A Banha Da Cobra? Ensaio Sobre A Prática Psiquiátrica Contemporânea
A Banha Da Cobra? Ensaio Sobre A Prática Psiquiátrica Contemporânea (1997)
- Victor Amorim Rodrigues & Luísa Gonçalves. Lisboa: Publicações D.
Quixote.
Este livro dos Drs. Victor Amorim Rodrigues e Luísa Gonçalves, psiquiatras do
Hospital Miguel Bombarda (Lisboa), foi concebido como uma obra de divulgação da
prática psiquiátrica contemporânea, "expondo de forma didáctica e
rigorosa o que é a psiquiatria e qual a sua prática terapêutica, que problemas
tem de enfrentar e quais as possibilidades e os limites da sua intervenção
terapêutica" (sic).
No essencial, como obra de divulgação da psiquiatria contemporânea, acessível
ao grande público, pode dizer-se que cumpre e está patente um esforço activo
dos autores no sentido de fazerem emergir um texto claro e facilmente acessível
ao leitor leigo e pouco familiarizado com o jargão psiquiátrico. No entanto, se
é verdade que o livro oferece uma panorâmica muito alargada da psiquiatria do
nosso tempo, não é menos verdade que, inexplicavelmente, não se refere
praticamente a uma área de intervenção que tem hoje importância enorme na
implementação da qualidade de vida de pessoas com doença mental de evolução
prolongada e que é a reabilitação psiquiátrica. Em termos globais, dir-se-ia
que esta é a lacuna principal do livro, que não divulga as potencialidades dos
programas de integração profissional e comunitária desenvolvidos com resultados
excelentes em muitos países. Esta escotomização deriva desde logo da própria
definição de psiquiatria (p. 10) que não inclui o conceito de reabilitação
psicossocial dos doentes mentais. Ao mesmo tempo, a meu ver, deriva também das
preocupações predominantemente terapêuticas, centradas no tratamento da doença,
que os autores revelam ao longo do trabalho, numa perspectiva médica que isola
o problema da doença mental em relação ao contexto social e cultural em que ela
se produz.
Pode ser que esta questão se relacione com o facto deste trabalho ser
atravessado por uma ambiguidade de base: por um lado, os autores parecem ter
uma posição crítica sobre as conceptualizações psiquiátricas estritamente
ligadas ao modelo biomédico e, por outro, não apresentam uma alternativa
consistente que em termos discursivos se apresente de forma específica,
autónoma e bem delimitada da Psicologia e que possibilite a consideração
simultânea dos problemas de saúde mental aos níveis individual, familiar,
grupal e comunitário. Não conseguem assim descolar do modelo médico clássico
que criticam, por não elaborarem sobre as questões políticas, sociais e
culturais relacionadas com a psiquiatria e a saúde mental.
O livro divide-se essencialmente em 5 partes, a saber: uma introdução
histórica, a descrição das categorias nosológicasprincipais, as relacões da
psiquiatria com outras ciências e práticas profissionais, as diferentes
modalidades de tratamentoe, finalmente, uma reflexãode natureza epistemológica.
Estas escolhas parecem acertadas em termos de uma obra que se pretende de
divulgação.
Na introdução histórica, o capítulo sobre "Os Pais Fundadores"
passa em revista a importância para a psiquiatria das obras de 3 figuras
centrais inquestionáveis da história da psicopatologia e da psiquiatria: P.
Pinel, E. Kraepelin e S. Freud. O texto é bem conseguido e o leitor fica
familiarizado com as contribuições fundamentais desses autores. Contudo,
esperaria a inclusão de mais um "pai fundador": K. Jaspers.
A sua "Psicopatologia Geral (Psicologia Compreensiva, Explicativa e
Fenomenológica)", sucessivamente reeditada a partir de 1913, constituiu
referência central da psiquiatria europeia deste século a partir da clínica
psiquiátrica de Heidelberg, nomeadamente com grande repercussão no
desenvolvimento histórico da psiquiatria portuguesa, e representa ainda hoje um
pilar de uma psicopatologia ancorada numa psicologia, aspecto que não teria
sido demais realçar. Falar de Jaspers e da sua obra teria sido também uma
oportunidade excelente para fazer uma primeira ligação à influência que os
contextos sociais e culturais tiveram e têm no desenvolvimento dos modelos
teóricos e das práticas psiquiátricas: "A noção da loucura está
indissoluvelmente ligada à ideia que o Homem faz de si mesmo e da sua situação
no Mundo real e ideal. A maneira de encarar e cuidar do enfermo da mente
insere-se directamente nas formas de vida e de cultura dos grupos
sociais..." (Barahona Fernandes, 1966).
Ainda em relação aos aspectos de introdução histórica, e exactamente porque se
trata de uma obra de divulgação, esperaria que os autores tivessem aproveitado
para divulgar aspectos claramente relacionados com a psiquiatria portuguesa,
designadamente referenciando a importância das obras de Miguel Bombarda, Júlio
de Matos, Sobral Cid e Barahona Fernandes.
Precedida por um capítulo no qual o leitor fica elucidado sobre o problema da
diferenciação entre o normal e o patológicoe as dificuldades inerentes a essa
diferenciação, a descrição das categorias nosológicasprincipais estende-se por
sete capítulos - "Maluqueiras", "Maus Feitios",
"Histórias de Padres, Juízes, Polícias e Médicos", "Panteras,
Dragões e Ratos Mickeys" e "Entre Dois Fogos" nos quais os
autores passam em revista, sucessivamente, as características e as
manifestacões das principais categorias nosológicas que aparecem nas
classificações psiquiátricas actuais da Organização Mundial de Saúde (ICD-10) e
da Associação Psiquiátrica Americana (DSM-IV): psicoses esquizofrénicas e
afectivas, perturbações de ansiedade, neuroses, depressão e estados
depressivos, perturbações de personalidade, parafilias, disfunções sexuais,
toxicodependências e perturbações psicossomáticas.
Em qualquer caso, os títulos desses capítulos foram bastante bem escolhidos e
os autores, utilizando um discurso claro e lançando mão de exemplos também bem
escolhidos, conseguem de facto divulgar junto dos leigos quais são as
principais perturbações mentais e as suas manifestações, o que nem sempre é
fácil, dadas as especificidades do discurso psiquiátrico e as su-as tendências
herméticas.
Compreende-se a preocupação de dar relevo às toxicodependências e às
perturbações psicossomáticas, como situações de grande importância do nosso
tempo, quer em termos de abordagens psiquiátricas, quer pelas suas repercussões
sociais. No entanto, essa escolha foi feita em detrimento do protagonismo
escasso das perturbações depressivas e do problema do alcoolismo crónico que,
como se sabe, são hoje também dois focos muito importantes da psiquiatria e das
práticas psiquiátricas, nomeadamente em Portugal.
Discutível também o peso dado à descrição das parafilias em comparação com as
disfunções sexuais, sendo estas últimas muito mais frequentes em termos
epidemiológicos e clínicos.
Finalmente, teria sido interessante desenvolver mais aprofundadamente as
relações entre as categorias nosológicas definidas no âmbito do discurso
psiquiátrico e as representações de senso comum da perturbação mental, como por
exemplo a de "esgotamento", e a sua importância nos processos de
atribuição causal, crenças de saúde e comportamentos de adesão.
Em "Bem Prega Frei Tomás", os autores passam em revista os modelos
do funcionamento mental perturbadonum capítulo no qual deixaram emergir a sua
preferência pelo modelo psicanalítico, pela quantidade de informação divulgada
em comparação com outros modelos e transmitindo a ideia errónea de que
"psiquiatria dinâmica" só com este modelo estaria relacionada. Está
claro que essa preferência dos autores é completamente legítima e, de resto,
compreensível em termos do que conhecemos sobre os seus percursos de formação e
práticas profissionais. Contudo, a meu ver, num livro de divulgação talvez
fosse exigível maior neutralidade e equidistância em relação dos diferentes
modelos...
De destacar a preocupação em divulgar as abordagens fenomenológicas e
existenciais do homem-per-turbado, o que é raro acontecer neste tipo de obras
de divulgação, pelo menos nas que são mais conhecidas. No entanto, é muito
discutível, apesar de ter sido, segundo os autores, por "facilidade de
exposição", o tratamento em conjunto de um "modelo cognitivo-com-
portamental", em particular porque se trata realmente de dois modelos
diferentes e bem delimitados um do outro. Por outro lado, perdeu-se assim uma
oportunidade magnífica para fazer realçar duas contribuições essenciais da
Psicologia para o estudo das perturbações mentais a partir de modelos
psicológicos... Neste particular, mesmo em termos de introdução, poderiam ter
sido referenciadas as conceptualizações ligadas à psicologia e psicopatologia
do desenvolvimento e, também, ao modelo sistémico.
Em "O que não está nas Escrituras" os autores fornecem uma
panorâmica geral das modalidades de tratamentoutilizadas pela psiquiatria,
nomeadamente a psicofarmacoterapia, a electroconvulsivoterapia, as
psicoterapias e a psicocirurgia. A meu ver, deveriam ter tomado posição sobre a
electroconvulsivoterapia e a psicocirurgia que colocam questões sérias do ponto
de vista ético. Contudo, preferiram uma neutralidade benévola.
Em qualquer caso, têm a preocupação evidente de divulgar as indicações das
diferentes modalidades de tratamento e os resultados que, genericamente, se
podem esperar. Em relação às psicoterapias detalham um pouco mais, fornecendo
uma caracterização breve da psicanálise e psicoterapias de orientação dinâmica,
terapias cognitivas e comportamentais e, ainda, abordagens sistémicas, que não
delimitam claramente da terapia centrada no cliente, análise bioenergética e
psicoterapias existenciais. Se é verdade, por um lado, que colocam o dedo na
ferida que é a inexistência de um estatuto profissional claro de
psicoterapeuta, acabam por contribuir para manter uma certa confusão ao falarem
do movimento da psicologia humanista e colocarem de forma indiferenciada dentro
desse grande "saco" um conjunto de modalidades de intervenção
terapêutica onde aparecem misturadas terapias experienciais com terapias
transpessoais e terapias existenciais. Que bom seria que, à semelhança de
outros capítulos do livro em que os autores produziram um discurso bem claro e
didáctico, o tivessem também conseguido aqui.
Julgo que, comparativamente com outras partes do livro em que os autores
procuraram ir mais longe na divulgação das práticas psiquiátricas, poderiam
aqui ter detalhado um pouco mais as potencialidades das diferentes formas de
intervenção terapêutica, de maneira a que o leitor leigo ainda ficasse mais
informado sobre o que se pode esperar dos psiquiatras e da psiquiatria em
diversas situações clínicas e, por outro lado, entendesse as virtualidades da
combinação judiciosa de diferentes modalidades de tratamento em relação ao
mesmo caso.
O movimento antipsiquiátrico, que tão importante foi para o questionamento da
psiquiatria contemporânea, é passado em revista de forma bastante adequada para
uma obra de divulgação. Pena é que os autores não tenham divulgado
suficientemente a sua importância. Nomeadamente no que se refere à análise do
discurso e das práticas psiquiátricas em função dos contextos social e cultural
em que se inserem, que conduziu ao estudo das representações sociais da
loucura, à investigação das relações entre as práticas de diagnóstico
psiquiátrico com as classes sociais e a discriminação e, também, ao
aparecimento de meios alternativos aos serviços de saúde mental tradicionais e
à abordagem de "desconstrução" das teorias psicopatológicas e das
práticas psiquiátricas contemporâneas. Neste particular, trata-se claramente de
uma abordagem marcada por uma perspectiva conservadora.
Em "As malhas que o império tece" surgem as relações da psiquiatria
com as outras ciências e práticas profissionaise, também, algumas reflexões
epistemológicas. Os autores discutem questões essenciais que se colocam à
psiquiatria de ligação, às equipas de saúde mental, à psiquiatria social e
transcultural. O lei-tor fica com uma visão alargada das práticas psiquiátricas
em diferentes contextos, e isto é francamente positivo. Contudo, não se entende
o uso da expressão técnicos "paramédicos" (mesmo entre aspas...) a
propósito da inclusão de outros técnicos, designadamente psicólogos, nas
equipas de saúde mental. Emergiu aqui obviamente a questão do poder médico. De
resto, os autores evitaram cuidadosamente a questão da delimitação entre a
Psiquiatria e a Psicologia, uma tradicional fonte de confusões. Justamente
porque se trata de uma obra de divulgação, teria sido interessante ter abordado
claramente essa questão. Neste aspecto, que considero da máxima importância, o
livro não atinge os objectivos que foram propostos.
Escapou aqui aos autores a oportunidade de fornecer aos leitores leigos algumas
pistas para a compreensão da forma como estão (des)organizados os serviços de
psiquiatria e saúde mental em Portugal, porque é que há problemas de
acessibilidade e de qualidade nos cuidados que são prestados. Julgo que terá
presidido uma preocupação de neutralidade "política" que, em última
análise, acaba por ser, por omissão, uma atitude de comprometimento com o
status quo.
Procurando clarificar os erros das posições reducionistas, quer em termos de
biologismo quer de psicologismo, os autores terminam com uma certa
"profissão de fé" nas perspectivas de integração entre as
diferentes correntes que hoje existem em psiquiatria, designadamente na, por
agora, miragem de uma "metateoria unificadora" que,
insuficientemente explicada, aparece próxima da convergência eclética à maneira
de Henri Ey, temperada com uma abstracta "consciência humanista"
que não se sabe bem o que quer dizer.
Como obra de divulgação, o livro de Victor Rodrigues e Luísa Gonçalves cumpre.
Atinge claramente o objectivo de fornecer uma visão abrangente da psiquiatria,
mas com algumas fragilidades anteriormente mencionadas que fazem com que, a meu
ver, não tenham conseguido transmitir "a visão rigorosa sobreo universo
fascinante da psiquiatria" que propõem inicialmente ao leitor.
As obras de divulgação da psiquiatria já há algum tempo que estão na moda na
Europa e Estados Unidos da América, e têm geralmente sucesso editorial,
contribuindo até para um certo marketing social da profissão. Faltava em
Portugal uma iniciativa que se integrasse nessa dinâmica, contribuindo para a
divulgação da psiquiatria e das práticas psiquiátricas. Mas tenha-se em conta
que obras de divulgação psiquiátrica como, por exemplo, as de Zarifian
("Les Jardiniers de la Folie") e de Lellord ("Les Contes
d'un Psychiatre Ordinaire") exigiram uma visão muito alargada da
psiquiatria e uma experiência profissional e de reflexão epistemológica sobre
essa própria experiência profissional muito estruturada. Contudo, o livro de
Victor Rodrigues e Luísa Gonçalves é um livro útil, de leitura cativante e
fácil e, pelas suas insuficiências, tem o mérito de nos fazer pensar.
José A. Carvalho Teixeira