Editorial
Editorial
A Revista Portuguesa de Educação faz, com este número que agora se dá à
estampa, 20 anos de edição continuada. Numa conjuntura, nem sempre favorável,
por um lado, à produção científica e à disseminação do conhecimento teórico em
ciências sociais, particularmente em Educação, e, por outro lado, ao
reconhecimento dos saberes produzidos em países periféricos e semi-periféricos,
a RPE, quase contra a corrente, tem vindo a consolidar-se simultaneamente como
projecto científico e como projecto editorial de qualidade. A manutenção deste
estatuto não é tarefa fácil e não pode depender exclusivamente de espíritos
voluntaristas, sempre contingentes e transitórios. Tal estatuto exige esforços
institucionais acrescidos, entre eles, pelo menos, a assunção plena da mais-
valia institucional em que se pode traduzir o facto de uma revista académica
local ser internacionalmente reconhecida. Para isso tem trabalhado a Direcção.
Este primeiro número do Volume 20 inclui um núcleo temático sobre Educação,
Diversidades e Cidadanias, com origem no Colóquio sob o mesmo tópico organizado
em Novembro de 2006 pelo Departamento de Sociologia da Educação e Administração
Educacional do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho. A
relevância e actualidade da temática, bem como a qualidade das contribuições
reunidas justificaram o acolhimento da proposta no âmbito da missão editorial
da Revista. Na verdade, esta era uma oportunidade para a RPE responder a um dos
princípios que a guiam e que viria a ser enunciado, na esteira de Paulo Freire,
por um dos autores aqui incluídos, o Professor Carlos Torres: o de participar,
pela discussão científica, na construção de "um mundo menos desagradável,
menos cruel e menos desumano", numa era marcada por 'transfigurações', por
mudanças que, não se mudando 'já como soía', podem, ainda assim, ver-lhe
trocadas as voltas.
Tecidos à volta de palavras-chave como estado, democracia, multiculturalismo,
cidadania e educação, os cinco textos que integram o núcleo participam no
processo de revisitação das relações teóricas entre aqueles conceitos,
revisitação que, para Carlos Torres, no texto que abre o núcleo, é
imprescindível para esse trocar as voltas aos actuais processos que põem em
risco "as bases plurais da democracia e próprio discurso
democrático", com todas as consequências que isso pode ter na educação dos
cidadãos.
Tomando como referência a Grã-Bretanha, Clementina Marques Cardoso reflecte
sobre esses processos, particularmente sobre um dos instrumentos das actuais
políticas sociais: as "classificações de grupos". Analisando dados
circunstanciados sobre os modos como a "diversidade" é gerada no
processo de produção de políticas de governo e como essa diversidade é gerida,
a Autora, por recurso a uma perspectiva histórica e a uma abordagem crítica da
gestão política da diversidade social, discute as suas consequências tanto ao
nível educacional, como da vivência social local e global.
No terceiro texto do núcleo, Almerindo Janela Afonso e Emílio Lucio-Villegas
Ramos discutem conceitos e entidades em transição. Sistematizando uma profunda
reflexão sobre processos históricos, económicos e sociais, entre eles a
globalização e transnacionalização, os Autores destacam a instabilidade que
caracteriza hoje conceitos como, por exemplo, o de cidadanias, ao mesmo tempo
que questionam os lugares para onde elas caminham no quadro das "(novas)
agendas económicas, políticas, culturais, éticas e educacionais". Neste
contexto, é a redução de direitos que pode estar em causa se determinadas
políticas educativas se vierem a concretizar.
Trajectos migratórios e mudanças de atitudes e comportamentos face à escola,
por parte das famílias portugueses em França, são os objectos do estudo de
Maria Engrácia Leandro e Victor Terças Rodrigues. Concebendo, aqui, "os
percursos de escolarização dos jovens portugueses em França como processos
sociais e não apenas como atributos individuais", os Autores, num quadro
"da sociologia das migrações internacionais, da educação, das estratégias
familiares educativas e das proposições de argumentação da sociologia
dinâmica", interpelam os fenómenos sociais verificados, concluindo por um
progressivo, mas árduo, investimento na escolarização e procura de sucesso,
tanto escolar como social para os filhos das famílias portuguesas, cujas
consequências são a ascensão a um estatuto social "adquirido e
conquistado" na sequência do "sucesso escolar e da ascensão social
dos filhos".
Fecha o núcleo o texto de Virgínio Sá e Fátima Antunes que, por meio da análise
de dados provisórios de uma investigação sobre processos de regulação da
educação, particularmente, ao nível de "escolhas organizacionais",
como a constituição de turmas, e de "estratégias de investimento escolar
das famílias", de que a escolhas das escolas ou o recurso a explicações
são aqui exemplos, verificam condições de acesso à educação que, por serem
desiguais, podem contribuir para a penalização de grupos sociais já marcados
por outros défices.
Encerram o número três artigos com origem em campos disciplinares distintos,
mas que em comum, pode dizer-se, tomam os discursos como seu objecto.
Sistematizando uma reflexão sobre o lugar da discursividade no campo dos
estudos do currículo, Marildes Marinho, analisa os Parâmetros Curriculares
Nacionais que, no Brasil, nas últimas décadas, regulam o ensino da Língua
Portuguesa. A partir das representações de autor e leitor e dos dispositivos
retóricos que, nas suas estratégias enunciativas, aí ficam configurados, a
Autora mostra como a produção do currículo resulta de escolhas políticas e não
meramente científicas e/ou pedagógicas.
Por recurso à análise de textos reguladores da formação inicial de professores
do 1º Ciclo do Ensino Básico, a equipa constituída por Fátima Pereira, Ana
Maria Carolino e Amélia Lopes reflectem sobre o diálogo entre as transformações
no campo educativo que tiveram lugar nos últimos 30 anos do século XX, em
Portugal, e o domínio da formação de professores daquele ciclo de ensino. Tais
articulações, concluem as Autoras, desvelam não apenas os processos de
emergência de novas formas de profissionalidade docente, mas, nestes, também, o
impacto das concepções sobre sociedade, política e cultura que importa não
ignorar.
Baseando-se em documentos, textos e livros publicados, Guilherme Rego da Silva
discute o estado da formação no âmbito da Administração Educacional para
concluir que as tendências actuais, também em Portugal, aparecem fortemente
associadas a movimentos político-ideológicos em que, da escola, a imagem é a da
empresa e o seu administrador um técnico. Como forma de ultrapassagem de um
quadro ‘pessimista’, o Autor apresenta a abordagem sociopolítica da
Administração Educacional como possibilidade de resistência efectiva a tais
tendências.
Este número contém ainda uma Nota de leitura do livro Universidade e
construción da sociedade civil, na qual Manuel Barbosa, interpelando o texto,
discute também a missão da Universidade na construção da cidadania face às
actuais 'pressões' que hoje são colocadas a esta instituição. A divulgação de
teses de doutoramento realizadas no Instituto de Educação e Psicologia no
último semestre, de projectos de investigação e de notícias de encontros
científicos conduzidos e organizados por investigadores deste Centro, encerram,
conjuntamente com o tributo às permutas que a RPE mantém, este número que, como
todos os que o precederam nos últimos vinte anos, é resultado de um esforço
colectivo e voluntário que, neste primeiro momento de comemoração, queremos
aqui assinalar.
Sem o labor da sua secretária Ana Rita Guimarães, do técnico de composição João
Gonçalves e dos membros do Conselho de Redacção, António Silva, Fátima Morais e
Maria João Gomes, a RPE não seria possível; mas ela também não seria o que é
sem, primeiro, todos os que, nos vários lugares — da direcção ao secretariado —
nos antecederam e, depois, sem a colaboração dos membros do Conselho Editorial
e dos inúmeros avaliadores ah-hoc que, ao longo destes anos,
desinteressadamente, responderam, quantas vezes em condições adversas, às
nossas solicitações. Em nome da RPE e do Centro de Investigação em Educação que
a acolhe, o reconhecimento da Direcção.
Maria de Lourdes Dionísio e Fátima Antunes