O conflito estético na adolescência
O conflito estético na adolescência (*)
Susana Gavancha (**
)
Maria Emília Marques (***
)
RESUMO
O presente artigo tem como objecto o Conflito Estético de Meltzer, percebido
como paradigma do desenvolvimento nos processos transformacionais que surgem na
puberdade e na adolescência. O instrumento utilizado é o método Processo-
Resposta Rorschach, cuja forma de análise foi alargada por intermédio da
criação de novos elementos de análise e procedimentos para aceder ao Conflito
Estético através da análise dos elementos que lhe subjazem: os vínculos K, L e
H, as posições esquizoparanoide e depressiva e o continente-conteúdo.
Palavras chave:Conflito estético, Puberdade e adolescência, Rorschach.
ABSTRACT
This paper will use the Aesthetic Conflict by Donald Meltzer, perceived has a
paradigm of transformational process development that surfaces in puberty and
adolescence. The instrument used is the Rorschach Response-Process Method,
whose analysis was broadened through the creation of new elements of analysis
and procedures to access the Aesthetical Conflict through the analysis of its
elements: K, L and H links, the paranoid-schizoid and depressive positions and
container-contained.
Key words:Aesthetics conflict, Puberty and adolescence, Rorschach.
INTRODUÇÃO
O presente artigo centra-se no Conflito Estético de Meltzer (1989) e Meltzer e
Williams (1988/1995), procurando através do método Rorschach, aceder a esse
paradigma de conflito do desenvolvimento durante os processos transformacionais
impostos pela transição entre infância e a adultícia, no feminino e no
masculino. Assim, guiados pelos conceitos de Melanie Klein (1946/1976, 1930/
1996), Wilfred Bion (1957/1961, 1959/1961) e as explorações de Amaral Dias
(1997, 1999), visamos a análise dos movimentos e vínculos inerentes à
capacidade de admirar o objecto estético que é a descoberta de um Eu e de um
Outro renovados, a capacidade de a eles se consagrar, num processo de
transformação veiculado por intermédio de sucessivas cesuras e mudanças
catastróficas exponenciadas pelos processos pubertário e adolescente, que fazem
oscilar entre o medo do novo e o desejo de o conhecer, o deslumbramento
siderante e a indagação do Belo.
O CONFLITO ESTÉTICO NA ADOLESCÊNCIA
O Conflito Estético de Meltzer e Williams (1988/1995), enquanto paradigma de
conflito do desenvolvimento, assume na adolescência um papel preponderante. Ele
surge como organizador da experiência transformacional adolescente, ao integrar
no seu seio a relação com o desconhecido enigmático, seja esse desconhecido o
próprio corpo em transformação, a interrogação do futuro que espreita ou o
Outro que seduz, atrai e amedronta.
A capacidade de permanecer na incerteza na presença desse desconhecido, ao
longo dos processos transformacionais que conjugam ilusão e desilusão, estranho
e familiar - que vão da clivagem à integração em Ps<->D, no seio da
relação continente-conteúdo e através da acção da identificação projectiva
-. A capacidade de tolerar a escuridão do caminho em direcção ao interior
do objecto estético, do caminho em que se é tornado O, só pode ser efectivada
através do processo de pensamento, tal como postulou a psicanálise de Bion
(1992/2000) e os estudos que se seguiram de Rezende (1994, 1995), Amaral Dias
(1993, 1995, 2003) e Amaral Dias, Rezende, e Zimerman (1998).
A adolescência condensa e potencia o conflito estético, uma vez que em ambos se
joga o sujeito face ao desconhecido na presença do objecto, face à necessidade
de buscar a Verdade sobre o mistério inquietante que é o interior desse objecto
(interno e externo) atraente.
De facto, o processo adolescente reúne características de apelo à beleza, ao
deslumbramento, à estranheza e ao fascínio pelo mistério do desconhecido. É o
convite ao Eu conhecido e desconhecido, ao Outro, ao novo objecto de paixão,
que ganha nova dimensão. No processo adolescente, os objectos internos e
externos agigantam-se ao impor sucessivas mudanças catastróficas, consoante a
fluidez dos investimentos decorrentes dos processos de clivagem, que se
encontram exponenciados. A movência constante e renovada de sentidos exige a
procura e criação de novos significados, símbolos e pensamentos,
complexificando a estrutura dos vínculos K, L e H inerentes.
Será então a partir da investigação desses vínculos que a cesura adolescente,
paradigma de momentos dramáticos e violentos onde se aceita o desafio de mudar
de vértice, deverá ser estudada, uma vez que é através dela que se olha no
presente, passado e futuro, e é por seu intermédio que continuamente surgem
novos estados mentais e novos pensamentos.
Tal como Bion (1959/1961, 1992/2000) postulou, os vínculos conhecimento (K),
amor e ódio (H) oscilam num intervalo negativo e positivo, representando o
primeiro a negatividade e o segundo a exploração do negativo numa aproximação a
O - que aqui postulamos como o interior do objecto estético.
Recorde-se que os vínculos K são aqueles que estão presentes quando se dá o
processo de conhecimento do objecto Outro, interno e externo, num sentido
emocional, isto é, quando a emoção (trabalhada pela função alfa no seio de um
continente tolerante à dúvida que recebe e transforma os conteúdos sem se
danificar) e o conhecimento se ligam, influenciam e preparam a acção.
Assim, os vínculos K proliferam na posição depressiva (uma vez que é aí que se
dá a verdadeira simbolização, na derradeira ausência do objecto que se tem de
construir através de processos de síntese e integração), em mecanismos de
identificação projectiva normal (i.e., ao serviço da exploração e comunicação
de/com outros objectos, ao serviço do pensamento) e na presença de uma barreira
de contacto que permite a comunicação e intercâmbio modulado entre interior-
exterior, Eu-Outro.
Por seu turno, a psicopatologia do pensamento, evidente na abundância de
vínculos -K, destaca-se no distúrbio dos mecanismos citados. A impossibilidade
de experimentar a oscilação Ps<->D emerge quando a dor mental inerente a D é
demasiado insuportável. Nesta ocasião, ao invés da mudança catastrófica surge
uma verdadeira catástrofe e a causalidade circular Ps<->Ps, que se justifica
mutuamente. Para além desta oscilação patológica, pode surgir a causalidade
linear Ps<->D, quando o sofrimento está irreversivelmente justificado e
paralisa, proliferando em ambas as situações os vínculos -K, sendo o pensamento
inviável (Dias, 1993; Dias et al., 1998).
Se a Posição Esquizo-Paranóide se caracteriza por mecanismos de identificação
projectiva patológica e clivagem, também estes mecanismos nos podem indicar a
presença de vínculos -K. A identificação projectiva patológica, ao serviço da
evacuação, do controlo, da negação da dependência e da diferença, ao abolir a
distância e ao negar a ausência, operacionaliza-se como -K por visar a posse, a
mentira e a intrusão no objecto.
O continente transforma-se em claustrum, paralisante e imutável, impedindo a
elaboração das emoções/angústias que se tornam avassaladoras e inundam o espaço
psíquico: o símbolo transforma-se em equação simbólica, simbolizado e símbolo
confundem-se, a arrogância da univocidade impera dada a esterilidade do
dogmatismo.
Os vínculos -K são também evidentes nos mecanismos de clivagem, através da
fragmentação e expulsão dos maus objectos persecutórios e da sua contraparte,
os objectos idealizados. Sob influência da parte psicótica da personalidade,
reflecte-se a sensação de catástrofe interna, uma vez que os objectos internos
e, consequentemente, as relações objectais e os pensamentos, se encontram
desintegrados e cortados uns dos outros.
Explicitada a forma como se anuncia a valência dos vínculos e dado que a
apreensão do belo pressupõe sempre a oscilação em Posição Esquizo-
Paranóide<->Posição Depressiva, no seio de uma relação continente-conteúdo,
compreende-se como esta oscilação é também entre vínculos anti-estéticos,
unívocos e regressivos (-K) e vínculos estéticos, simbólicos e progressivos
(K).
Acresce que, se tal como Rezende (1994, 1995) explicita, a verdadeira expansão
do universo mental consiste em tornar-se O, e se O penetra na área do vínculo
+K (apesar de a sua existência se basear em conjecturas porque dele não se
sabe), é então igualmente certo que apenas a presença de vínculos com valência
positiva e de vínculos que espelhem a indagação (K→O) sugere a procura do
interior do objecto estético, a busca da Verdade última, o genuíno processo de
tornar-se O.
Na adolescência, o tornar-se O joga-se na capacidade de admirar o Outro
enquanto objecto estético e de se consagrar enquanto objecto estético desse
Outro, de buscar o desconhecido que é o próprio interior e o interior do Outro,
numa reciprocidade íntima que promove a transformação, o crescimento e o
desenvolvimento. No entanto, quando as capacidades de pensar o interior do
objecto maravilhoso se encontram comprometidas, o deslumbramento pode provocar
sideração. Então, o desenvolvimento é posto em causa, a imobilidade substitui a
oscilação encontro - procura, o medo do novo substitui a ousadia da
quimera, a inveja sobrepõe-se à admiração, a arrogância da posse substitui a
procura da Verdade.
A capacidade de suportar a incerteza, o desconhecido, a capacidade negativa de
tolerar a frustração do não-saber, joga-se no conflito estético - quando
o objecto apenas oferece a face mas convida a pensar o seu significado
interior, a atribuir novos sentidos e a construir conjecturas sobre a sua
verdade individual - e na adolescência, verdadeira cesura (Bion, 1989) em
que se questiona o corpo e as relações internas e externas que se transformam,
que permanecem as mesmas sem no entanto o serem já, o conhecido se torna
desconhecido, o passado interroga o futuro.
Em síntese, e tendo sempre presente que "a negatividade é a catástrofe do
pensamento enquanto o negativo é a catastrofização da ignorância" (Dias,
1999, p. 84), tomamos a busca do interior do objecto estético adolescente (o
desconhecido que emana das transformações internas) como busca da Realidade
Última, O, "o não-seio desejado e não encontrado, que está ausente"
(Rezende, 1995, p. 44), conscientes de que esta busca apenas pode ser realizada
em Ps<->D (pois só ela viabiliza a criação de novos significados), tal como
só na indagação se dá K→O.
O CONFLITO ESTÉTICO NO MÉTODO RORSCHACH
Para estudarmos o conflito estético adolescente e a qualidade dos vínculos
inerentes a esse processo, utilizamos o processo-resposta Rorschach, cujas
concepções se baseiam na Escola Francesa, presentes em Chabert (1997/1998,
1998/2000) e nos trabalhos de Marques (1996, 1999) que integram as teorias
Kleinianas e pós-Kleinianas.
Sabendo que o conflito estético é um conflito entre interior e exterior, entre
aquilo que pode ser percebido e aquilo que apenas pode ser interpretado e
pensado, o Rorschach é o instrumento a utilizar. De facto, o Rorschach activa a
relação com um objecto desconhecido e enigmático e solícita, através do
carácter ambíguo das manchas, a criação de novas ligações/recriações e a
atribuição de novos significados/sentidos.
Sob a perspectiva que adoptamos (Marques, 1996), a situação Rorschach deve ser
encarada como um novo O, fruto do entrecruzamento do O dos dois parceiros
(sujeito e psicólogo) que cria um novo ponto inicial O, por intermédio do modo
como o mundo interno do sujeito ressoa íntima e sintonizadamente no mundo
interno do psicólogo e da transformação dos elementos que se sobrepõem. A
situação Rorschach possui invariantes que revelam o processo de transformação
[T (sujeito) alfa] e, por conseguinte, a própria natureza de T (sujeito). Neste
processo de transformação disruptivo, que se desenrola numa relação continente-
conteúdo, a resposta/ /interpretação/conteúdo é sempre um novo O e um novo
continente da resposta seguinte, dado que a situação/mancha continua disponível
para novas interpretações. Os factos na sua origem conjugam passado e presente,
interno e externo, sujeito e objecto, tarefa e psicólogo, num processo de
transformação e criação de novos equilíbrios e significados, que revela a sua
natureza inicial através da análise do processo de transformação.
Tal como no conflito estético adolescente, também no Rorschach existe o apelo à
entrega ao desconhecido, à regressão e progressão e à mobilização de
capacidades transformacionais internas que recriem, através do estabelecimento
de novos vínculos, novos símbolos, novos pensamentos e novos caminhos no
processo de buscar a Realidade Última.
Na abordagem do Conflito Estético Adolescente através do Rorschach, seguimos as
seguintes linhas orientadoras:
-
As referências habituais de análise do processo resposta Rorschach e o
seu alargamento teórico, sob influência do paradigma do Conflito
Estético. O balanceamento entre estes dois registos decorre da
necessidade de introduzir alterações e criar novos elementos de análise
na metodologia projectiva do Rorschach, consolidada na corrente da Escola
Francesa, por forma a aceder mais profundamente ao objecto de estudo
- o Conflito Estético Adolescente.
-
Os modelos teóricos que explicitam o processo transformacional
adolescente enquanto reflexo de uma identidade movente (de construção de
novos significados e significantes, novos sujeitos e objectos, desde a
rigidez à fluidez, desde a confusão e os riscos de indiferenciação
púberes à maior apetência pelo objectal complementar na adolescência
propriamente dita) e a sua articulação com o modelo do Conflito Estético,
com o Belo e o desconhecido, com aquilo que pode ser percebido e o que
apenas pode ser pensado.
OS SUJEITOS
Para a análise que realizamos detivemo-nos sobre os protocolos de dois
sujeitos, Ana e André, de sexos diferentes, a quem foi proposta a prova
Rorschach em dois momentos distintos, um que pretende assinalar a puberdade (13
anos) e outro a adolescência (16 anos). Se tanto a puberdade e a adolescência,
como a sua expressão feminina e masculina são caracterizadas por qualidades
distintas, pretende-se estudar os movimentos e transformações inerentes à
apreensão do Conflito Estético, efectuados por cada um dos sujeitos, dos treze
para os dezasseis anos.
PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
O alargamento dos procedimentos foi realizado tendo por alicerces alguns dos
instrumentos teórico-técnicos propostos por Bion, nomeadamente a teoria dos
vínculos e a função Ps<->D, as noções de experiência emocional, relação
continente-conteúdo, função alfa e elementos beta, transformações em O, mudança
catastrófica e cesura.
Foram organizados em dois eixos: no primeiro, cruzámos a simbologia latente de
cada um dos cartões com os processos subjacentes ao Conflito Estético
Adolescente; no segundo, efectuámos a transposição da análise formal habitual
dos protocolos para a caracterização da qualidade continente e conteúdo e dos
vínculos presentes, cujos quadros síntese apresentamos de seguida.
Quadro síntese da simbologia latente dos cartões
Quadro síntese da transposição da análise formal
DISCUSSÃO
Depois de realizarmos a análise dos protocolos com o recurso aos parâmetros
atrás explicitados, podemos agora destacar as principais características que
neles se revelaram.
Sublinhamos, em primeiro lugar, o modo como a diferença de género induz
vivências distintas do conflito estético. Se nos detivermos especificamente
sobre a análise da capacidade de experimentar o relacional, patente nos cartões
bilaterais, dado que é por seu intermédio que mais claramente se acede ao modo
como Um e Outro se transformam na presença do objecto novo e desconhecido,
verificamos que a iminência da intimidade, o face a face, a beleza desse
objecto que habita o sujeito é convite urgente à indagação do seu próprio
interior por via do pensamento.
No cartão II, em ambas as idades e nos dois sujeitos, impera a paralisia, a
intrusão, a inveja, a posse e a arrogância, sinal da brutal dor impensável
provocada pelo branco, vermelho e bilateral.
A distinção entre os dois sujeitos surge através da análise nos cartões
bilaterais III e VII.
A partir deles, compreendemos como, por um lado, a Ana se consegue organizar
melhor do que o André face ao cartão III, estruturando até, aos 13 anos, um dos
seus movimentos de autêntica busca da Verdade (D→P Transcendental), num
processo de tornar-se O. Este facto parece ser paradigmático do potencial de
desenvolvimento já presente nesta jovem, enquanto André persiste, tal como no
cartão anterior, num pensamento pensado em anti-pensamento (Ps<->Ps), sem
viabilidade de expansão mental. Aos dezasseis anos, as respostas de ambos a
este cartão veiculam a oscilação Ps<->D, aquela que promove a flutuação
entre dispersão e integração, caos e síntese e se constitui como base para o
conhecimento do Outro.
Ao contrário dos anteriores cartões bilaterais que transmitiam, devido ao
vermelho, afectos relacionais fortes e intensos, o cartão VIII possui uma
conotação relacional materna muito regressiva, devido ao esbatimento e à
abertura central, decorrendo daqui uma assinalável diferença nas respostas dos
sujeitos. De facto, enquanto este é um dos cartões melhor conseguidos do André,
uma vez que ele produz, aos treze e aos dezasseis anos, um movimento
oscilatório enriquecedor (Ps<->D), é simultaneamente um dos mais difíceis de
elaborar para a Ana, que aos treze anos produz uma resposta em D→Ps (Posição
Esquizo-Paranóide surge secundária a um enlevo depressivo, consubstanciando-se
a redução de objectos inteiros a parciais como defesa contra a extraordinária
beleza do objecto) e aos dezasseis em Ps<->Ps (a incapacidade de apreensão
do belo persiste, proliferando mecanismos de intensa clivagem que impedem a
oscilação com a Posição Depressiva).
Esta distinção parece dar conta de que o André consegue elaborar melhor do que
a Ana a profunda regressão até ao confronto com o primeiro objecto, com o qual
consegue admirar-se, deslumbrar-se e entregar-se. Esta tarefa é mais difícil
para Ana, uma vez que este objecto primário materno coincide com o objecto de
identificação sexual adolescente. Assim, os movimentos de aproximação e
descoberta acarretam uma sobrecarga fusional intrusiva mais proeminente na
jovem do sexo feminino, que ainda não consegue elaborar a presença da sua
ausência, não consegue admirar, procurar conhecer e pensar esse renovado
objecto, mas apenas invejar e procurar possui-lo. A questão para a qual a Ana
ainda procura resposta (por intermédio dos enérgicos movimentos de regressão e
progressão evidentes noutros cartões) é qual a distância ideal em relação a
esse objecto primeiro, do qual é necessário elaborar a radical perda, a
dolorosa ausência, para dele se poder reaproximar por intermédio do pensamento,
sob a égide do processo transformacional adolescente.
Para além da diferença de género, também o tempo modela e condiciona a forma de
apreender o conflito estético através da prova, o que se torna evidente através
da análise dos movimentos efectuados entre o momento do processo pubertário e o
adolescente.
Na puberdade, quer a Ana quer o André possuem ainda uma vivência identitária
subjectiva pouco coesa, em que intensas transformações corporais dão lugar à
desarmonia, à descontinuidade e ao desequilíbrio, sendo estes factores
evidentes nas características do impulso epistemofílico que liga sujeito e
objecto. Neste momento, apenas Ana, e por uma única vez (cartão III), consegue
tolerar a frustração do estranho e do inominável e indagar dentro de si o que
desconhece, no processo de tornar-se O. Este movimento de verdadeira expansão
mental, que vai do conhecimento ao pensamento, não parece ainda acessível a
André, que continua a mostrar-se muito preso à Posição Esquizo-Paranóide e aos
intensos processos de clivagem que a caracterizam. Os seus pensamentos são
predominantemente pensamentos pensados em anti-pensamento, demonstrando assim a
sua dificuldade em comover-se, descobrir-se e deslumbrar-se e penetrar a
insondabilidade dos seus objectos estéticos internos e externos.
O André, sobretudo na puberdade mas também na adolescência, parece mostrar-se
ainda próximo da noção de Agonia Romântica, com o receio de viver a perda
inerente à Posição Depressiva, que faz proliferar a manutenção circular da
Posição Esquizo-Paranóide e os inerentes vínculos -K<->-K. Incapaz de se
entregar à paixão dos seus objectos, internos e externos, devido justamente à
impossibilidade de viver a sua perda, o jovem mostra-se intolerante face à
possibilidade de viver a reciprocidade estética, à possibilidade de tolerar a
dor da incerteza do desconhecido que conferiria ao objecto liberdade própria e,
subsequentemente, o desejo de o conhecer e pensar. A relação mantém-se assim
num impasse, derivado da necessidade de posse e controlo, onde o medo do novo
se sobrepõe à ousadia da quimera, a inveja substitui a admiração e a cesura é
mera turbulência impensada.
Na adolescência parece haver, pelo menos em alguns momentos, uma evolução da
capacidade de admirar(-se) dos sujeitos. De facto, o processo de tornar-se O
surge com a Ana por duas vezes (cartão V e VIII) e com o André por uma vez
(cartão VIII), o que parece indicar uma maior familiaridade com o objecto
estético interno e externo, com a possibilidade de experimentar viver(-se),
conhecer(-se) e entregar(-se), deslumbrar-se com os novos objectos criados.
Se estes movimentos de entrega bem conseguidos se encontram em ambos os
sujeitos, há algo que os faz divergir significativamente. No protocolo do André
apercebemo-nos que quando não existe, dos treze para os dezasseis anos, uma
manutenção de pensamentos pensados em anti-pensamento (o que acontece a maior
parte das vezes), o processo é de recuperação para a oscilação Ps<->D e -
K<->K, patamar que finalmente inclui a viabilidade da expansão mental e
abstracção.
Na Ana, quando não existe a manutenção no mesmo registo (o que é raro
acontecer), a maior parte das vezes a oscilação é no sentido de perda de
qualidade, no sentido regressivo, isto é, no advento do predomínio de vínculos
negativos. Assim, a Ana demonstra, neste processo transformacional que vai da
puberdade à adolescência, uma movência flagrante e impressionante que a obriga
a tocar extremos de grande qualidade e de grande dificuldade.
Enquanto o processo transformacional do André parece seguir uma trajectória
mais linear, com menor fluidez, o que parece ser sinal de que ainda persiste
aos dezasseis anos a preocupação por estabelecer um sentido identitário coeso,
Ana deseja e busca já o Outro que se (re)cria e (re)descobre dentro de si
própria, procura alfabetizar a emoção derivada das novas relações objectais, em
movimentos de vaivém intensos. Este processo (que engloba movimentos de
expressivo recuo) apesar de ser perturbador é também profícuo, e é-
o exactamente porque é perturbador. É ele que autoriza a verdadeira descoberta
do novo e é a sua intensidade e (des)organização que abre as portas a uma nova
ordem de ideias, a novos e renovados significados que, a partir de novas
relações continente-conteúdo, por intermédio de mecanismos de identificação
projectiva e em função de Ps<->D, viabilizam o pensamento.
Se a adolescência é sobretudo movência e fluidez, transformação e mudança
catastrófica, possibilidade de submeter a escrutínio a cesura imposta por
renovados sentidos, então a análise do processo resposta Rorschach de Ana
parece possuir uma qualidade e significado que pensamos não se encontrar ainda
presente nos protocolos do André.
Comum aos dois sujeitos, ainda que, e mais uma vez, mais assinalavelmente no
André, é o facto de apenas por escassas vezes se organizar a verdadeira
expansão mental, aquela que promove a busca da Verdade Última, a indagação do
interior desse objecto estético que é o próprio interior desconhecido do
sujeito, o derradeiro processo de tornar-se O. Acreditamos que tal situação se
deve à dificuldade em pensar o negativo, o desconhecido que assume no processo
pubertário e adolescente, talvez mais do que em qualquer outro momento, uma
dimensão avassaladoramente premente, dada a interrogação do futuro e passado
actualizados no momento presente, a importância atribuída aos novos objectos e
o confronto com a beleza e deslumbramento do novo. Talvez por esse motivo
pareça que é aqui duplamente difícil não ceder à tentação de mentir, de
preencher, de colocar vida no vazio face ao caos virtual interno que os jovens
enfrentam.
Ainda assim, percebemos o potencial de reciprocidade estética, de intimidade,
de entrega, de simbolismo e progressão dos sujeitos. Percebemo-lo ainda mais
quanto pressentimos o seu receio, a sua incerteza, o seu desamparo fundamental,
pressentimos que aceitam experimentar os extremos, desorganizar-se para depois
melhor poderem estabelecer uma ordem outra, pensamentos outros, significados
outros - exactamente aquilo que se exige na adolescência.
Por tudo isto vemos o potencial indagatório e de expansão mental dos sujeitos,
dado que é a partir dessa capacidade oscilatória (Ps<->D e -K<->K)
demonstrada, que se torna possível a indagação K→O, a tolerância do negativo
que catastrofiza a ignorância, o processo de tornar-se O.
CONCLUSÕES
A contribuição específica deste estudo, relativa ao corpo teórico psicanalítico
Kleiniano e pós-Kleiniano, ao processo adolescente e à teoria e método do
processo Resposta Rorschach, não pretende inserir-se numa lógica empírico-
experimental, mas antes numa lógica de natureza essencialmente teórico-
metodológica, procurando aproximar teoria e método, construir pontes e reforçar
intersecções, alargar perspectivas e fazer convergir significados, através de
novas relações continente-conteúdo.
Se aceitarmos que a concepção de sujeito psicológico tem vindo a sofrer
profundas mutações, sobretudo com a introdução do paradigma psicanalítico,
temos de procurar alterar também o modo como procuramos aceder à sua verdade.
Passamos então de uma lógica onde proliferam características de mensuração e
objectividade para uma outra onde se estipula que nem todos os fenómenos são
passíveis de ser descritos desse modo, dadas as suas qualidades subjectivas, a
sua espessura e a sua profundidade. Consequentemente, urge erguer novos métodos
de estudo, dotá-los de novas qualidades de interpretação, compreensão e
intersubjectividade.
O instrumento metodológico a utilizar neste novo caminho a percorrer pela
Psicologia, deve entender-se mais do que o simples modo de aceder ao
conhecimento, deve entender-se como uma via de produção do conhecimento,
destacando e mobilizando o que cada sujeito nele reflecte, numa ressonância
íntima geradora de intersubjectividades. O Rorschach surge assim naturalmente
no nosso trabalho como elemento privilegiado de Psicologia Clínica
intersubjectiva e transformacional, atenta à verdade individual do sujeito
psicológico. Instrumento e método preciosíssimo no conhecimento do sujeito e no
modo como o sujeito conhece a sua verdade, se conhece, o Rorschach deve ser
considerado como lugar onde se encontram interno e externo, sujeito e (os seus)
objectos internos, tarefa e psicólogo, lugar onde se revela a natureza do
conhecimento do sujeito através da análise do processo de transformação no seio
de uma relação continente-conteúdo, geradora de novos significados e
significantes.
Ao longo deste trabalho procurámos fazer convergir o Conflito Estético, o
processo adolescente e o método do processo resposta Rorschach. Desta afluência
acreditamos ter expandido o âmbito de aplicação de cada um destes objectos, ao
aprofundar o seu campo de análise, buscando a procura de uma nova via de
conhecimento. Na sua intersecção encontramos a necessidade de entrega ao
desconhecido, de tolerância ao negativo, a beleza do novo e a necessidade de
investigar a cesura imposta. Também o processo de pensamento inerente se
intersecta nas três dimensões, por terem em comum um processo transformacional
que oscila entre movimentos de regressão e progressão, de mobilização de
capacidades internas, de apelo ao objecto, através de mecanismos de
identificação projectiva, numa relação continente-conteúdo e em função de
Ps<->D.
No seguimento daquilo que defendemos ser a via a seguir pela Psicologia Clínica
- a de aproximar teoria e métodos, aprofundando e reconstruindo os
métodos à medida da edificação do conceito de conhecimento do sujeito
psicológico intersubjectivo -, este trabalho visou dotar o Rorschach de
novos eixos de análise, de modo que, respeitando os princípios de congruência
com os modelos teórico-metodológicos previamente consolidados que nos servem de
base, possamos pensar, por seu intermédio, o Conflito Estético Adolescente.