Aprendizagem ao longo da vida: entre a novidade e a reprodução de velhas
desigualdades
Nota Introdutória
A educação tem sido, desde a emergência dos sistemas educativos, objecto de
grandes expectativas e investimentos por parte dos indivíduos isoladamente
considerados e das sociedades e estados nacionais enquanto entidades
colectivas. Da educação se espera que contribua para a promoção da igualdade de
oportunidades, do crescimento económico, do desenvolvimento humano, do
progresso, da cidadania, da empregabilidade, da qualidade de vida, da coesão
social, entre muitas outras finalidades.
Na actualidade, a importância da educação nos modelos de desenvolvimento
económico, social e humano não diminuiu, num contexto em que a ideia de
aprendizagem ao longo da vida assume grande centralidade e é objecto de grandes
debates, designadamente no contexto europeu, reforçando a relevância atribuída
ao sector educativo nas sociedades contemporâneas e nas políticas educativas
actuais.
Neste artigo, analisamos em que medida a ideia de aprendizagem ao longo da vida
corresponde, de facto, a uma novidade no campo educativo, mobilizando
contributos teóricos e conceptuais, bem como informação empírica proveniente
quer de análise de documentos da União Europeia centrados na aprendizagem ao
longo da vida e respectivas "competências-chave", quer de indicadores
estatísticos disponibilizados pelos organismos europeus1.
Aprendizagem ao Longo da Vida e Políticas Educativas Europeias
A centralidade crescente da ideia de aprendizagem ao longo da vida nas
políticas educativas europeias conduz a que alguns autores se interroguem sobre
até que ponto estaremos a assistir à emergência de uma "era de
Aprendizagem ao Longo da Vida" que contrasta com uma "era de
Educação" que poderá estar em claro declínio (Tuschling & Engemann,
2006). Com efeito, "o protagonismo conceptual e a apologia actualmente
registados pelas ideias de formação ao longo da vida e, especialmente, de
aprendizagem ao longo da vida, não têm precedentes na história das políticas
educativas e, em geral, das políticas sociais" (Lima, 2003: 130).
Noutros termos, o que queremos sublinhar é que, ao nível dos discursos
políticos, a ideia de aprendizagem ao longo da vida parece ser, de facto, uma
novidade recente. Em nosso entender, é aliás possível colocar a hipótese de que
esta ideia constitua, de algum modo, um novo princípio estruturante do sector
educativo, pelo menos no plano do discurso e da retórica.
A emergência da aprendizagem ao longo da vida como ideia central dos discursos
e políticas educativas - ou seja como conteúdo das agendas políticas - é
coincidente com a intensificação do papel da União Europeia na área das
políticas educativas. Tal intensificação vem-se sentindo desde o ano 2000 na
sequência do Conselho Europeu de Lisboa no qual se estabelece uma nova visão
estratégica - "tornar a União Europeia a sociedade do conhecimento mais
competitiva e dinâmica, capaz de enfrentar o crescimento económico com melhores
empregos e uma maior coesão social" (Estratégia de Lisboa, Conselho
Europeu, 2000) - que só pode ser alcançada mediante o investimento
significativo no sector educativo/formativo.
Nestas condições,
o momento que actualmente vivemos parece constituir uma fase inédita
(...) as dinâmicas de europeização e de constituição de um
referencial global europeu para as políticas educativas (...)
assumem, hoje (...) uma intensidade, uma amplitude e profundidade de
intervenção claramente distantes daquelas que ocorriam há apenas uma
década atrás (Antunes, 2005: 137).
Para outro autor (Nóvoa, 2005), numa perspectiva convergente, a fase actual de
influência da União Europeia nas políticas educativas inicia-se com a Cimeira
de Lisboa do ano 2000 e pode ser apelidada de "política em estado
sólido", no sentido em que se traduz no estabelecimento de diferentes
programas de acção que pretendem, claramente, influenciar as políticas
educativas dos Estados-Membro na área da educação. Anteriormente, de acordo com
o mesmo autor (Nóvoa, 2005), as fases de "política em estado líquido"
e "política em estado gasoso" distinguem-se pelo marco que constitui
o Tratado de Maastricht em 1992, pois antes deste as possibilidades de acção da
Comissão Europeia em matéria de educação/formação eram bastante reduzidas e,
após o Tratado, assiste-se a um discurso recorrente sobre a dimensão europeia
de educação e acentua-se a produção de numerosos documentos (do tipo livros
verdes e brancos e declarações) sem consequências imediatas, mas influentes na
evolução política europeia em matéria de educação.
Assim sendo, constata-se que ao surgir como o principal lema das políticas
educativas europeias no início do século XXI, a ideia de aprendizagem ao longo
da vida está presente nas orientações estratégicas para a área da educação/
formação nos diversos Estados-Membro. Ainda que a acção política europeia não
se organize em torno de sanções e imposições aos diferentes Estados, verifica-
se que através da discussão e construção partilhada de diagnósticos,
recomendações e planos de intervenção, as orientações europeias acabam por se
constituir como referentes incontornáveis para cada um desses Estados. Como
afirma Nóvoa (2005: 214), a "retórica de Bruxelas sublinha
sistematicamente a ideia de que «é preciso aprendermos uns com os outros»,
favorecendo a melhoria das políticas nacionais no que respeita aos objectivos
definidos em comum". Face a esta recorrência dos discursos políticos em
torno da aprendizagem ao longo da vida, procuramos seguidamente explicitar os
sentidos e significados que lhe podem ser atribuídos.
Sentidos e Significados de Aprendizagem ao Longo da Vida
Como todas as ideias com uma ampla difusão e generalização, a ideia de
aprendizagem ao longo da vida arrisca tornar-se um conceito polissémico e
relativamente opaco que recobre uma multiplicidade de sentidos e significados
nem sempre claros e explícitos, pelo que consideramos necessário procurar
clarificar quais os fenómenos e situações que engloba e quais os entendimentos,
muitas vezes plurais, que encerra.
Assim, importa destacar desde logo que a centralidade crescente da ideia de
aprendizagem ao longo da vida tem vindo, em nosso entender, a originar uma re-
actualização dos debates e concepções correntes sobre processos de educação e
aprendizagem. Na verdade, introduzindo uma perspectiva histórica, podemos
identificar desde a Antiguidade Grega e Romana (ver, por exemplo, Fernández,
2006) referências a pensadores que encararam os processos educativos deste modo
abrangente, simultaneamente, do ponto de vista dos tempos e espaços em que se
aprende. É que "nunca a aprendizagem se reduziu à idade inicial do ser
humano. Ainda que na nossa história mais recente se tenha identificado a figura
social do estudante com o sector da população juvenil, isto nem sempre foi
assim e certamente voltou a deixar de sê-lo, de uma maneira definitiva, na
sociedade do século XXI", como sublinha Fernández (2006: 7).
Com efeito, consideramos que a emergência, desenvolvimento e consolidação dos
sistemas educativos durante os séculos XIX e XX contribuiram para a difusão de
uma visão escolarizada em que se associa estreitamente aprendizagem e processos
desenvolvidos no interior dos sistemas educativos. Concomitantemente, ao
"transformar a educação em refém da forma escolar" (Canário, 2003:
203) desvaloriza-se a noção de que a aprendizagem pode corresponder a
"toda a oportunidade existente em qualquer instituição social para um
indivíduo adquirir conhecimento, skills, atitudes, valores, emoções e crenças
no quadro da sociedade global, bem como o processo pelo qual cada indivíduo os
adquire" (Jarvis, 2007: 99).
Ora, a ideia de aprendizagem ao longo da vida, entendida como um processo que
acontece em diversas fases do ciclo de vida dos indivíduos e nos diferentes
espaços da sua existência, significa, justamente, (re)alargar o âmbito dos
conceitos de educação e aprendizagem, reconhecendo a relevância de espaços e
tempos educativos que estão para além dos espaços e tempos escolares. Trata-se,
afinal, de retomar uma tradição que incorpora, designadamente, o Relatório
Fauré publicado pela UNESCO em 1972, que remetia para os ideais da Educação
Permanente e que foi considerado um ponto de viragem no modo como se concebem
os processos educativos (Canário, 2003; Lima, 2003; Biesta, 2006). Este
documento dava grande relevo à ideia de que o processo educativo é coincidente
com o ciclo de vida dos indivíduos, sendo a construção da pessoa uma dimensão
essencial desse processo numa visão que alguns designam de existencialista
(Jarvis, 2007).
Noutros termos, o que pretendemos evidenciar é que a ideia de aprendizagem ao
longo da vida, entendida desta forma alargada em que abrange todos os espaços e
tempos da vida do indivíduo, não constitui então uma novidade recente, embora a
sua mobilização como lema e elemento estruturante das políticas constitua um
elemento novo no contexto educativo.
No entanto, importa sublinhar que a ampla difusão da ideia de aprendizagem ao
longo da vida pode, a nosso ver, encerrar alguns riscos associados a
entendimentos redutores do termo. Um desses entendimentos é redutor porque a
aprendizagem ao longo da vida é vista enquanto educação de adultos, como de
resto está subjacente aos indicadores estatísticos (como por exemplo os
disponibilizados pelo Eurostat) que a medem através da participação de adultos
em acções de educação/formação. Um outro entendimento redutor traduz-se na
estreita associação entre aprendizagem ao longo da vida e sistemas educativos,
esquecendo que a aprendizagem decorre também em espaços informais que não se
estruturam em termos de objectivos educativos e que correspondem às actividades
diárias relacionadas, designadamente, com o trabalho, a família ou o lazer2.
A estes sentidos restritivos da ideia de aprendizagem ao longo da vida
acrescem, pelo menos, dois grandes riscos de reducionismo no modo como esta
ideia se tem tornado um elemento central das políticas educativas europeias, os
quais diversos autores (ver, por exemplo, Biesta, 2005 e 2006; Nóvoa, 2005;
Canário, 2003; Lima, 2003) têm vindo a evidenciar, contribuindo para uma
reflexão crítica sobre a difusão e generalização da ideia de aprendizagem ao
longo da vida.
Um desses riscos consiste em subjugar a aprendizagem ao longo da vida a
finalidades profissionais e de competitividade económica, reduzindo os
processos de aprendizagem dos indivíduos a meios para assegurar a capacidade
produtiva de cada um de nós. Neste sentido, Biesta (2006) argumenta que a União
Europeia tem uma visão claramente economicista da aprendizagem ao longo da
vida3, reduzindo-a à sua função de "serviço ao emprego e à economia",
enquanto Lima (2003: 129) afirma que "hoje, porém, o apelo sistemático à
formação e à aprendizagem tende a ser predominantemente orientado para a
adaptabilidade, a empregabilidade e a produção de vantagens competitivas no
mercado global".
Um outro risco de reducionismo, no modo como a ideia de aprendizagem ao longo
da vida tem sido mobilizada enquanto elemento central das políticas educativas
europeias, encontra-se no facto de a mesma tender a ser entendida, sobretudo,
como um processo que é responsabilidade exclusiva dos indivíduos. Nas palavras
de Nóvoa (2005: 218), faz-se "o elogio do aprendente responsável e
sensato, criticando simultaneamente aqueles que não são capazes de tomar
conta da sua própria vida, ou seja da sua própria formação". Nos termos de
Biesta (2006), trata-se de considerar a aprendizagem como um assunto e uma
responsabilidade do indivíduo, menorizando a necessidade de criar condições que
favoreçam a emergência de dinâmicas de aprendizagem ao longo da vida e a adesão
dos indivíduos a essas dinâmicas. Essas condições, favoráveis à aprendizagem ao
longo da vida, passam por uma multiplicidade de estratégias como sejam as
oportunidades educativas e formativas dirigidas a diferentes tipos de públicos,
os mecanismos de reconhecimento e validação de aprendizagens informais, os
apoios concedidos aos indivíduos (financeiros, mas também logísticos) para
frequentar acções de educação e formação, entre outras.
Aprendizagem ao Longo da Vida nos Documentos da União Europeia
Com o objectivo genérico de compreender os sentidos e significados conferidos à
aprendizagem ao longo da vida nas orientações estratégicas da política
educativa europeia, apresentam-se, em seguida, alguns resultados da análise
documental realizada (corpus de 20 "textos políticos"4). O corpus de
20 documentos que analisámos está dividido em dois grupos 5: o conjunto A é
constituído por 12 documentos de enquadramento político genérico da Comissão
Europeia na área da educação/formação, enquanto o conjunto B é composto por 8
documentos que dão conta da actividade de um grupo de trabalho centrado nas
competências-chave da aprendizagem ao longo da vida. Procuraremos sistematizar
os resultados da análise destes documentos em torno de algumas ideias-chave.
Uma dessas ideias-chave corresponde a um debate que se centra no questionamento
das implicações de uma aparente alteração de linguagem, em que os vocábulos
educação ou formação parecem estar sendo substituídos pela expressão
aprendizagem (Biesta, 2005). Sobre esta matéria gostaríamos de sublinhar que a
análise quantitativa dos termos "educação", "formação" e
"aprendizagem" (e outros adjacentes como educar ou aprender, por
exemplo) não nos permite, em qualquer dos dois conjuntos de documentos
analisados, concluir que quantativamente os termos relacionados com
"aprender" surjam mais vezes.
No que respeita ao conjunto A, indica-se que "na nossa análise não nos
parece muito evidente o uso de uma linguagem de aprendizagem em detrimento do
uso da linguagem da educação." (Gomes & Neves, 2008: 22). No caso do
conjunto B, conclui-se que
a palavra educação é claramente a que mais presente está nestes
documentos (1004 ocorrências). Com ocorrências em torno de 500
encontramos três termos articulados com a temática dos documentos em
análise - skills, competências e competências-chave -
destacando-se, ainda, com um número de ocorrências semelhante,
aprendizagem (Alves & Vicêncio, 2008: 24).
Com base apenas na análise quantitativa, com as limitações que lhe são
inerentes, poderá revelar-se excessivo afirmar que a "linguagem da
aprendizagem" substituiu a "linguagem da educação", ainda que,
como sabemos, toda a questão educativa pareça ser, no âmbito das políticas
educativas europeias, perspectivada sob a égide da aprendizagem ao longo da
vida. Como se afirma num dos relatórios da análise documental, "a União
Europeia ao referir-se ao processo de aquisição de conhecimentos, reconversão e
actualização de competências, denomina-o de «aprendizagem ao longo da
vida»" (Gomes & Neves, 2008: 22).
Ora, a presença dominante da aprendizagem e da aprendizagem ao longo da vida,
ainda que não identificável do ponto de vista lexical e quantitativo, encerra
alguns riscos que vêm sendo identificados na reflexão crítica de diversos
autores (ver, por exemplo, Canário, 2003; Lima, 2003) e que podem ser
ilustrados pelas palavras de Biesta (2005: 64):
one way, therefore, to summarise my critique is to say that while the
new language of learning has had a positive impact in some areas, it
has proven to be a language very suitable for those who want to think
of education strictly in economic terms, that is, as an exchange
between a provider and a consumer.
De facto, relativamente às finalidades com que a aprendizagem ao longo da vida
é implementada e defendida enquanto orientação estratégica da política
educativa, a análise documental realizada permite suportar a hipótese de que a
visão economicista da educação e das suas finalidades tem vindo a assumir uma
preponderância significativa nas orientações estratégicas da política educativa
europeia.
No caso do conjunto de documentos A refere-se a existência de
uma tendência para uma orientação mais economicista e mais
vocacionada para o mercado de trabalho e para a competitividade
(...). Portanto, ao nível dos aspectos ideológicos, conseguimos
levantar algumas hipóteses que vão no sentido de uma orientação mais
economicista camuflada por uma retórica que tenta evidenciar
tendências para o desenvolvimento individual e social (Gomes &
Neves, 2008: 22).
No que respeita ao conjunto de documentos B conclui-se que
na análise dos documentos considerados, é globalmente notória a
aceitação do pressuposto de que os níveis mais elevados de
escolarização e qualificação favorecem a empregabilidade, entendendo-
se que a implementação de estratégias de aprendizagem ao longo da
vida é fundamental para assegurar o pleno emprego, bem como a
qualidade e produtividade do trabalho (...) esta visão fortemente
subjugada a objectivos económicos surge matizada com preocupações de
cidadania, inclusão social e desenvolvimento pessoal (Alves &
Vicêncio, 2008: 29-30).
Um outra ideia-chave, quando se pretende entender os sentidos e significados da
aprendizagem ao longo da vida, relaciona-se com o modo como é perspectivado o
próprio processo de aprendizagem e como nele se articulam, de modo mais ou
menos evidente, a diversidade existente de contextos de aprendizagem (os
espaços) e as diferentes idades da vida (os tempos).
Os resultados da análise documental realizada apontam para a hipótese de que a
aprendizagem ao longo da vida esteja a ser entendida, no quadro das orientações
políticas estratégicas, de acordo com uma visão bastante escolarizada.
Relativamente ao conjunto de documentos B afirma-se que
as orientações estratégicas de aprendizagem ao longo da vida
presentes dos documentos analisados parecem remeter, em grande
medida, para os sistemas formais de educação e formação,
designadamente os que se destinam a jovens adultos e aqueles que se
vocacionam para a educação/formação inicial obrigatória (Alves &
Vicêncio, 2008: 31).
e nota-se também que são "quase inexistentes as referências às
organizações aprendentes ou às cidades ou regiões aprendentes" (idem).
No mesmo sentido, aponta-se sobre o conjunto de documentos A que "por um
lado, consideramos que há uma vontade política de envolver e dar sentido a
todos os modos de educar e aprender, por outro lado, há uma dificuldade forte
em conter a educação informal em mecanismos e espaços próprios e
designáveis" (Gomes & Neves, 2008: 28). Neste mesmo relatório
assinala-se, complementarmente, que existem acepções divergentes nos documentos
analisados em torno da educação e aprendizagem informais, encontrando-se
expressões como "ensino informal" e "estabelecimento de ensino
informal" que são em si mesmas contraditórias. Simultaneamente, destaca-se
que "o reconhecimento e validação de competências e aprendizagens não-
formais e informais são objectivos políticos não tão frequentes como a
aquisição de competências e conhecimentos, o que leva a levantar a suspeita de
que o principal objectivo é estimular a aquisição de conhecimentos e
competências, mais do que reconhecê-los e validá-los" (Gomes & Neves,
2008: 26).
Um outro indício da dificuldade em separar a aprendizagem ao longo da vida de
uma visão escolarizada de educação e aprendizagem consiste na circunstância da
análise dos dois conjuntos de documentos convergir na ideia de que as
competências privilegiadas remetem, sobretudo, para áreas disciplinares e muito
menos significativamente para conhecimentos e atitudes transversais a
diferentes domínios. Este aspecto é particularmente bem ilustrado no caso do
conjunto B, verificando-se que algumas das competências-chave identificadas6
remetem para áreas disciplinares (ex: língua materna, línguas estrangeiras,
matemática, ciência e tecnologia). Neste sentido, parece estar presente, de
algum modo, na tipologia de competências-chave, uma lógica disciplinar e de
adição de conhecimentos, aptidões e atitudes enquadrados em áreas
disciplinares, que coexiste com uma lógica de competências-chave transversais a
vários domínios disciplinares (mais visível, por exemplo, em "aprender a
aprender" ou "competências sociais e cívicas") (Alves &
Vicêncio, 2008: 34-35).
Em articulação com o que vimos referindo, importa destacar alguns elementos
referentes aos actores que são identificados como protagonistas da aprendizagem
ao longo da vida. Na verdade, a análise de conteúdo do conjunto A permitiu
considerar dois conjuntos categoriais: (1) designação genérica de sujeitos
individuais ("cidadão", "indivíduos", "pessoas",
"adultos", "jovens", "crianças",
"idosos") e (2) designação específica de sujeitos de aprendizagem
("aprendente", "aluno/a", "estudante",
"formando/a", "educando/a", "discente").
Verificou-se no balanço dos 12 documentos que, por um lado, o primeiro conjunto
é muito mais frequente do que o segundo e, por outro lado, que os vocábulos
"idosos" e "crianças" são menos frequentes nestes
documentos (Gomes & Neves, 2008). O primeiro aspecto é convergente com os
slogans políticos da educação para todos e em todas as idades da vida, mas o
segundo aspecto indicia uma maior preocupação com as dinâmicas de aprendizagem
ao longo da vida protagonizadas por jovens e adultos (indivíduos em idade de
actividade profissional) em detrimento de crianças e idosos.
Em síntese, pode colocar-se a hipótese de que os sentidos e significados
conferidos à aprendizagem ao longo da vida nos documentos analisados oscilam
entre um entendimento que se encontra ainda próximo de uma visão restrita de
aprendizagem e uma outra perspectiva que também valoriza os espaços não formais
e informais de aprendizagem. Concomitantemente, constata-se que todos os
indivíduos são protagonistas da aprendizagem ao longo da vida sendo dado
particular relevo a jovens e adultos, ou seja, a população em idade activa, o
que nos parece consistente com a ideia de que as orientações estratégicas das
políticas educativas se regem, significativamente, por objectivos economicistas
e profissionais.
Dinâmicas de Aprendizagem ao Longo da Vida
Com o objectivo genérico de antever de que modo as orientações políticas
europeias de promoção da aprendizagem ao longo da vida estão sendo traduzidas
em dinâmicas substantivas procurando, em particular, situar o caso português no
panorama europeu, consideramos sucintamente alguns indicadores estatísticos
disponibilizados por organismos europeus. Globalmente, importa sublinhar que a
observação desses elementos estatísticos nos conduz a colocar a hipótese de que
a motivação para aderir a dinâmicas de aprendizagem ao longo da vida tende a
assumir expressões diversificadas em função do percurso prévio dos indivíduos e
dos países no que respeita à educaçâo e à formação.
De facto, os dados obtidos no inquérito efectuado pelo CEDEFOP, em 2003,
indicam que a proporção de pessoas que não se manifestam interessadas em
aprender é particularmente elevada, por exemplo, no caso português (50%), ao
mesmo tempo que no nosso país também se verifica a tendência para menos
indivíduos afirmarem aprender em diversos contextos da vida do que,
nomeadamente, na Finlândia, Suécia ou Islândia. Ou seja, se em Portugal os
diferentes indicadores de desempenho do sistema educativo são menos favoráveis
por comparação com a média europeia, esta situação parece ter implicações nas
dinâmicas de aprendizagem ao longo da vida dos cidadãos do nosso país.
Estas constatações são convergentes com os resultados de uma investigação que
realizámos anteriormente, os quais contribuem para apoiar a ideia de que os
indivíduos que atingem níveis de escolaridade mais elevados têm uma maior
propensão para voltar a frequentar o sistema educativo ou para procurar acções
de formação, ao mesmo tempo que mais frequentemente reconhecem as aprendizagens
que realizaram em contextos informais (Alves, 2008). Ora, sabendo que a
população portuguesa se distingue, no contexto europeu, por uma escolaridade
média pouco elevada será de considerar a hipótese de que a adesão à
aprendizagem ao longo da vida não seja particularmente significativa no país.
A observação de dados estatísticos disponibilizados pelo Eurostat permite
observar tendências semelhantes ao que acabamos de afirmar, pois a aprendizagem
ao longo da vida assume diferentes expressões nos vários países: abrange, no
ano de 2006, 9,6% da população dos 27 países da União Europeia7, mas esse valor
é de apenas 3,8% no caso português. De resto, com um valor idêntico ou inferior
a Portugal encontramos a Hungria (também, 3,8%), a Turquia (2%), bem como a
Grécia (1,9%) e a Bulgária ou Roménia (cada um destes países com 1,3%). No
extremo oposto, países como o Reino Unido (26,6%), a Finlândia (23,1%) ou a
Dinamarca (29,2%) apresentam os valores mais elevados neste indicador.
A interpretação destes dados conduz à hipótese de que, aparentemente, as
dinâmicas de aprendizagem ao longo da vida medidas por este indicador tendem a
ser mais significativas em países nos quais os sistemas educativos se
consolidaram cedo e onde a literacia e a escolaridade assumem valores mais
favoráveis. Neste sentido, a diversidade de situações dos países perante a
aprendizagem ao longo da vida é, de algum modo, marcada pelo modo como nesses
países emergiram e se consolidaram os sistemas educativos.
Em síntese, a análise das dinâmicas de aprendizagem ao longo da vida em
diversos grupos e nos diferentes países europeus indicia que, geralmente,
aqueles que registam piores desempenhos em matéria de indicadores de
escolaridade (taxas de sucesso e abandono por exemplo) são também aqueles que
apresentam taxas de participação mais baixas na educação/formação de adultos.
Aliás, como recorda Afonso (2005: 172), "tal como tem acontecido em
relação à educação formal, também a educação informal e não-formal podem
inscrever-se, quer em lógicas de reprodução e de regulação, quer em lógicas de
mudança e de emancipação social".
Ora, de acordo com a hipótese que apresentamos, as dinâmicas de aprendizagem ao
longo da vida parecem poder significar uma reprodução das desigualdades
existentes, entre países e entre grupos de indivíduos, quer na motivação para a
aprendizagem quer no acesso às acções e sistemas de educação e formação. Nestas
condições, consideramos necessário aprofundar melhor os contornos desta
hipótese genérica, bem como não a esquecer aquando da promoção de dinâmicas de
aprendizagem ao longo da vida, com o objectivo de não arriscar um agravamento
das desigualdades já existentes entre países e entre indivíduos.
Nota Conclusiva
O objectivo do presente artigo é o de reflectir sobre a ideia de aprendizagem
ao longo da vida, questionando aquilo que nela constitui (ou não) novidade quer
no plano dos sentidos e significados, quer nas alterações que introduz (ou não)
por um lado, nas orientações estratégicas subjacentes às políticas educativas
e, por outro lado, nos processos de educação e formação. Assim sendo,
gostaríamos de sintetizar alguns elementos relativos a este objectivo, os quais
foram alcançados através dos contributos teóricos e empíricos de diferentes
naturezas mobilizados ao longo do texto.
Globalmente, concluímos que existem poucos elementos portadores de novidade
em toda esta centralidade crescente da ideia de aprendizagem ao longo de vida.
Do ponto de vista teórico e conceptual, esta ideia - embora não necessariamente
com esta designação - tem estado presente no pensamento sobre educação de
diversos autores ao longo dos tempos, bem como na reflexão que acontece nos
organismos internacionais há já várias décadas. Do ponto de vista substantivo,
a aprendizagem confunde-se com a própria existência humana e, neste sentido,
teve sempre lugar ao longo da vida e em diferentes espaços da nossa existência.
Porém, do ponto de vista das práticas e sistemas educativos, o (re)conhecimento
da abrangência da ideia de aprendizagem ao longo da vida dá origem a desafios
relativamente ao seu modo de funcionamento que podem encerrar alguma novidade.
Do ponto de vista das políticas, se é verdade que a apologia da aprendizagem ao
longo da vida como elemento central das orientações estratégicas constitui uma
novidade, constata-se igualmente que tal situação obriga a retomar debates que
desde sempre atravessam a educação sobre as suas finalidades nos planos da
economia/emprego, sociedade/coesão social ou indivíduo/construção da pessoa.
A observação dos estreitos laços existentes entre a motivação e adesão a
dinâmicas de aprendizagem ao longo da vida e o maior ou menor sucesso anterior
dos percursos escolares, a nível individual, ou dos processos de
desenvolvimento e consolidação de sistemas educativos, a nível societal,
conduzem a colocar a hipótese de que essas dinâmicas contribuam para reproduzir
velhas desigualdades. Isto, no sentido em que aqueles (indivíduos ou
sociedades) que mais aderem a dinâmicas de aprendizagem ao longo da vida tendem
a ser, aparentemente, também os que conheceram mais sucesso no que respeita aos
processos de escolarização. Se tal se verificar, a centralidade da aprendizagem
ao longo de vida não tornará as políticas educativas mais geradoras de
equidade, pois continuarão a acentuar as desigualdades já existentes.
Nestas condições, consideramos particularmente relevante, em trajectos de
investigação futuros, aprofundar o modo como as orientações subjacentes às
políticas educativas europeias vêm sendo entendidas e vêm influenciando as
acções e decisões de países, instituições e indivíduos em matéria de educação e
formação. Esta opção é especialmente pertinente por duas razões: por nos
parecer tratarem-se de níveis de análise carentes de investigação e pelo facto
de partilhamos da perspectiva segundo a qual a política (educativa, neste caso)
é um resultado contingente e processual das interacções entre actores,
instituições, discursos e acontecimentos (Lindblad, Ozga, Zambeta, 2002).
Notas
1 Este artigo reúne resultados de um projecto de investigação em equipa
financiado pela FCT/MCTES com o título "Educação e Desenvolvimento Humano
no contexto da União Europeia: Análise comparativa das Políticas Educativas
Europeias à luz do paradigma da Aprendizagem ao Longo da Vida" (referência
PTDC/CED/60425/2004) que decorreu entre 2007 e 2009.
2 Nestes contextos informais a aprendizagem pode ser intencional, mas é na
maioria dos casos não intencional e pode ser referenciada como aprendizagem
experencial (Tuschlung & Engemann, 2006).
3 Para Biesta (2006) existem diferenças entre a visão da UE e a visão de um
outro organismo internacional - a OCDE - na qual é menos marcado o reducionismo
económico que caracteriza a retórica europeia.
4 Consideramos os documentos "textos políticos" no sentido que lhes
é conferido por Lingard e Ozga (2006) enquanto textos que procuram enquadrar e
mudar as práticas educativas ou ainda enquanto meios de difusão de uma
determinada mensagem política.
5 Ver, no anexo_1, a nota metodológica em que se explicitam os critérios e
procedimentos seguidos na análise documental.
6 Para uma listagem das competências-chave identificadas nestes documentos
pode consultar-se o anexo_2.
7 Os dados que se apresentam são disponibilizados pelo Eurostat e referem-se à
percentagem de população adulta entre os 25 e os 64 anos que afirmou ter
participado em acções de educação e formação nas 4 semanas anteriores ao
survey.