Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura & Noé Senda
1.
No texto que se viria a constituir como o primeiro tratado de pintura
exclusivamente dedicado ao retrato, Francisco de Holanda afirma no segundo
capítulo de Do Tirar Polo Natural (1549) que o isolamento do desenhador é
condição essencial à boa execução da obra. Este pensamento é tanto mais radical
que Holanda exclui do espaço artístico o próprio modelo: "quero dizer-vos ainda
mais: que se pudera estar o mesmo desenhador só, sem ninguém, e ter na fantasia
e na memória a pessoa que há-de pôr em obra e pintar, crêde que muito melhor
seria tê-la diante de olhos visíveis se a visse com invisíveis." (Holanda,
1984a: 18). As indicações de Holanda parecem abalar o que o título do tratado
sugere, transferindo a ideia de "natural" para a mente do artista. Das palavras
de Holanda, destacaria três que indiciam uma certa visão do conceito de
retrato: fantasia, memória, e olhos invisíveis. Parece haver um descentramento
do retrato para o espaço interior do artista, ecoando o preceito de arte
enquanto cosa mentale de Da Vinci.
Não obstante a exímia técnica de desenho de que é possuidor, a relutância que
Miguel Ângelo Buonarrotti demonstra em retratar modelos vivos reitera a visão
de Holanda. Esta recusa absoluta da presença do modelo vivo reflete a ideia de
que o retrato se baseia apenas na questão da semelhança, respondendo antes a
outros apelos que não o que se limita a um cadastro fisionómico. Como aponta
Édouard Pommier, Miguel Ângelo privilegia o aspeto memorial do retrato em
detrimento da semelhança. Eis a função essencial do retrato aos olhos de
Holanda e Miguel Ângelo, a sua sobrevivência à morte.
De resto, desde os primeiros relatos que nos chegam sobre a origem do retrato,
constatamos que ausência e morte andam emparelhadas. Destas parece irromper o
ato retratístico. Ao observar as narrativas que se reportam aos primórdios do
retrato na cultura ocidental, verificamos que lhes surgem sempre associados a
ausência e a perda. Relembremos a célebre história que alude ao banquete no
qual o teto do palácio desaba sobre os comensais e o poeta Simónides de Cos
consegue, de memória, restituir o rosto dos defuntos de forma a conceder-lhes
as devidas honras fúnebres. Das várias ilações que se podem retirar da
narrativa, destacam-se quatro que pairam sobre o retrato: ausência, morte,
restituição e celebração.
Na abordagem dos textos de Plínio, o contributo de Pommier é precioso, pois
confronta o episódio do Simónides com o da filha do oleiro (ou pastora,
consoante as versões) que contorna a sombra do amante na parede antes que este
parta. Aproximam-se assim referências ao desenho e à poesia, dois traços que
surgem do mesmo "espaço interior" como se imagem e palavra fossem
interiorizadas e posteriormente devolvidas ao mundo.[1]
O retrato constitui para Miguel Ângelo e Holanda uma impossibilidade. Já notava
Pommier, as teorias italianas apontam apenas dois retratos possíveis: o de Adão
antes da queda e o de Deus. Todos os outros, feitos pela mão do homem, são uma
superfície onde o artista corrige a realidade. Referia Holanda, nos seus
Diálogos em Roma (1548), que a pintura era uma semelhança perdida com Deus,
palavras que são proferidas por Miguel Ângelo, no primeiro diálogo: "a boa
pintura não é outra coisa senão o traslado das perfeições de Deus e uma
lembrança do seu pintar, finalmente uma música e uma melodia que somente o
intelecto pode sentir, a grande dificuldade" (Holanda, 1984b: 30). Esta ideia
parece radicar da distinção entre dois conceitos-chave para a teologia medieval
imago e vestigium e que se concretizam no pensamento contemporâneo de Georges
Didi-Huberman. A variação entre conceitos que aqui retomamos revela igualmente
o peso da perda e da ausência na tradição imagética ocidental.
os teólogos sentiram necessidade de distinguir o conceito de imagem
(imago) do de vestigium: o vestígio, o traço, a ruína. Tentavam assim
explicar que o que diante de nós é visível, em torno de nós a
natureza, os corpos – só deveria ser visto como trazendo o traço de
uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança com Deus perdida no
pecado." (DidiHuberman, 2011:15)
Já o referimos, o retrato apresenta-se assim uma resposta à morte, uma forma de
a superar, e é duplo (até) neste sentido, porque se faz na ausência do modelo
(Miguel Ângelo e Francisco de Holanda) e por evocar a presença dentro da
própria ausência. O retrato funcionaria assim como uma ruína de uma presença
anterior, como um rasto, da mesma forma que o homem é um vestígio de uma imagem
perdida.
Le portrait est fait pour garder l’image en l’absence de la personne,
que cette absence soit un éloignement ou la mort. Il est la présence
de l’absent, une présence in absentia qui n’est donc pas chargée de
la reproduction des traits, mais de présenter la présence en tant que
qu’absence: de l’évoquer (voire de l’invoquer), et aussi d’exposer,
de manifester le retrait où se tient cette présence. Le portrait
rappelle la présence, aux deux valeurs du mots ‘rappel’: il fait
revenir de l’absence, et il remémore dans l’absence. C’est ainsi que
le portrait immortalise: il rends immortel dans la mort. (Nancy,
2000: 53, 54)
Seguindo as palavras de Nancy, o retrato sobrevive à morte precisamente porque
é para este limite que aponta. O retrato é assim uma evocação já que marca um
rasto de presença na ausência, é um simulacro de presença, uma virtualização.
Ao transpor para a esfera literária as questões retratísticas relacionadas com
a ausência, encontramos na ekphrasis um paralelo no que concerne a
manifestações de algumas inquirições teoréticas do retrato. A questão da
ausência do referente estabelece um aparente conflito em termos muito idênticos
aos defendidos no retrato. O problema surge na diversidade de definições que
foram propostas a longo da história, ora excessivamente restritivas ora
insuficientes. Por não se constituir como uma realização cristalizada, mas
antes mutável e sensível aos tempos, paira sobre a ekphrasis uma certa
insolvência teórica.
Olhando para a definição proposta pela enciclopédia virgiliana, segundo a qual
a ekphrasis consistiria num "procedimento verbal que transforma o leitor em
espectador com a intenção de lhe dar a ver determinado objeto ou
acontecimento", as questões que se prendem com o lugar do referente emergem.[2]
A aparente simplicidade da definição oculta um problema conceptual que deve ser
sublinhado, pois a metamorfose do leitor em espectador deriva da transposição
de um "objeto ou acontecimento" eminentemente visual para o plano poético,
abeirando-se assim de questões teórico-formais que estão na base das
classificações das artes. Retoma-se aqui um problema em todo semelhante àquele
que Francisco de Holanda aponta para o retrato pictórico. Qual o lugar do
"retratado" se, nos casos paradigmáticos das ekphrseis homéricas e virgilianas,
o referente tem apenas uma existência textual? Metamorfose do leitor em
espectador ou vã tentativa de transposição do real, retrato pictórico e
exercício ecfrástico levantam questões que reencontramos na obra de Vasco Graça
Moura.
2.
A poesia de Vasco Graça Moura constitui uma das mais prolíferas manifestações
interartísticas na poesia portuguesa contemporânea. Alicerçando os seus textos
numa vasta tradição artístico-literária, as suas composições constituem uma
tessitura polifónica sustentada por um amplo campo referencial. Da pintura até
à escultura, passando pela música e pela fotografia, a poesia de Graça Moura
carrega a marca indelével das artes particularmente evidenciada através de uma
propensão para o exercício da ekphrasis, inclinação que, como o próprio autor
refere, se manifesta a partir da recomposição verbal de um elemento visual:
"creio que a raiz mais funda dessa tendência tem a ver com uma preocupação mais
genérica da restituição do visual através do verbal" (Moura, 2002: 86). A
transposição intermediática já referida resulta numa inquietação poética que se
traduz em constante exercício compositivo, evidenciando a busca da
"restituição" e constituindo-se como um espaço de interseção transmedial.
Nos textos que gravitam em torno da sua poesia, o poeta aponta os elementos que
considera essenciais para a elaboração de um poema: "o poema faz-se por uma
manipulação da palavra que envolve um certo apetrechamento cultural e um certo
adestramento técnico. Não surge ex nihilo, mas é um modo verbal de estar no
mundo" (Moura, 2013: 487). Os domínios alimentam-se mutuamente, sendo que, para
se trabalhar sobre textos que constituem um substrato memorial considerável, a
técnica é indispensável. Nestes "discursos poéticos", o poeta revela uma tal
destreza da técnica que dela abre mão e partilha, com uma nonchalance bem ao
jeito maneirista, que relembra a sprezzatura do Cortesão de Castiglione. É
necessário ser "o fabbro da palavra" (nó cego, o regresso) para se trabalhar no
poema, já que nele "coagulam-se a passagem do tempo e a experiência vivida"
(Moura, 2013: 487).
Em torno destas inquirições gira parte da poesia de Graça Moura. O poeta,
consciente da insolvência da questão, abre o décimo sétimo poema de nó cego, o
regresso (1982) com a interrogação "como meter o mundo/ num poema?". O verso
viria a ser alvo de um exercício crítico autorreflexivo, já que a pergunta é
retomada vinte e três anos depois no poema Laocoonte, incluído em Laocoonte,
rimas várias, andamentos lentos (2005) que evoca a longa tradição teórico-
crítica envolta da figura de Laocoonte, nomeadamente as considerações basilares
de Lessing acerca da relações entre as artes. Ancorado nesta memória, lemos já
na terceira e última parte do poema:
uma vez perguntei como meter o mundo
num poema. nem aprendi, nem soube
se alguém tinha resposta em muito anos.
hoje entendo melhor as minhas dúvidas:
só no tempo de homero é que o mundo
cabia nalguns versos. depois deixou de haver
a mesma coincidência fulgurante
que fazia o real entrar pelas palavras dentro
numa cadência inaugural do som e do sentido
a martelar a chapa dúctil da memória
na bigorna sonora de ásperos timbres.
Não alheia a uma maturidade poética adquirida ao longo dos anos, a resposta
resulta, como esperado, numa manifestação da noção de melancolia tão
intensamente explorada pelo autor "só no tempo de homero é que o mundo/ cabia
nalguns versos". Não se trata contudo de uma melancolia passiva e meramente
contemplativa, mas de uma "melancolia reativa", como defenderam Barrento e
Ribeiro.[3] O poeta nunca deixa de explorar os caminhos "da transposição visual
para o verbal", surgindo o poema como um exercício incompleto, uma busca
constante. O poeta revela assim "a furiosa paixão pelo tangível", mesmo que
esta paixão indicie sempre uma perda. A escrita de Graça Moura aponta o caminho
da perda e da ausência no processo de transposição, de metamorfose, da busca da
"coincidência fulgurante que faz[ia] o real entrar pelas palavras dentro".
No poema uma tão perfeita ausência incluído em o retrato de francisca matroco e
outros poemas (1998), o léxico a que o autor recorre em muito se aproxima das
considerações renascentistas anteriormente referidas, explorando o topos da
ausência e da (impossibilidade da) sua representação:
uma tão perfeita ausência restitui
os vestígios de alguém, como se houvesse
um angelismo intermediador entre os dias
e o mundo. e não obstante vi que
essa ausência doía mais que tudo
e que a tornavam sensível as coisas
anódinas: uma jarra, o olhar através
de uma janela, o caminhar no meio
dos plátanos. ou usar as palavras
para escrever as cartas que somente
podiam ter sido escritas num vazio
sem remédio quanto a alguém. a neve,
o lago, a montanha, a rua, o espaço
da lareira da sala onde as chamas dançam,
a própria densidade do tempo e da chuva, tudo
está nas palavras porque no coração
elas nascem espontâneas de uma tão perfeita
ausência. esta seria uma obra de arte
se fosse intencional. mas, se o fosse,
não daria lugar ao poema como vez
de alguém se consumir, elaborando-a.
A ausência é aqui vista em termos muito idênticos aos de Nancy já aqui
referidos, como uma membrana do presente, que é um indício, um vestígio. Como
"chama", impercetível na sua intermitência e (sobretudo) intangível. O que
"elabora" a obra consome-se, num jogo de transferências entre o desenhador e o
desenhado, que se assume medida entre o escrever e a obra. A mesma
incandescência que encontramos em junto ao retrato, onde uma rosa é vista
metonimicamente como chama e que ilumina o retrato de sua mãe, em cenário que
relembra uma certa devoção. Único elemento que reporta para a luz, a rosa
irrompe da memória sombria, e o retrato é aqui, mais do que semelhança
descritiva, um sinal de persistência ao tempo e uma invocação. Em termos
retratísticos, a "restituição" presente no primeiro verso implica já perda e a
tentativa de a reconstituir, de a restituir pelo verbal acabando a busca por
consumir o poeta.
Consumação esta que se concretiza num fazer poético, inserindo-o numa estética
que se configura como uma recusa da semelhança e da figuração, vendo o retrato
como uma negação que o precipita para um indeterminismo enquanto categoria:
"acumulados tropos de ausência, de cegueira, de perda concorrem aqui para uma
progressiva despossessão identitária, para uma progressiva desidentificação que
postula o (auto)retrato negativamente como pura invisibilidade" (Ribeiro, 2014:
72). Os prefixos usados por Ribeiro remetem todos para a mesma esfera, para um
conceito de retrato que se espelha na evolução etimológica da palavra, já que
retratar é retraçar, é retirar. A variação reside aqui na figura "consumida"
que novamente parece articular-se com a ideia de Miguel Ângelo segundo a qual
cada retrato é, em certo grau, um autorretrato, retomando o já famoso motivo
atribuído a Cosme de Médici "ogni dipintore dipinge se".[4]
Na poesia de Moura, este caminho para o silêncio, para a ausência, para a
cegueira não se constrói pela falta de referência e pelo vazio compositivo mas,
ao invés, engendra-se por excesso, por acumulação de textos e de vozes que se
cruzam no mesmo espaço poético, processo ao qual o poeta pode aceder e
manipular porque domina a técnica e utiliza "técnica, técnica, até ao sarro do
silêncio e do ruído" escreve o poeta em ars poetica, enaltecendo o seu uso até
um poema que é um "simular/ uma ordem entrevista e sustentá-la in absentia ou
no luto. vem dar ao mesmo."
Nó cego, o regresso é, nas palavras de Fernando Pinto do Amaral, um livro "onde
a experiência amorosa se constitui como um leitmotiv, mas extravasando para uma
meditação sobre o templo e seus instantes"(Amaral, 2001: 9). A referência ao
regresso evoca o nostos de Ulisses e a estrutura composta por vinte e quatro
poemas faz ecoar a dos poemas homéricos e marca, desde o título, uma cadência
de melancolia.
não quero o teu retrato
nem o meu, a não ser
num templo em ruínas:
aí o tempo tanto
gastou degraus, colunas,
e fez do musgo acanto
que podemos sentar-nos
sobre a pedra votiva
e ficar de mãos dadas
sob um céu de ameaça
olhando a objectiva.
há felizmente um disparo
automático a
fuzilar-nos de amor na nossa imagem.
A referência ao retrato começa pela negativa "não quero o teu retrato" para se
abeirar seguidamente de um espaço que remete para a perda, para a ruína. Didi-
Huberman refere que o ato de contemplar é colocar o templo nos olhos,
edificando assim uma imagem, delimitar um espaço de observação, colocar-lhe
margens. Uma fotografia que é antes e sobretudo "mental" antes de "fuzilar",
pois "coisa mental é o retrato,/sempre", escreveu Vasco Graça Moura. Um retrato
cujos limites seriam "degraus e colunas" em ruínas sobrevivendo ao tempo.
3.
O trabalho que Noé Sendas tem vindo a desenvolver joga com noções intertextuais
e transmediáticas que, mais do que uma mera acumulação de camadas
interpretativas, busca um sentido novo recorrendo a processos de mistura,
reedição e de rescrita que conferem à sua obra um efeito palimpséstico. As
imagens de Sendas atuam para além da alusão, utilizando não raras vezes o
diálogo entre obras e apoiando-se diretamente em imagens que fazem parte de uma
memória artística que se engendra em jeito de repositório referencial, o
artista trabalha com associações que produzem um efeito anacrónico. O tempo,
assim como a reescrita, são por isso campos que se revelam centrais na obra de
Sendas que, como o próprio afirma, busca através da conjugação de dois
elementos um terceiro novo elemento.[5] Inscrevendo-se em matrizes tipicamente
apontadas ao pós-modernismo, tais como a reescrita e a referencialidade, as
questões da representação ocupam um espaço importante na obra do artista e que,
vistas à luz dos preceitos retratísticos e representacionais, se articulam com
os que temos vindo a referir.
Ao rever a série The Collector (2007) constatamos que o modus operandi de
Sendas parte da evocação desta memória e pela apropriação de imagens que servem
de mesa de trabalho a partir das quais o artista constrói estes novos retratos
com alguns dos processos de composição que evocam justamente os conceitos de
palimpsesto, mosaico e tessitura fulcrais nas questões da reescrita e
revisitação. As imagens dialogam numa superfície que relembra aqui os preceitos
warbugianos de prancha. Colocadas na mesma superfície apesar do afastamento
cronológico, as imagens apontam para uma ideia ou um gesto que sobrevive e que
se reaviva. À imagem das pranchas de Warburg, descarta-se uma aproximação
horizontal do tempo para, ao invés, explorar uma certa verticalidade de um
anacronismo que explora as cadeias de sentido revelando uma potencial
sobrevivência de um gesto.
Assim, um retrato de Bruce Nauman é colocado no mesmo espaço que uma pintura de
Goya, estabelecendo um improvável diálogo entre imagens, mas criando um sentido
resultante de um trasbordamento das imagens para outra parte. Superando a mera
soma de partes, Sendas acrescenta sempre um novo sentido à "equação".[6]
O motivo que leva o artista a criar um espaço de cruzamento entre um
autorretrato de Aurélia de Souza e Andy Warhol não é uma casualidade, ou apenas
fruto do gosto pessoal do artista, mas resulta antes de uma teia de relações/
significados que permitem uma leitura coerente entres partes. É daqui que
deriva a comparação do método de Sendas com o de um disc-jockey que, dominando
uma faixa e outra, consegue elaborar uma terceira via através do "fluxo"(cf.
Sardo apud Ribeiro, 2011: 74). Este excesso realiza-se por exemplo no retrato
de Warhol, Self-Portrait in Drag (1981), que explora os caminhos do corpo e do
rosto através do travestimento, e os retratos de Aurélia de Souza que revelam
esta mesma tendência. Vemos, por exemplo, no autorretrato que data de 1887,
onde a pintora portuense se representa com um enorme laço lembrando uma figura
clownesca, ou em quando se retrata como Santo António, num exercício que passa
pela despossessão identitária, o abandono de um corpo, para o engendramento de
outro. Este processo evidencia-se de resto na série Crystal Girls (2011)
(Figura_1), obra na qual as fotografias revelam aquilo a que Carlos França
viria a apelidar de um "trabalho não contemplativo ou passivo, mas sobretudo
mais apostado no papel interventivo, criativo e até subversivo da imagem."
(França, 2014). O olhar que Sendas dirige à tradição pictórica poderá também
ele ter um certo grau de melancolia, não se limitando no entanto a uma
contemplação passiva, mas antes, como no caso de Vasco Graça Moura, de uma
reatividade que é produtiva no sentido em que busca sempre um sentido outro.[7]
Tomemos como exemplo a série Desconocidas (2012), trabalho que assenta numa
série de fotografias encontradas pelo artista em Madrid e que datam dos anos
40. A particularidade deste trabalho resulta do facto de as fotografias serem
de fotógrafo desconhecido e retratarem pessoas anónimas. O trabalho de Sendas
passa por manipular um corpo ou um rosto sem conhecer a identidade do seu
referente. O processo não passa apenas pela reabilitação técnica das
fotografias como também da decomposição dos corpos representados. Ao referir
que trabalha a fotografia como escultura, Sendas retoma a noção de
transmedialidade acima referida: "comecei a trabalhar imagens como um escultor
trabalha uma escultura. Tinha uma imagem base e retirava elementos. Mas, por
exemplo, quando retirava um braço, tinha sempre a preocupação de criar
equilíbrio no corpo".[8]
Assemelhando-se ao trabalho da superfície escultórica até dela retirar a forma,
Sendas busca um equilíbrio da imagem através da subtração, resultando por vezes
em manifestações de ausência.
Lemos no título da primeira peça da série uma inscrição quase tumular:
Desconocidas n.º 1, 1945-2012 (Figura_2). Esta última referência à data sugere-
nos uma linha biográfica que é suscitada pela referência necrológica que
reporta ao ano de 2012, e que se prende com a duração da fotografia,
ultrapassando o primeiro momento de execução, concluído em 2012, altura em que
é reconfigurada por Sendas. Consequentemente, esta linha aponta para uma
gestação, como se os sessenta e sete anos que separam o primeiro gesto
fotográfico do mais recente constituíssem um espaço de sobrevivência,
recuperando a terminologia de Didi-Huberman. Não se excluindo mutuamente, as
duas leituras convergem na ideia palimpséstica reiterada pelo artista em
entrevista e apontam para uma sobrevivência do gesto fotográfico através da
duplicação, da sobreposição de um gesto sobre o outro. No primeiro trabalho da
série, o rosto pertencente à figura da fotografia original é retirado, como se
esta dobra de gesto resultasse num excesso e transbordasse para a ausência e
para o fragmento, compensadas no entanto através de outros elementos corporais.
Compensação, harmonia e equilíbrio resultam aqui do domínio da técnica de
vários meios que se conjugam no trabalho de Sendas. Evocando um conceito já
apontado por Carlos França, a arte de Sendas relembra aqui o neologismo que
Castiglione propusera no seu Cortesão, la sprezzatura, já aqui evocado a
respeito de Vasco Graça Moura (França, 2014). O domínio da técnica apresenta-
se, também na arte de Sendas, como uma bella maniera de recuperação da imagem.
Da mesma forma que o autorretrato em espelho convexo de Parmigianino apresenta
a mão no primeiro plano do disco espelhado, como se de um sampler se tratasse,
também Sendas coloca a mão, e manipula imagens suscitando no leitor um olhar
que explora um determinado anacronismo resvalando frequentemente para questões
da ausência, determinado e validado pela técnica compositiva, pela maniera. A
perda, o fragmento e a ausência são, tal como na poesia de Graça Moura,
resultado de um excesso, de um transbordamento referencial, não tanto de uma
postura minimalista de recuo em relação à composição.[9]
Voltemos às origens e desta feita à história de Zeuxis, pintor grego dos
séculos V a.C que, convidado a realizar o retrato de Helena, juntara cinco
jovens da cidade de Crotone e, tirando o melhor de cada uma, encontra forma de
compor o retrato "impossível" de Helena. Corte, colagem e sobreposição no
engendramento de um retrato que dispensa o modelo e que se afasta claramente da
questão da semelhança para a construção de um retrato que é, lembremo-nos,
sempre mental.
Se, como destacaram Ribeiro e Sardo, o método de Noé Sendas assenta na
estratégia de assemblage muito próxima da ação de um DJ, não será uma analogia
menos rica quando colocada a par da poesia de Moura, como Diogo o propôs em
2006.[10] De resto, as estratégias palimpsésticas são marcas típicas de um pós-
modernismo referido por Fernando Pinto do Amaral acerca do ofício poético de
Graça Moura (cf. Amaral, 2001). Encontramos na citação constante a diluição de
fronteiras entre um passado melancólico reativado pelo presente e que, na
esfera retratística como nas demais manifestações, parece acumular uma tradição
de rostos e retratos. Estas referências, cujas estratégias de composição passam
pela estratificação, acumulação e sobreposição até um certo grau de excesso,
resultam num transbordamento que aponta para uma fuga aos preceitos
representativos tradicionais, aproximando-se da perda, da ausência.