no contexto de que se fala, a Macau
oitocentista, e sempre acompanhado das explicações do mestre, para um melhor
entendimento intercultural: