As estórias de Luuanda como 'fábulas angolanas': entre disjunções e
confluências
Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no
próprio indivíduo?
Amadou Hampatê Bâ
Em Novembro de 2013 tive o privilégio de participar na sessão de homenagem a
Luandino Vieira, por ocasião de "Os 50 anos de Luuanda, de Luandino Vieira",
realizada no dia 21 de Novembro na Universidade do Minho, no âmbito XV Colóquio
de Outono do CEHUM, subordinado ao tema "As Humanidades e as Ciências –
Disjunções e Confluências" em que também se assinalaram as seguintes
efemérides: o Bicentenário de Wagner; o Centenário de A Sagração da Primavera,
de Igor Stravinsky; o Centenário de Vinícius de Moraes; e o Centenário de Paul
Ricoeur.
Tratou-se de uma efeméride antecipada (tal como a que ocorreu durante o V
Encontro de Professores de Literaturas / I Encontro da AFROLIC – Associação
Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos, em Porto Alegre, de
05 a 08 de Novembro desse mesmo ano). Com efeito, Luuanda, obra escrita em
1963, apenas seria publicada em 1964[1], era seu autor à altura já ‘residente’
na prisão do Tarrafal, Cabo Verde. Em todo o caso, porque este texto decorre da
minha participação naquela sessão do Colóquio de Outono, opto por manter o
título deste texto pois na altura a minha intervenção foi precisamente
orientada para a busca dessas categorias na obra de Luandino Vieira, com ênfase
num corpus pouco conhecido da obra luandina, os das ‘fábulas angolanas’. Com
efeito, a ideia de olhar para a obra de Luandino Vieira a partir de um ângulo
diferente do literário, cruzando interlocuções disciplinares diversas, foi um
desafio que procurei não recusar. Foi por isso que na altura o meu propósito
foi pôr em diálogo as diversas áreas do conhecimento, as suas indagações
teóricas e metodologias específicas, de modo a analisar e debater as interfaces
possíveis e as questões que cruzam transversalmente essa diversidade de saberes
que tendem a ignorar-se respectivamente.
Foi, pois, pensando nessas confluências de saberes e estratégias de contação
que optei por levar à homenagem não propriamente Luuanda, mas as ‘fábulas
angolanas’ a que, a par dos livros expectáveis de Luandino Vieira, o escritor
tem vindo a dedicar-se nos últimos anos. Com efeito, o que então me pareceu bem
remota porém desafiante foi a semelhança do ritual retórico entre as estórias
de Luuanda e as fábulas que compõem a série Sambuadi dia Misoso, seis fábulas
ilustradas pelo autor, que tematizam as diversas categorias da ética e da
deontologia: Liberdade, Poder, Sabedoria, Justiça, Inteligência, Corrupção… É
que, como qualquer texto de natureza gnómica, tanto estas fábulas quanto
aquelas estórias transmitem uma experiência que a autoridade da escrita, tal
como antes a autoridade da voz dos mais velhos que nos conta(va)m histórias,
levavam à descoberta da lição que encerram: em "Estória da galinha e do ovo",
por exemplo, não é difícil chegar à lição veiculada de que a união faz a força
e que o sentido da solidariedade é fundamental para a preservação da paz na
comunidade, representando as personagens convocadas, ou autopropostas (sô Zé,
Azulinho, sô Vitalino, sô Artur Lemos, o sargento), para dirimir o contencioso,
"inimigas" da paz no musseque; em Puku Kambundu e a Sabedoria, aprende-se que a
força da inteligência e da astúcia é maior do que o poder da força do branco,
arrogante e injusto, mesmo em situação em que a cor negra é, já em si, uma
desvantagem. Diz a propósito Luandino Vieira:
O mais sábio (Puku Kambundu) provou a outro que mesmo que se tenha
tudo materialmente, falta sempre qualquer coisa, [por isso] ganhou a
aposta porque demonstrou que o outro tinha tudo, mas faltava-lhe a
sabedoria que é uma coisa que não se vende (...).
Havia uma certa arrogância da parte do colonialismo de que eles [os
colonialistas] sabiam fazer tudo. Tinham tudo, logo sabiam tudo.
Afinal por muito que tivessem havia sempre qualquer coisa que não
tinham, que era a sabedoria para pôr fim aquilo que é tradicional.
(Vieira apud Veiga, 2009)
Por isso, a minha proposta de reflexão é que fábulas e estórias luandinas são
formas narrativas da elocução verbal que compreendem "mensagens históricas
conscientes", independentemente dos requisitos formais e estilísticos, e
funcionam como "um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no
que poderíamos chamar elocuções-chave[2], isto é, a tradição oral [que] pode
ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma
geração para outra" (Vansina, 2010: 140).
1. Disjunções: uma arquitectura de afectos e enfrentamentos
A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade –
está em extinção.
Walter Benjamin
Luuanda, que reúne três histórias ("Vovó Xíxi e seu neto Zeca Santos", "Estória
do ladrão e do papagaio" e "Estória da galinha e do ovo"), chamou logo a
atenção pela novidade do processo narrativo tendo recebido dois prémios muito
importantes: o 1.º Prémio Mota Veiga, atribuído em Luanda em 1964, e o 1.º
Prémio do Grande Prémio da Novelística, atribuído pela Sociedade Portuguesa de
Escritores, em Lisboa, em 1965, cuja história é do conhecimento geral – pelo
menos de aqueles que estudam as literaturas africanas em português.
Luuanda viria, na verdade, a consolidar uma estratégia narrativa ensaiada pela
primeira vez na obra inaugural do autor, A Cidade e a Infância (1960),
designadamente no conto "Faustino", que começa imprimindo na narrativa a sua
marca com a apresentação da circunstância em que a história lhe chegou, de que
se assume como relator, ou artífice da forma linguística dos factos que compõem
a história de Faustino:
Contarei agora a história do Faustino. Não foi a Don’ Ana que me
contou, não senhor. Esta história eu vi mesmo, outra parte foi ele
mesmo que contou. Faustino é o seu nome. Faustino António. (Vieira,
2007: 79)
Esta declaração de veridicidade, que percorre muitas obras de Luandino Vieira,
tais como Vidas Novas (1968), Velhas Estórias (1974) e A Vida Verdadeira de
Domingos Xavier (1974) – aqui marcadamente no final do texto –, e outras mais,
acentua a relação do sujeito enunciador com a palavra, que encerra um
testemunho daquilo que ele, como pertencente àquela comunidade, é, e de cujo
respeito depende a coesão daquela comunidade. E se a oralidade faz nascer a
escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo (Bâ, 2010:
168), pode dizer-se que para os sujeitos enunciadores luandinos, os narradores
das estórias que resultam de testemunhos e/ou relatos oculares,
O que se encontra por detrás do testemunho (…) é o próprio valor do
homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual
ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o
valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a
ligação entre o homem e a palavra. (Bâ, 2010: 168)
Por outro lado, porque a verdade histórica está sempre estreitamente ligada à
fidelidade do registo oral transmitido (Vansina, 2010:156), o jogo de
veridicidade que é conseguido através deste procedimento estilístico-cultural
instaura, paradoxalmente (por causa do pacto ficcional), uma conflitualidade
lúdica com a verdade, em que há a ilustração constante da criação de mundos
possíveis pela palavra, contaminada pelo ‘divino’ dado o seu poder criador e
operativo. Aqui, e naquele contexto (anos 60 do século XX, musseque Sambizanga,
lugar dos ‘causos’), a sátira alia-se à paródia na crítica aos bloqueios da
expressão impostos pela censura:
Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem.
Mas juro me contaram assim e não admito ninguém que duvide de
Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba patos, não lhe
autorizam trabalho honrado. (...)
E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado.
("Estória do ladrão e do papagaio", Vieira, 2006a: 105)
Essas declarações de cumplicidade percorrem o reino narrativo de Luuanda e,
assim, o "texto estórico" (o subtítulo de Luuanda é "estórias") alcança o
limiar do testemunho documental cujo enunciador (o narrador), para preservar a
fidelidade da transmissão oral, se alimenta de histórias que lhe são contadas.
Diz, com efeito, Walter Benjamin em "O narrador: considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov" (1936) que,
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são
as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos
inúmeros contadores anónimos. (Benjamin, 1987: 198)
Assim, o narrador luandino, qual Leskov, "está à vontade tanto na distância
espacial quanto na distância temporal" (Benjamin, 1987: 199). E, apesar de
retirar da sua própria experiência o que conta, que entrecruza com vozes
subjectivas ("Esta história eu vi mesmo, outra parte foi ele mesmo que contou".
"Faustino". Vieira, 2007: 79), o que reforça essa autonomia em relação ao
universo narrado é o seu comportamento como ‘simples’ relator de factos
passados, preocupando-se não com a verosimilhança ou com a conformidade entre o
mundo narrado e o ‘mundo real’, mas com a verdade dos factos e a sua expansão
metonímica, que significa para além do acontecido: "E isto é a verdade, mesmo
que os casos nunca tenham passado (Vieira, 2006a: 105). Aparentemente,
portanto, não se liberta da factualidade, o que faz com que a ordem histórica
choque com a ordem literária, baralhando o protocolo ficcional, num processo
que sintetiza bem o despreendimento narracional, na tentativa de se ilibar da
responsabilidade diegética e ludibriar, por este procedimento retórico (a
ironia), a crítica censória:
Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de
Luanda. Foi na hora das quatro horas. ("Estória da galinha e do ovo",
Vieira, 2006a: 107)
Esse jogo tem uma inflexão metafísica, porventura com maior intensidade em
"Estória da galinha e do ovo", em que dentro da cumplicidade que percorre todo
o texto, a voz do narrador se confunde com a de um interlocutor-narratário
como, por exemplo, no seguinte trecho:
(…) e, no fim mesmo, já ninguém que sabe como nasceram, onde
começaram, onde acabam essas malucas filhas da nuvem correndo sobre a
cidade, largando água pesada e quente que traziam, rindo compridos e
tortos relâmpagos, falando a voz grossa de seus trovões, assim, nessa
tarde calma, começou a confusão. (Ibidem)
Esta não parece ser apenas a voz do narrador que jura contar apenas a verdade:
como começou a confusão, como se espalhou, quem se viu nela envolvido, quem é
quem, como terminou, enfim… De quem será, então? Parece ser a voz diferida de
um interlocutor, que não apenas ‘condiciona’ o processo narrativo, agindo
activamente na própria enunciação (escrita) e no seu julgamento estético,
imprimindo-se um papel comunicativo essencial na significação textual. Com
efeito, se a escrita dessas estórias se constrói do tecido de vozes
enunciativas (narrador, interlocutor, narratário, personagens), a dimensão da
oralidade, contaminada pelas estratégias dos textos da oratura, inscreve-se
também no plano da recepção (da leitura, no caso), enquanto condicionadora de
relações entre as várias instâncias textuais: o narrador que proclama a verdade
e que, para a demonstrar, dá constantemente a palavra às personagens e constrói
uma combinatória de coloquialidade e oralidade, conciliadas com as inferências
subentendidas de um interlocutor – a quem é solicitado que julgue a sua
estética.
Essas propostas interpretativas parecem decorrer da pressuposição de que um
texto que reivindica a condição de relato (Eu só contei o que aconteceu, é o
refrão que é reiterado nas três histórias) se quer assumir como registo da
palavra falada. Tal pressuposição enforma uma "metafísica da presença" segundo
a qual a verdade existe no que está presente à consciência sem mediação
(Culler, 1997) – ou seja, sem a ‘elaboração’ da palavra, o que parece ser
confirmado pelo tom coloquial que é transversal à escrita luandina. Aliás, o
que ressalta nos textos, é a força da palavra oral, como preservação de uma
tradição que perpetua a memória dos acontecimentos através da voz humana – como
alternativa ao poder de destruição, pois dado o poder de criação da fala
humana,
A fala pode criar a paz, assim como pode destrui-la. É como o fogo.
Uma única palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo
modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incêndio. (…)
A tradição, pois, confere a Kuma, a Palavra, não só um poder criador,
mas também a dupla função de conservar e destruir. (Bâ, 2010: 173)
Daí também que uma das lições desse conto possa ser a aprendizagem do poder da
palavra: tanto Nga Zefa quanto Nga Bina percebem no final que a palavra dos
outros era quase sempre destrutiva da relação entre elas – e foi a vavó Bebeca,
uma autoridade estatuída pela idade, quem sistematizou de forma performativa
essa aprendizagem: "Vavó Bebeca sorriu também. Segurando o ovo na mão dela,
seca e cheia de riscos dos anos, entregou para Bina" (Vieira, 2006a: 131;
sublinhado meu).
E aqui, mais uma vez, é de se realçar, naquele contexto, o papel do escritor no
desenvolvimento da consciência de um contador de histórias, por um lado, numa
relação de empatia para com o seu leitor-ouvinte e como força comunitária e,
por outro, como ‘ciência’ paralela à crónica dos tempos coloniais. E porque a
situação colonial é também de privação de identidade cultural, como um dos
males que são corolários de uma situação de dominação estrangeira (e a privação
de identidade própria é, no contexto, uma questão fundamental), fazer
literatura quase se confundia, na altura, com testemunhar e denunciar as
estratégias de dominação: note-se, a propósito, a epígrafe de Vidas Novas, dois
versos de Pablo Neruda[3], que sintetiza a dialéctica do processo de escrita do
escritor: narrar o vivido, registar a existência. Por outro lado, os títulos
(muitas vezes com nomes das personagens para que as narrativas pareçam
‘histórias de vida’ – Vavó Xixi, Zeca Santos; antes, em A Cidade e a Infância,
Bebiana, Marcelina, Faustino, Quinzinho; ou nas fábulas da série Sambuadi dia
Misoso, Kiombokiadimuka, Kaxinjengele, Puku Kambundu, Ngola Mukongo, Kaputu
Kinjila, Kambaxi Kiaxi e Xingandele), assim como a própria designação de
‘estória’ que muitas vezes aparece em subtítulo, sugerem essa função de
testemunho, o que aproxima essas narrativas (e as obras de Luandino regra
geral) do ritual de contação tradicional. Assim é que o leitor, dimensionado
nessa "metafísica da presença", toma o texto como se ele fosse contado e cada
palavra não está livre da presença comunicativa que lhe dá o seu enunciador: o
importante para ele é a verdade mais do que a estética, cuja avaliação a
atribui a um ‘vocês’, que parece ser o seu ouvinte.
Pode dizer-se, neste contexto, que há dois tipos de recepção que as estórias
podem suscitar:
• Se o leitor é angolano, conhecendo, pela vivência ou experiência, as relações
de convivialidade num musseque de Luanda, tenderá a ensaiar uma leitura que
estabeleça uma relação comparativa entre os seus problemas (ou aqueles que
partilha) e os das personagens – é a "concretização" da procura de uma
autenticidade única na realidade das situações descritas (Stern, 1980: 194);
• Se não, mas conhecedor da ambiência sócio-cultural do musseque, as suas
interpretações e leituras acabarão por ter como base o complexo autoral
subjacente à produção textual – e não admira que, neste caso, o crédito de uma
projecção autobiográfica desempenhe um papel essencial na significação textual,
exponenciando-se a empatia que emana desse jogo enunciativo com a verdade.
É por isso que se pode afirmar que nas obras de José Vieira Mateus da Graça
(que, não sendo natural de Luanda, adoptou o gentílico "luandino" para
homenagear a cidade que o viu crescer), Luanda é contada e as estórias de
Luuanda participam de uma arqueologia literária sobre Luanda, de tal forma
poderosa que se pode falar, de facto, de uma "prosa de musseque", na expressão
de Tania Macêdo (2001)[4]: é que essa extensa produção, sobre e a partir de
Luanda, com toda a arquitectura de sensações e afectos, sonhos e medos, "acaba
por fundar um modelo histórico e nacional-linguístico espacial" (Macêdo, 2001:
244). Esta é, na verdade, uma escrita em que o sujeito da enunciação narrativa
funciona como griot[5], quais trovadores e menestréis dos eventos do
quotidiano, tal como os outros griots de Luanda (Arnaldo Santos, António
Cardoso, Jorge Macedo, Jofre Rocha, Boaventura Cardoso e mesmo aqueloutros
autores de uma poesia narrativa, como Mário António, António Jacinto, Viriato
da Cruz ou Agostinho Neto) que narrativizam (Hayden White) memórias de
vivências e experiências, no sentido em que estas noções funcionam nas
reflexões de Walter Benjamin (1936)[6], do opressivo quotidiano das relações
sociais e afectivas nos bairros luandenses, conformando a estética que tenho
vindo a designar como "escrita griótica" da cidade de Luanda (Mata, 2003; 2010;
2012), como nos poemas narrativos de Viriato da Cruz e de António Jacinto,
respectivamente:
(…)
Quando sô Santo passa
gente e mais gente vem à janela:
"Bom dia, padrinho..."
"Olá!..."
"Beçá cumpadre..."
"Como está?..."
"Bom-om di-ia sô Saaanto!..."
"Olá, Povo!..." (…)
Lá vai...
descendo a calçada
a mesma calçada que outrora subia cigarro apagado
bengala na mão...
********* Naquele tempo
("Sô Santo", Poemas, 1961)
A gente punha despreocupadamente os livros no chão
ali mesmo naquele largo areal batidos dos caminhos passados os mesmos
trilhos de escravidões
onde hoje passa a avenida luminosamente grande e com uma bola de meia
bem forrada de rede
bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves em alegre
folguedo, entremeando caçambulas
... a gente fazia um desafio... (…)
("O grande desafio", Poemas, 1961)
Trabalho de agentes activos do processo ‘arquivístico’ do passado, essa escrita
funciona em convergência com o registo históriográfico das relações sociais, na
perspectiva de uma epopeia de resistência face à insuportabilidade do
quotidiano feito de repressão, fome, prisão, analfabetismo. A consideração de
que "a arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da
verdade – está em extinção", como ‘lamentara’ Walter Benjamin em 1936 (1987:
200-201), não procede no reino narrativo da ficção luandina.
É também de se notar que na obra de Luandino, particularmente nas suas
primeiras obras, tal como em outras narrativas da cidade de Luanda, cumpre-se o
pressuposto de ‘terra de origem’, impossibilitado que estava o destinador em
operar a expansão territorial da colónia, todavia ainda preenchendo os
critérios de uma "poética da relação" que Édouard Glissant resgataria anos mais
tarde, em Traité du Tout Monde, para dizer que "a poética da relação permite
abordar a diferença entre uma terra – local incontornável do ser – e um
território – reivindicação como ritual e agora infértil, do ser" (Glissant,
1997: 197).. Note-se, no entanto, que nessa altura talvez seja temerário dizer
que essa base urbana concedesse ao processo de simbolização nacional um cunho
cosmopolita. É verdade que esse processo obedeceu a uma lógica de entidades
micro-históricas (vivências próprias e outras, conhecidas e ouvidas, sabidas e
sentidas), porém a partir de elementos lineares da tradição, com a sua
autoridade, e mediatizados por um olhar não tão prospectivo quanto
retrospectivo. Na verdade, embora não subscreva a dimensão de efemeridade de
que falam alguns estudiosos da questão identitária, as identidades culturais
são resultados sempre transitórios de processos de identificação. E por essa
altura, nas décadas de 50-60-70, nas cidades coloniais – e Luanda
particularmente – erigia-se a metáfora da nação na construção do discurso de
identidade, por via de elaborações intelectuais, como o procedimento alegórico
de construção de uma ‘comunidade imaginada’ a partir de sinais da natureza e da
cultura social.
É assim que da Luanda literária dos anos difíceis emergiam valores
socioculturais que relevavam da intersecção conflituosa entre o modus vivendi e
o modus faciendi do asfalto e o do musseque e se faziam modelo de um espaço que
se pretendia nacional, com actores que se pretendiam já sem laços assumidos de
uma identidade étnica, sociocultural e regional localizada. A prática narrativa
privilegiava a estória, forma que recupera a tradição oral e a transfere à
escrita, estabelecendo-se assim os paralelos ouvinte-leitor e contador de
histórias-escritor e anulando uma qualquer visão disjuntiva entre oralidade e
escrita, enquanto fazia do ‘local da escrita’ também o da voz que a palavra
escrita intenta recuperar:
Minha estória.
Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei
mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda.
( "Estória da galinha e do ovo", Vieira, 2006a: 132)
2. Confluências: da transmissão à transformação
A oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma
habilidade.
Jan Vansina
Os procedimentos discursivos atrás referidos são estratégias reinventadas a
partir daquelas que são actualizadas nos rituais de contação, em que os
ouvintes são convocados quer para responderem a interpelações directas do
portador da palavra (até para testar o grau de envolvência da audiência) quer
para participar nos momentos musicais da narrativa. Em qualquer caso, isso faz
com que os ouvintes se ‘sintam’ também responsáveis, se não pela narração, pela
narrativa, tanto porque o griot "pode ter duas línguas" (Bâ, 2010: 178) quanto
porque "a palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmissão
original, uma força que a torna operante e sacramental" (Idem, 181).
Por outro lado, tal resgate, em situação de sincretismo da voz (dita tradição
africana) e da letra (dito cânone literário vigente), passa pela reinvenção de
elementos do mitológico e do imaginário colectivo. Vozes tradicionais, saber
gnómico codificados em "formas simples" (André Jolles), estórias obliteradas ou
desclassificadas (como a do sô Lemos de "Estória da galinha e do ovo"), tempos
rasurados pela ideologia colonial, vozes sussurrantes como se estivessem
submersas pela noite colonial, que não são recordadas, mas são trazidas ao
presente, presentificadas. Em todo o caso, mais do que uma prolífera reinvenção
do significante e do significado, ou de uma inventividade da língua, trata-se
sim da metamorfose da expressão e sua substância, portanto, da revitalização de
uma cultura que durante muito tempo ficou invisível e inaudível no seu veículo
de expressão. Com efeito, não se trata de um ‘estádio’, mas de uma opção por um
meio de comunicação pois, lembra Jan Vansina, "a oralidade é uma atitude diante
da realidade e não a ausência de uma habilidade" (Vansina, 2010: 140). Trata-
se, afinal do processo de oraturização da escrita – longe da pressuposição de
"fala mucéquica", de que fala Salvato Trigo, que considerava, estranhamente, o
musseque "lugar de exílio ou de desterro para gentes despaganizadas em processo
de distanciação dramática das suas origens civilizacionais" (Trigo, 1990: 56).
Por isso, muitas vezes para se chegar ao desvelamento dos sentidos do escrito,
há que passar, quase incontornavelmente, pelas fontes e recursos linguísticos
das suas matrizes assim como pelas formas verbais da oralidade e interpretação
de seus valores – vale dizer, valores éticos, morais e ideológicos das
comunidades de que emanam e por que elas pautam o seu modus vivendi, o modus
operandi e o modus faciendi, no quotidiano, na interpretação do passado e na
planificação do futuro. Pela obra que se enraíza no húmus da sageza da oratura
se conhecem também as estratégias de gestão das mudanças com que se confrontam
e que lhe são impostas pela dinâmica da história.
Embora sendo um dos loci importantes da construção da identidade e da gestão da
alteridade nas literaturas africanas, não é no sentido de oralidade que neste
contexto se compreende tradição, isto é, com o redutor significado de um
registo linguístico que se opõe ao escrito ou a representação da língua falada,
o que tem vindo a constituir matéria de análise literária de muitas obras de
escritores africanos, sob o equívoco da presença da tradição oral (sobretudo
através dos corpora do código gnómico) na literatura escrita como
especificidade exclusiva das literaturas africanas – como se não houvesse
presença da tradição oral na Ilíada… Também não me parece produtiva a
perspectiva da oralidade como transposição recriativa da realidade em que há
papéis enunciativos desempenhados por agentes em situações comunicativas cujas
acções locucionais visam um efeito oralizante; tampouco no sentido de "tradição
oral" que, na sua acepção primordial, compreende corpora das "formas
[literárias] fundamentais da tradição oral" (Vansina), também referidas como
"literatura de tradição oral", "literatura de transmissão oral", "literatura de
expressão oral", ou até "literatura popular" e "literatura tradicional" –
designações não consensuais e igualmente ambíguas que nem a proposta de Walter
J. Ong, "oral verbal forms"[7], resolve, mas cuja discussão não cabe no âmbito
desta breve reflexão. O que importa, neste caso, é perscrutar o deslocamento,
para a escrita autoral, da lógica da convivialidade social, ou o que o
imaginário guarda da "oralidade primária". Com efeito,
Today primary oral culture in the strict sense hardly exists, since
every culture knows of writing and has some experience of its
effects. Still, to varying degrees many cultures and subcultures,
even in a high-technology ambiance, preserve much of the mindset of
primary orality.
The purely oral tradition or primary orality is not easy to conceive
of accurately and meaningfully. Writing makes ‘words’ appear similar
to things because we think of words as the visible marks signaling
words to decoders: we can see and touch such inscribed ‘words’ in
texts and books. Written words are residue. Oral tradition has no
such residue or deposit. When an often-told oral story is not
actually being told, all that exists of it is the potential in
certain human beings to tell it. We (those who read texts such as
this) are for the most part so resolutely literate that we seldom
feel comfortable with a situation in which verbalization is so little
thing-like as it is in oral tradition. (Ong, 2002: 11)
Do que se depreende destas considerações de Ong é que essa mentalidade advém da
mundivivencialidade, escopo do universo dos contos da tradição oral – que
muitas vezes é simplificada como sendo a reconversão da oralidade em escrita.
Se se pode ver esse processo como podendo afectar a imediata legibilidade dos
mundos culturais, vale lembrar que essa ‘oralidade’ da literatura mais não é do
que o conjunto dos procedimentos linguísticos, de natureza estilística, que
conformam a ilusão da oralidade (a que Alioune Tine designa por isso como
"oralité feinté", oralidade fingida) e as categorias intelectuais da escrita.
Neste caso, é estimulante ler literatura que, como resultado do labor estético
individual, não descura a dimensão ideológica da escrita que é, também, a
transmissão de valores – de que a oratura é o repositório privilegiado em
sociedades em que a escrita, pelo menos a de línguas europeias, é ainda um
privilégio.
No caso em apreço há que considerar a desconfiguração de formas orais,
designadamente misoso e maka[8], numa forma escrita, a estória, que parece ser,
aliás, uma das particularidades da ficção angolana, desde os princípios do
século XX, com os trabalhos de Óscar Ribas, continuando com os ‘cantores’ da
Luanda da fronteira entre o asfalto e o musseque. Estudiosos da literatura
angolana, como Carlos Ervedosa (1979) e Helena Riáuzova (1985; 1986), têm
colocado na narrativa oral as matrizes da estória que, a partir da segunda
metade do século XX, foi veículo de subversão da hegemonia do discurso
literário metropolitano, ao afastar-se da contenção estrutural do conto e
incorporando elementos do discurso oral, próprios da prática da contação oral,
como já referido anteriormente nos exemplos retirados do celebrado livro de
Luandino Vieira, Luuanda (1965), reeditada em outros ficcionistas, por exemplo
em O Cão e os Calus (1985):
E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca se tenham passado.
("Estória do ladrão e do papagaio", Vieira, 2006a: 105)
As cenas que se vão narrar passaram no ano de 1980 e seguintes, nessa
nossa cidade de Luanda. No século passado, portanto. Século sibilino.
(…)
Mas previno que qualquer dissemelhança com factos ou pessoas
pretendidos reais foi involuntária.
(…)
E o meu sonho… se foi. Com ele começa a vossa fala. (Pepetela, 1988:
186)
Por isso, é pensando nas confluências que essas transformações de género
narrativo – das estórias como transformação dos misoso –, que leio as mais
recentes fábulas de Luandino Vieira, equivocadamente, a meu ver, rotuladas como
literatura infantil. São seis os títulos já publicados[9]:
Kiombokiadimuka e a Liberdade
Kaxinjengele e o Poder
Puku Kambundu e a Sabedoria
Ngola Mukongo e a Justiça
Kaputu Kinjila e o Sócio Dele Kambaxi Kiaxi
Xingandele, o Corvo de Colarinho Branco
São "fábulas" – sendo por isso, como sabemos, apenas metáforas para dizer o que
vai no mundo dos homens. Pode dizer-se que existe "Uma África a precisar de
voltar a fábulas para se recompor" (Mata, 2009): num momento de desânimo, de
puro desencantamento, em que muitos tentam perceber e perscrutar, em várias
partes de África, as razões do que se pode considerar ‘problemas africanos’,
vale a pena regressar aos ensinamentos tradicionais uma vez que as aquisições
do mundo actual, dito ‘moderno’ (a par de outra dicotomia sem suporte),
confundidas muitas vezes com progresso, têm vindo a ser mal assimiladas, como
em questões relacionadas com o sentido de valores éticos e até em questões mais
políticas, como a democracia.
O que há de comum entre estas narrativas para além de, ostensivamente (porque
aparecem no subtítulo), serem consideradas "fábulas angolanas"? É que partilham
três características, três delas transversais na obra luandina, e uma quarta,
embora não original, nova:
• características do musoso tradicional (a ritualística da contação):
reinvenção dos misoso tradicionais, isto é, narrativas da tradição oral de
factos ficcionais ou realistas, em que entram animais e pessoas e em que podem
entrar elementos do maravilhoso ou elementos mágicos;
• os abismos temáticos da contemporaneidade: questões de ética política ou
social e os meandros da democracia e da cidadania;
• a oraturização da língua portuguesa: a linguagem oralizante e o estilo
coloquial, incluindo uma lição de moral;
• a amplitude etária do seu leitor ideal, reeditando, por outro lado, o jogo
com a faixa etária do ‘leitor ideal’ que já vem de trás: A Guerra dos Fazedores
de Chuva com os Caçadores de Nuvens (Guerra para Crianças), livro que não se
encaixa, pelo menos de modo tão linear, no corpus da literatura infanto-
juvenil, baralhando a convenção literária referente ao ‘leitor ideal’…
3. Concluindo, se possível, falando de Luandino…
Remotas conexões: fragmentos de um diário.
Luandino Vieira
Em Luandino Vieira, através de estórias e fábulas, a narrativa curta
transforma-se em História e cumpre uma função testemunhal, através de uma
técnica narrativa de envolvimento do sujeito de enunciação na diegese. Esta
constrói-se de tramas referentes a temas da infância e do quotidiano e das
cenas de convivialidade social em que as personagens, funcionando como
representações de entidades prosopopeicas e ideológicas da realidade, geram uma
significação simbólica para além do factual:
Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado
do qual todos participam, o narrador e a sua audiência. Aí reside
toda a arte do contador de histórias. Ninguém é contador de histórias
a menos que possa relatar um fato tal como aconteceu realmente, de
modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tornem-se testemunhas
vivas e ativas desse fato. (Bâ, 2010: 209)
É um trabalho contra o esquecimento, de preservação da memória não
‘historiografável’, a que o autor regressa, muitos anos depois, resgatando essa
‘função’ cronística – ou memorialística, como se prefere designar hoje esse
trabalho sobre o passado – em O Livro dos Rios (2006), o primeiro romance da
anunciada trilogia De Rios Velhos e Guerrilheiros, dedicado, sem margem de
dúvida: aos do Tarrafal (1962-1974), e tendo como alvo de um retribute Langston
Hughes, autor do conhecido poema "The Negro Speaks of Rivers" (1920), em que
canta o rio Mississipi, emblemático rio do imaginário escravocrata dos
afrodescendentes americanos. Nesse discurso em primeira pessoa, o que se ‘ouve’
é a voz de "Kene Vua, o guerrilheiro", ou Kapapa – seu nome de sempre (Vieira,
2006b: 101), que narra o seu passado revolucionário e guerrilheiro, em
narrativa em que são vocalizadas estórias históricas da guerrilha, guardadas
nos escaninhos dolorosos da memória, que tenderiam a ficar "omissas" dos
relatos historiográficos – e nem é despiciendo o facto de a edição indicar que
este primeiro romance da trilogia ter como " ‘remotas conexões: fragmentos de
um diário’, 1996"[10] –, e figuras históricas, remotas (como Njinga a Mbande) e
recentes (como Agostinho Neto) para, na correnteza das suas significações,
nelas relembrar as acções sacrificiais dos sujeitos História de Angola (cujas
vozes se presentificam de forma impressiva em O Livro dos Guerrilheiros, 2009).
O que se pode pressentir no autor é a intenção de relembrar lugares
geográficos, espirituais e ideológicos de memória, numa altura em que a cultura
do efémero e a relativização do passado tendem a dominar o imaginário histórico
e social: não por acaso toda a narrativa é pautada por termos que constroem uma
semântica sacrificial e bélica que aponta para a resistência nacionalista:
PIDE, perseguição, prisão, presídio, fuga, mata, nuvens negras, luta, peleja,
lanças, flechas, guerrilha, guerra civil, camarada, guerrilheiro, comandante,
inimigo, emboscada, perseguição, morte, corpo enforcado são termos e expressões
que compõem isotopias de resistência e da luta de libertação. Com o Livro dos
Rios, o escritor traz outros cenários geoculturais de Angola, agora as matas,
no caso do Moxico: tal como o autor fizera de Luanda o microcosmos do país,
agora é o rio Kwanza, o maior rio exclusivamente angolano, que nasce e desagua
em território angolano[11], que se erige a mãe e a pai dos rios, significando,
nessa hidrografia identitária, a territorialização da pátria angolana:
(…) o Kwanza rodeia a pátria da nossa luta; missão, agora, era de lhe
dar encontro no princípio desse rio, nos seus três fios de água, lá
nas altas serras do Bié – onde que o mundo acaba e todas as águas
começam.
(Vieira, 2006b:126)
Tal como antes o celebrado rio Mississípi construíra uma hidrografia histórica
e identitária. Tal como antes Luanda, com suas histórias estoricizadas…