O Luuanda de Luandino e a Mensagem da Cei
TRIBUTO A LUUANDA
O Luuanda de Luandino e a Mensagem da Cei
Luís Bernardo Honwana[1]
Para o Carmo Vaz
Para mim não dá falar do Luuanda de Luandino sem falar da Casa dos Estudantes
do Império e do seu boletim, a Mensagem.
Nesses anos de apagamento d’O Brado Africano, o que considerávamos ser
importante na nascente literatura moçambicana não vinha em livro, não tinha
espaço dedicado na imprensa (tirando, talvez, a Voz de Moçambique) e mesmo como
texto avulso tinha a circulação vigiada. Para a polícia política qualquer
volante impresso era muito provavelmente um ‘panfleto subversivo’.
Era principalmente a Mensagem que de longe nos trazia tanto do que nós nos
descobríamos ser, nesses anos de despertar, na Lourenço Marques colonial. Os
números da Mensagem que passavam de mão em mão eram principalmente os das
antologias de poesia. O Rui de Noronha do Quenguelequezê chegou a muitos de nós
pela primeira vez na famosa edição ciclostilada, aquela que tinha na capa a
gravura do timbileiro de Zavala.
E foi a Mensagem que nos abriu Angola.
Angola trilhava já o caminho que, com as grandes certezas que animam a
juventude, sabíamos que seria também o nosso. Mas mesmo antes da grande
conflagração que nos fez parceiros e aliados num mesmo processo de luta
anticolonial, sabíamos ter muito em comum. A literatura ajudava a identificar
essas semelhanças, especialmente quando nos transportava para os espaços onde
se sonha o futuro, na costura entre o urbano e a periferia da cidade colonial.
Angola já era realmente tão igual a nós, tão irmã:
Musseque = cidade de caniço;
Contratados = Chibalos;
Sambizanga, Cayatte, Bairro Operário = Mafafala, Chamanculo,
Xipamanine;
Liceu Vieira Dias, n’Gola Ritmos = Daíco, Fanu Mpfumu...
Tudo cantado, ou dito numa língua nova, que afeiçoava o português às
necessidades comunicativas do subúrbio da grande cidade e, à escala de todo o
território, à função de língua franca, antecipando a apropriação da língua que
Cabral e seus pares acabariam por proclamar, anos mais tarde.
Nós sabíamos de cor os poetas de Angola: o Viriato, o António Jacinto o
Agostinho Neto, o Mário António, todos eles. Misturávamo-los com o Craveirinha,
com o Rui Nogar e com a Noémia de Sousa e dizíamo-los com o mesmo orgulho e
desafio nos saraus de poesia do NESAM (Núcleo dos Estudantes Secundários
Africanos de Moçambique) no velho Centro Associativo dos Negros da Colónia de
Moçambique. Estou a ver as nossas declamadoras e declamadores, todos (maus)
discípulos de Villaret na teatralidade do seu dizer, batendo com o pé no chão e
com o punho no peito, empolgando-se (antes de empolgar os outros) com o
Monangambé, com o Makezu, com a referência literária que escapa a um primo que
por isso ficou o Zeca Camarão. (Numa aventura que se passa numa chunga talvez o
que era para nós um baile de chongaria!!!).
Através da Mensagem, estudantes que éramos, fazíamos eco dos debates, tensões e
descobertas que certamente convulsionavam a vida dos nossos colegas mais
velhos, na Casa dos Estudantes do Império. Aí, seguramente, continuavam e eram
trazidas para outros níveis as tentativas pioneiras do "Vamos descobrir Angola"
ou, do nosso lado, a saga dos Albasinis e da Associação Africana.
Acreditávamos que também lá, em Lisboa, na famosa esquina da Duque D’Ávila com
a Dona Estefânia, o grito de protesto ou de revolta, o despertar da consciência
social, a aspiração libertária, a corrente solidária era o que se procurava nos
poemas que se liam e também o que levava tantos jovens a tentarem, de forma
quase ritualística, a aventura da escrita. O exemplo que se emulava era o da
boa mão cheia de ‘consagrados’ com que já se contava, desde os anos 50; os
novéis escritores e poetas, muitos deles claramente a braços com uma crise
identitária, pareciam ver na literatura, para além da possibilidade do
exercício de um talento que acreditavam possuir, uma espécie de via de
redenção, num processo não muito distante da "reafricanização dos espíritos" de
que falava Amílcar Cabral. A necessidade de afirmação, mesmo quando deficiente
em termos de expressão literária, era um sinal de empatia ou adesão ao
movimento verdadeiramente geracional de rejeição do status quo – social,
literário, político.
Era, como certa crítica apontava, uma poesia com ‘programa’. Programa vago e
mal articulado como era inevitável na ‘urgência’ do momento e forçoso nesses
tempos de censura e repressão.
E o interesse despoletado pela poesia alastrava por outras áreas do universo
das letras, pelo cinema, pelo debate de ideias – sempre com a generosidade e o
fervor militante que eram o nosso timbre.
A exploração destas outras saídas e possibilidades da produção literária terá
colhido alguma inspiração ou encorajamento no ensaio de Alfredo Margarido que
acompanhava a antologia Poetas de Moçambique.
Este famoso prefácio não preenche, por variadíssimas razões, dizemo-lo hoje, a
dimensão de texto seminal, mas nós colocávamo-lo (talvez por mero paralelismo:
tratava-se do prefácio a uma antologia poética) na mesma linhagem do "Orphée
Noire" de Sartre, que antecedia à Antologia da Nova Poesia Negra e Malgache em
Língua Francesa e do "Cultura Negra e Assimilação" de Mário de Andrade em
apresentação à Antologia da Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Margarido
fornecia o enquadramento histórico e o fundamento teórico da poesia antologiada
pela Mensagem, e de toda a poesia que para nós contava. Na realidade as
antologias e as revistas – pelo menos algumas delas – prenunciavam naquele
quadro histórico os vastos processos de mudança no relacionamento entre
dominados e dominadores que iriam a breve trecho ocorrer.
Perturbou-nos por isso o encarniçamento de Rui Knopfli e Eugénio Lisboa, contra
o texto de Alfredo Margarido. E não era apenas por causa dos critérios de
inclusão e do grau de importância relativa que se atribuía aos diferentes
poetas. Nenhum de nós estaria à altura de apreciar plenamente o mérito dos
argumentos que se foram produzindo na longuíssima polémica, mas, de maneira
difusa, compreendíamos que no conceito de poesia defendido por Knopfli e Lisboa
não cabiam os poetas que nós tão efusivamente festejávamos – incluindo os
consagrados! Seria realmente ‘menor’ a oficina de alguns destes poetas, em
relação aos que Lisboa e Knopfli pareciam preferir? (Mas sempre se poderia
perguntar: em relação a que cânone de aplicação universal?) E como se poderia,
em todo o caso, recusar o interesse e importância do esforço consciente na
renovação da língua, que essa poesia revelava, com ousadias semânticas, com um
novo léxico e com a importação de inesperados fonemas ditados pelas línguas mãe
subjacentes ao português falado por angolanos, moçambicanos e guineenses,
trazendo em resultado outros ritmos e também outra aceitabilidade a uma língua
que na experiência histórica dos nossos povos era a língua da humilhação?
Eis que surge Luuanda.
O livro chegou a Moçambique por vias paralelas e, ainda que não oficialmente
proibido, entrou imediatamente no vasto (e prestigiado) rol de livros de
circulação clandestina. Luuanda, que muitos consideram o texto inaugural da
nova prosa de ficção em Angola, constitui o argumento não utilizado na polémica
entre o Margarido e seus opositores e em todas as discussões sobre o que é a
poesia (ou, de maneira geral, a literatura) moçambicana. Com este livro
angolano de ficção talvez ficassem definitivamente esclarecidas algumas das
questões que foram tenteadas no texto de apresentação de uma antologia da
poesia moçambicana. E continuamos nas semelhanças e intermutabilidades entre
Angola e Moçambique...
E não só. Efectivamente para muitos de nós Luuanda constituiu uma espécie de
ponto de chegada no percurso sociológico, estético e literário iniciado pelos
poetas da Mensagem.
As três estorias (é o Luandino quem entre nós inaugura esta forma de designar o
que de outro modo chamaríamos de conto) que integram este livro compõem no seu
conjunto um registo de protesto mas, indubitavelmente, elas têm mais que lembre
as histórias que se contam à volta da fogueira do que as proclamações
inflamadas de alguns dos poemas que se declamavam no Núcleo.
Muitos anos mais tarde, quando em Lisboa privei com o Luandino, e o ouvi na sua
conversa mansa e ar tranquilo reconheci sem dificuldade a voz que conta com
humor e ternura o que aconteceu à Vavó Xíxi e ao Seu Neto Zeca Santos.
Compreendi também a naturalidade com que deverão ter ‘fluido’, neste angolano
branco falante de quimbundo e adolescido no musseque, os enredos, o ritmo
apropriado e as palavras certas para recriar literariamente a vida do povo
sofrido de Luanda nesse longo ‘finzinho’ do colonialismo.
As estórias do livro Luuanda são ‘contadas’ numa língua de criação artística, o
‘português de Luandino Vieira’ como passou a ser designado, pois ninguém no
musseque falaria exactamente como a Vavó Xíxi, a nga Zefa ou o Xico Futa ou
como o próprio narrador das estórias. Mas a dupla ‘subversão’ do português e do
quimbundo operada na pena de Luandino Vieira serve esplendidamente para nos dar
conta dos ‘casos’ que denunciavam fundas tensões na difícil interacção entre o
colonizado e o colonizador. E, no processo, ela punha em causa a hierarquização
entre o português e as línguas africanas – um dos grandes fundamentos culturais
e filosóficos da dominação colonial.
Muitos analistas fizeram notar que para além da verdadeira revolução formal que
representa, Luuanda abre-se a múltiplas leituras e interpretações em que, por
exemplo a integração e interpenetração entre o português e o quimbundo, no
texto, seria como que a antevisão de uma solução possível para o problema
cultural que sempre haveria que resolver na reconstrução da nação angolana,
depois de eliminada a presença colonial.
A língua das estórias do Luandino não era o ‘pretoguês’ inconsequente da
chamada literatura colonial, e o simbolismo da "Estória do Ladrão e do
Papagaio" ou o da "Estória da Galinha e do Ovo", com toda a sua subtileza e
humor, não passaram despercebidos. Nem à Sociedade Portuguesa de Escritores,
cujo júri acreditou (por maioria) estar perante um dos livros mais importantes
da literatura portuguesa, nos últimos tempos, nem aos grupos vigilantes do
regime, que se indignaram perante a premiação com o principal galardão nacional
para a literatura da obra de um escritor tão subversivo que até estava em pleno
cumprimento de pena maior por actividades contra a segurança do estado.
Houve actos de repúdio. Houve manifestações de solidariedade. E houve também
quem se interrogasse sobre se o Luuanda poderia ser considerado ainda como
parte da literatura portuguesa.
Foi significativo que no mesmo ano de 1965 e em consequência directa do impacto
do Luuanda na sociedade portuguesa, Salazar tenha mandado encerrar a Sociedade
Portuguesa de Escritores e a Casa dos Estudantes do Império.
A Mensagem deixou de circular.
De qualquer modo a grande maioria dos seus ‘antologiados’ – de Angola, de
Moçambique e das outras colónias estava nesse momento ou no exílio ou na
prisão. O mesmo acontecia aos declamadores e ao público dos saraus de poesia do
NESAM, embora o Centro Associativo dos Negros de Moçambique tenha ainda
permanecido aberto até 1966.
Notas
[1]Luís Bernardo Honwana publicou, em 1964, Nós Matamos o Cão Tinhoso, obra
sucessivamente reeditada e traduzida para várias línguas. O livro é composto
por sete contos que, individualmente têm vindo a ser integrados em diversas
antologias, o que confirma a repetida presença de Honwana no centro do cânone
moçambicano, e como referência para a literatura africana. Após a
independência, Honwana foi diretor do Gabinete do Presidente Samora Machel e
Secretário de Estado e posteriormente Ministro da Cultura.
É membro fundador da Organização Nacional dos Jornalistas de Moçambique, da
Associação dos Escritores Moçambicanos e da Associação Moçambicana de
Fotografia.
Campus de Gualtar
4710-057 Braga
Portugal
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