Prolegómenos sobre o processo de transformação capitalista da actividade
educativa nos níveis básico e secundário de escolaridade
Introdução
A tese geral que aqui se defende é a de que está actualmente em curso nos
sistemas educativos e na actividade educativa a nível mundial e global uma
transformação capitalista com um ritmo, uma amplitude e uma profundidade
comparáveis às revoluções que ocorreram, sobretudo a partir dos séculos XVII/
XVIII, na produção industrial e nos serviços (Mesquita, 2009b, pp. 9-105).
Na sua fase actual, o processo de capitalização da actividade educativa é
marcado por um protagonismo crescente das classes empresariais e das suas
organizações nas principais iniciativas e movimentos de inovação e de reforma,
e bem assim pelo surgimento e expansão de novas e poderosas empresas educativas
de natureza privada e com fins lucrativos, as quais vão progressivamente
penetrando e dominando todas as áreas da actividade escolar, desde as
instalações e infra-estruturas até à gestão global de escolas e sistemas
escolares, passando pela administração do currículo e da avaliação das
aprendizagens, pela contratação, formação e avaliação dos professores e
educadores, etc. Embora a mudança educativa assim perspectivada tenha já hoje
adquirido características de um fenómeno de dimensão global, é nos países
avançados do chamado mundo anglo-saxónico que a mesma assume um carácter mais
desenvolvido e de contornos mais definidos, razão pela qual privilegiaremos no
presente estudo a situação nesses países, designadamente nos Estados Unidos da
América.
Neste país, em 1992, Christopher Whittle protagonizou, com The Edison Project,
a primeira experiência actual de criação de uma empresa com fins lucrativos
para gerir escolas dos sistemas públicos de educação, a que logo se seguiram
outras (Saltman, 2005) 1. Alguns anos mais tarde G. Hentschke podia afirmar que
"uma indústria educativa' completa ganhou proeminência" (Hentschke,
2006, 14) e Patrícia Burch destacava "o crescente mercado de produtos e
serviços educativos impulsionado pelos mandatos federais e locais de avaliação
de resultados" (Burch, 2006, p. 2589) 2. Mais recentemente, Alex Molnar e
colegas referiam que, entre 1998 e 2010, o número de Educational Management
Organizations (EMOs) com fins lucrativos nos EUA tinha aumentado de 14 para 98
e o número de escolas geridas por essas EMOs tinha subido de 131 para 729
(Molnar et al, pp. 4-6). O optimismo actual dos defensores do capitalismo
educacional é por sua vez expresso por M. Sandler nos seguintes termos:
"Estes são tempos favoráveis para os empresários da indústria educativa. O
governo, os capitalistas e os filantropos estão concentrados no
empreendedorismo social e na educação como grandes prioridades" (Sandler,
2010, p. 141).
Tendo como palco privilegiado os sistemas públicos de educação, o dito processo
de capitalização envolve uma transformação profunda no trabalho que é
desenvolvido no meio escolar, assim como nas estruturas estatais que acolhem,
organizam e dirigem a actividade educativa. No quadro do que designamos como
Estado capitalizador e formas pró-capitalistas de mercado por este promovidas
na actividade educativa, o objectivo de "melhoria contínua" dos
resultados escolares impulsiona uma transformação de tipo capitalista nas
relações sociais de produção educativa e institui a produtividade do aluno como
tema central no presente processo de mudança. Neste contexto, reveste-se de uma
particular importância o estudo das formas de valorização dos capitais
investidos na indústria educativa.
A explanação dos fundamentos da actual transformação educativa a que a seguir
se procede será assim dividida em três partes. Na primeira, defende-se que a
presente transformação educativa configura um processo clássico de transição
capitalista, através do qual se pretendem realizar as funções sociais
atribuídas aos sistemas educativos através da instituição de um novo modo de
produção educativa. Na segunda, procuramos, com base na teoria marxista, situar
o referido processo de capitalização na evolução histórica do modo de produção
capitalista, sendo debatidas as condições de valorização do capital na
indústria educativa. Finalmente, na terceira parte abordar-se-á o tema da
transformação das estruturas estatais responsáveis pela educação de massas e
das relações sociais de produção educativa.
O âmbito deste estudo são os sistemas de educação não superior e nele se
procura explicitar o sentido principal da presente mudança educativa. Não é
pois nosso propósito analisar e aferir o desempenho desses sistemas como
resultado das actuais políticas educativas. De igual modo, não cuidamos aqui de
analisar os inevitáveis movimentos de resistência a tais políticas e os seus
efeitos, quer na criação de obstáculos ao avanço do processo de capitalização
quer na formulação de alternativas ao mesmo. Estes são temas da máxima
importância cujo tratamento permite estudar com um fundamento reforçado a
situação presente e as perspectivas futuras da educação em cada contexto
particular e também num plano global. Privilegiamos contudo neste artigo a
caracterização da lógica que está na base das actuais transformações nos
sistemas públicos de educação.
2. Um processo clássico de transição capitalista centrado no aumento da
produtividade do trabalho do aluno
Analisando a realidade da educação pública nos Estados Unidos da América,
Mosher, Fuhrman e Cohen afirmam que "no último meio século assistiu-se a
uma transformação histórica nos objectivos educativos", transformação essa
que definem da seguinte maneira: "o foco transferiu-se dos recursos ( )
para a questão de saber se virtualmente todos os estudantes atingem a
proficiência nos conhecimentos e nas aptidões fundamentais" (Mosher,
Fuhrman e Cohen, 2007). A versão radical da mudança referida por estes autores
é a que se contém hoje na expressão "não admitir desculpas", cujo
significado é o de que as desigualdades sociais e a quantidade de recursos
disponíveis nas escolas são variáveis pouco importantes relativamente ao
objectivo de assegurar um pleno "sucesso" educativo de todos os
alunos (ver, por exemplo, Thernstrom e Thernstrom, 2004). É esta a tese que se
tem vindo a impor nas políticas públicas de educação, não apenas nos EUA mas
também em termos praticamente globais e universais.
Sustenta-se neste artigo que um elemento crucial na mudança antes referida
reside na procura de aumentar continuamente a produtividade do trabalho escolar
(o desígnio de "melhoria contínua" dos resultados escolares) e que
uma tal procura envolve uma lógica de "produção educativa" que tem
fortes semelhanças com a que existe nos demais sectores produtivos. Em termos
históricos recentes, o projecto de capitalização dos sistemas públicos de
educação que assim se configura foi explicitamente delineado num texto de
Milton Friedman, divulgado pela primeira vez em 1955 (Friedman, 2002).
Entretanto, numa obra comemorativa do quinquagésimo aniversário sobre a
publicação do mencionado texto, um grupo de autores fez questão de defender que
no período de meio século transcorrido desde então se vem assistindo, nos EUA,
ao crescimento notório de uma "indústria educativa competitiva", nos
termos utilizados pelo próprio M. Friedman (Enlow e Ealy, 2006). A transição
para um regime de capitalismo educacional nos sistemas públicos de
escolarização de massas está hoje abundantemente documentada em múltiplos
estudos e investigações (ver, por exemplo, Hentschke e outros, 2002; Hentschke,
2006; Burch, 2006; Molnar, 2006; McGuinn, 2006; Robertson, 2007; Sandler,
2010), parecendo ser coincidente, no seu conteúdo e no seu significado, com a
"transformação histórica" que Mosher, Fuhram e Cohen identificaram,
nos termos antes referidos.
Defendemos assim que, salvaguardando as fortes especificidades da actual
mudança educativa, a mesma configura um processo clássico de transição
capitalista. A existência de tal processo representa, para as classes
dominantes que o promovem, o propósito de realizar as funções sociais
atribuídas aos sistemas educativos através da capitalização desses sistemas.
Pretende-se assim articular num mesmo quadro organizativo duas finalidades
distintas cometidas aos sistemas de escolarização de massas, a saber, a de meio
de formação de trabalhadores e de cidadãos aptos a ocuparem um lugar mais ou
menos prescrito na sociedade e no aparelho produtivo, por um lado, e a de fonte
de valorização dos capitais investidos na indústria educativa, por outro
(Mesquita, 2009a, 2009b).
A escolarização de massas promovida pelo Estado deixa assim de poder ser
considerada apenas como um processo diferido da produção e acumulação
capitalistas, através da formação da respectiva força de trabalho e da
posterior extracção de mais-valia do seu trabalho futuro. Com efeito, na nova
organização educativa que agora se configura tenderão a implantar-se processos
de valorização capitalista no próprio processo de "produção
educativa" e na realização mais ou menos imediata do valor dessa produção.
A investigação sobre as actuais mudanças nos sistemas educativos deve assim
privilegiar as transformações que se verificam no trabalho escolar, visando
constitui-lo em trabalho produtor de mais-valia. E aqui importa não
circunscrever essa investigação ao trabalho do professor e colocar antes o foco
principal no trabalho do aluno, já que, no contexto do actual processo de
capitalização, se pretende que o trabalho do professor seja tanto mais
produtivo quanto melhor for capaz de promover e suportar um aumento da
produtividade do trabalho do aluno 3. Na actualidade, uma reestruturação do
trabalho escolar com estas características é claramente preconizada pelos
promotores do capitalismo educacional (Subotnik e Walberg, 2006; Whittle, 2005,
pp. 95-153) e vem registando avanços importantes no âmbito de processos de
inovação que assentam no chamado e-learning ou blended learning, pretendendo-se
com os mesmos um reforço significativo do trabalho independente e cooperativo
dos alunos (cf. Christensen, Horn e Johnson, 2008; Wicks, 2010; Horn e Staker,
2011).
Na definição de um quadro analítico para investigar a presente transformação
educativa, importa igualmente considerar duas outras características da mesma.
A primeira, diz respeito à notável continuidade nas políticas educativas que se
tem verificado nas últimas décadas ao nível dos diversos países,
independentemente da cor política dos governos em funções. A segunda, refere-se
à semelhança, nos princípios e nos métodos, entre a maior parte do que é hoje
apresentado como inovações na escolarização de massas e outros movimentos de
inovação e mudança que, em épocas históricas distantes, foram já defendidos ou
promovidos. As duas questões atrás referidas colocam fortes reservas à
atribuição da presente mudança educativa a causas de natureza meramente
ideológica e cultural ou apenas relacionadas com alterações recentes nos
sistemas gerais de governação e de produção económica . Estas causas e
alterações recentes têm a sua importância própria e explicam uma parte das
características das actuais transformações nos sistemas públicos de educação.
Mas uma compreensão global destas últimas exige a nosso ver que, para além de
um ciclo "curto" de mudança educativa (que, nos termos antes
referidos, respeita aproximadamente ao último meio século), se considere
igualmente um ciclo "longo" de mudança educativa, cujas raízes e
fundamentos residem na própria natureza e lógica do capitalismo industrial
moderno e cujo horizonte histórico é mais ou menos coincidente com o deste
último. Isto significa que, no estudo das actuais transformações na educação,
se valorizem as afinidades que nelas é possível observar relativamente aos
processos gerais que conduziram à instituição do modo de produção capitalista
nos demais sectores produtivos. E significa igualmente procurar na história
secular da relação entre o capitalismo e a escolarização de massas outras
experiências que possam servir de termo de comparação com a situação presente.
Assim, é possível encontrar antecedentes importantes da presente transformação
educativa num passado muito mais longínquo do que o horizonte temporal das
últimas décadas. Não há diferenças significativas, por exemplo, entre os
princípios do capitalismo educacional actual e aqueles que presidiram à acção
das escolas monitoriais de Joseph Lancaster ou ao projecto da "escola
crestomática" emanado do círculo de Jeremy Bentham, há dois séculos atrás
nas ilhas britânicas (Mesquita, 2009, pp. 329-517). Paul Olson é um dos autores
que destaca não apenas o interesse geral da burguesia industrial e liberal na
Inglaterra do início do século XIX em se servir do método monitorial para
promover a instrução básica da população, mas também a natureza capitalista da
solução organizativa que então se procurou aplicar para realizar aquele
interesse geral (Olson, 2002, p. 158). Noutra perspectiva, Carl Kaestle
identifica igualmente uma "continuidade fundamental" entre o sistema
lancasteriano e os princípios que estão presentes nos sistemas educativos
contemporâneos (Kaestle, 1973, pp. 48-49).
Da mesma forma, o período que ficou conhecido por "social-efficiency
age", nos EUA, representa um gigantesco esforço de investigação e
experimentação tendo por objectivo a mobilização da ciência para aplicar à
educação de massas os métodos próprios da grande produção capitalista
(Callahan, 1964; Kliebard, 2004). A envergadura desta tarefa, a grande dimensão
da população escolar e a inexistência de meios tecnológicos que permitissem
aplicar à "produção de aprendizagens" o princípio da subordinação do
trabalhador à máquina existente noutros sectores produtivos, tudo isto impôs,
nessas primeiras décadas do século XX, um limite intransponível a qualquer
tentativa de capitalização da escolarização de massas. Mas a possibilidade de
uma mudança com esse conteúdo foi explicitamente colocada já nessa época
(Callahan, op. cit., p. 58), assim como foi também nesse período claramente
considerada a condição do aluno como principal produtor na indústria educativa
(Bobbitt, 1918, p. 107). Inúmeras investigações e iniciativas foram nesta
altura levadas a cabo tendo por propósito principal o incremento da
produtividade do trabalho escolar em função dos objectivos educacionais
prescritos e com uma preocupação permanente de diminuição de custos e de
rentabilidade máxima dos recursos aplicados na educação (vejam-se, por exemplo,
os trabalhos de J. F. Bobbitt, W. W. Charters, Leonard Ayres, David Snedden,
entre outros). Mas só na época actual, com os avanços entretanto registados nos
estudos do currículo, da avaliação das aprendizagens e dos processos
cognitivos; com a codificação sistemática das aprendizagens escolares em listas
de competências simples e bem especificadas; e com a utilização intensiva das
TIC nos processos de aprendizagem e de gestão escolar, só agora aquela
preocupação em aumentar a produtividade do trabalho escolar se conjuga com
investimentos em larga escala tendo em vista a exploração lucrativa da
indústria educativa.
3. Sobre o problema da valorização capitalista na indústria educativa
No actual processo de mudança educativa, a escolarização de massas já não é
considerada apenas como um processo diferido da produção e acumulação
capitalistas, através da formação da respectiva força de trabalho e da
posterior extracção de mais-valia do seu trabalho futuro. Com efeito, na nova
organização educativa que agora se configura tenderão a implantar-se processos
de valorização capitalista no próprio processo de "produção
educativa" e na realização mais ou menos imediata do valor dessa produção.
Actualmente, tais processos de valorização assentam sobretudo em contratos
celebrados entre as empresas que investem capitais na indústria educativa e as
entidades estatais responsáveis pela gestão dos sistemas educativos e das
escolas. Mediante tais contratos, as primeiras recebem uma verba estipulada e
comprometem-se em troca a prestar determinados serviços e a atingir
determinados objectivos, procurando extrair lucros dessa actividade através de
uma diminuição dos custos de exploração.
Ora, na actividade educativa a "matéria-prima" que tem de ser
trabalhada são pessoas (os alunos) e os trabalhadores dos quais se tem de
extrair mais-valia (os professores e outros profissionais do ensino) são
compelidos a aferir a sua produtividade através da produtividade do trabalho
dos alunos. Tudo na actividade educativa tem agora de ser quantificável e
mensurável. Isto implica a redução das aprendizagens a uma lista de
competências práticas, a transferência de uma parte significativa do trabalho
do professor para o aluno e a mecanização dos processos de aprendizagem e de
avaliação. A desumanização da relação educativa que daqui resulta representa
uma das principais fontes de resistência à capitalização da actividade
educativa 5.
Por outro lado, a própria realização do "produto" tem também, no caso
da educação e da formação, especificidades próprias que dificultam a
capitalização desta actividade. De facto, enquanto que em áreas de produção que
envolvem o manuseamento de matérias-primas "não-humanas" e em que o
suporte final do produto o é também, existe um "produto final"
mediante a venda do qual a empresa capitalista se separa definitivamente do
mesmo realizando o respectivo valor, no caso da "produção educativa",
sendo o consumidor simultaneamente produtor e parte do produto, aquela
separação pode não acontecer. Assim, se o dito "produto" tiver um
escasso valor reprodutivo, como acontece no caso da aquisição de conhecimentos
e competências básicas, o ciclo desse produto fica terminado no acto da sua
transacção. Mas se esse mesmo produto tiver valor reprodutivo, isto é, se
incorpora conhecimentos e competências avançadas, nesse caso o capital persegue
o produto, procurando capturar os rendimentos derivados da aplicação desses
conhecimentos e competências (Friedman, 2002, pp. 101-104; Lleras, 2004).
Apesar da complexidade e da especificidade do processo de valorização
capitalista na educação, as políticas educativas actuais procuram forçar a sua
realização prática através de uma revolução nos métodos de ensino e
aprendizagem e na organização dos sistemas educativos. O objectivo é impor na
educação de massas relações sociais de produção semelhantes às dos demais
sectores produtivos. Assim, a meu ver, é nas categorias marxistas de análise do
capitalismo industrial moderno que reside o instrumental teórico mais
importante para estudar o actual processo de mudança educativa.
Karl Marx não tratou especificamente do tema da capitalização da actividade
educativa, mas considerou implicitamente tal tema quando se referiu à
capitalização de outros sectores que têm em comum com essa actividade educativa
o facto de se integrarem no que designou por "condições gerais" da
produção capitalista. Assim, num texto de 1857/1858 e a propósito da actividade
de construção de vias de comunicação, K. Marx analisou as condições de
capitalização das actividades ligadas à realização das referidas condições
gerais da produção capitalista, afirmando o seguinte:
A assumpção pelo capital (em lugar do governo, que representa a comunidade) da
realização de todas as condições gerais de produção pressupõe o máximo
desenvolvimento da produção fundada nesse mesmo capital (Marx, 1993, pág. 530/
531, sublinhado do autor).
Deste modo, segundo K. Marx, sendo o Estado que nas primeiras fases do
desenvolvimento da produção capitalista assegura a realização das respectivas
condições gerais, numa fase mais avançada da mesma poderão as actividades
ligadas a essa realização ser executadas pelo próprio capital enquanto tal.
Reforçando esta ideia, diz Marx que "[o] máximo desenvolvimento do capital
existe quando as condições gerais do processo de produção social não são
financiadas a partir de deduções feitas ao rendimento social, os impostos
recolhidos pelo Estado ( ), mas são antes financiadas pelo capital enquanto
capital" (ibidem, pág. 532), havendo antes enunciado, em referência
concreta à construção de vias de comunicação, as condições que propiciam e
permitem o investimento capitalista nessa mesma construção, a saber:
Por um lado, a riqueza do país suficientemente concentrada e transformada sob a
forma de capital; por outro lado, um volume suficiente de tráfego e o obstáculo
representado pela falta de meios de comunicação suficientemente sentido
enquanto tal, de forma que o capitalista possa realizar o valor da estrada (em
prestações, ao longo do tempo) enquanto estrada (i. e. o seu uso) (ibidem, pág.
530).
Os pressupostos aqui enunciados por K. Marx relacionam-se com a existência de
uma concentração de capitais capaz de fazer face a investimentos muito
avultados e de retorno lento, com a constituição de uma nova necessidade social
que garanta um consumo permanente e massivo do bem respectivo, e, finalmente,
com a possibilidade, para o capitalista, de realização do valor desse bem
enquanto tal. Sobre esta última condição, acrescenta o seguinte:
Para o capital ( ) tomar em mãos a construção da estrada, deve ser pressuposto
que não apenas o trabalho necessário mas também o trabalho excedente
desenvolvido pelo trabalhador pode ser pago ' é este a fonte do seu lucro (O
capitalista impõe muitas vezes este pagamento através de tarifas
proteccionistas, de posições de monopólio ou da acção coerciva do Estado, nas
situações em que o indivíduo envolvido na respectiva compra, em condições de
livre troca, apenas estaria disposto a pagar quando muito o trabalho necessário
(ibidem, pág. 532/533, sublinhado do autor).
Ora, se se aplicarem as três condições atrás referidas ao caso da actividade
educativa nos países de capitalismo mais desenvolvido, poder-se-á dizer que as
duas primeiras (a concentração de riqueza sob a forma de capital e a
constituição da educação como necessidade social) se encontram, no fundamental,
preenchidas, enquanto que a concretização da terceira condição (a possibilidade
de realização do valor produzido) se encontra apenas parcialmente preenchida.
Com efeito, em termos gerais e sobretudo no que diz respeito aos níveis de
escolaridade não superior, está-se ainda na fase de o "consumidor"
não apenas se limitar a pagar o equivalente a "quando muito ( ) o tempo de
trabalho necessário" (isto é, o estritamente indispensável para a
reprodução das condições de produção), como ainda de o fazer por interposta
pessoa, ou seja, através de um fundo estatal proveniente dos impostos. Ora, se
neste sector se desenvolver (como já sucede e como é provável que continue a
suceder) um processo de capitalização da respectiva actividade, a tendência
será provavelmente a de o dito "consumidor" passar a pagar
directamente "pelo menos" o equivalente ao referido "tempo de
trabalho necessário" (sendo a substituição do "trabalho pago" do
professor pelo trabalho "não pago" do aluno, ou a substituição do
"trabalho vivo" de ambos pelo "trabalho morto" de máquinas,
meios indispensáveis para tornar viável, em termos gerais, um tal pagamento), e
a de que o pagamento ao capitalista que invista na indústria educativa do lucro
equivalente ao "tempo de trabalho excedente" seja feito, no todo ou
em parte, com recurso a meios equivalentes aos que Marx, referindo-se às fontes
de lucro capitalista no sector da construção de vias de comunicação, designava
(ver citação supra) por "tarifas proteccionistas, situações de monopólio e
a acção coerciva do Estado" 6.
Marx refere-se em várias passagens das suas obras ao trabalho produtor de mais-
valia desenvolvido pelos professores no que designa por "fábricas de
educação", propriedade de capitalistas individuais (Marx, 1990, p. 644;
1978, p. 411). Mas, por considerar então o valor dessa produção como
insignificante no conjunto da produção capitalista, ele nunca realizou uma
análise específica sobre os processos de trabalho e de valorização do capital
numa indústria educativa privada com fins lucrativos. Hoje a situação é no
entanto bem diferente, sendo as indústrias de alguma forma relacionadas com a
educação um dos sectores que atraem capitais em larga escala em busca de
aplicações lucrativas. Assim sendo, o desenvolvimento da actual transformação
educativa irá progressivamente permitindo e impondo uma investigação
sistemática sobre os processos de valorização do capital numa indústria
educativa capitalizada. Na análise dos processos de produção de mais-valia
pelos professores, torna-se por sua vez necessário considerar não apenas o seu
trabalho directo mas também o trabalho que é transferido destes para os alunos,
nos termos anteriormente expostos.
Seja como for, o mencionado processo de capitalização da actividade educativa
e, em particular, a possibilidade de realização integral, pelo capital, do
valor produzido na mesma, deverá envolver, em princípio, o preenchimento de
diversos pressupostos gerais, a saber: a constituição geral dos valores
produzidos na actividade educativa como valores de troca; o estabelecimento de
relações sociais de tipo capitalista no processo de "produção
educativa"; a existência de tecnologias com base nas quais seja possível
fazer aumentar continuamente a produtividade do trabalho envolvido em tal
actividade; e a existência de uma arquitectura legal e jurídica que possibilite
e legitime a transacção mercantil dos valores produzidos na actividade em
apreço, e que favoreça as possibilidades de acumulação de capital neste sector.
Parafraseando ainda K. Marx no texto em referência, pode dizer-se que o grau de
realização dos pressupostos atrás enunciados representará "a medida em que
às necessidades socialmente estabelecidas do indivíduo (i. e. aquelas que ele
sente e cujos bens consome não enquanto ser individual mas em comum com outros
' cujo modo de consumo é social pela própria natureza do bem em causa)
corresponde não apenas um consumo mas também uma produção que são realizados
através da troca mercantil, de um troca individual" (ibidem, p. 532).
4. Sobre o Estado capitalizador e as formas pró-capitalistas de mercado na
transformação educativa
No quadro do modo de produção capitalista, a questão da viabilidade de uma
capitalização global da actividade educativa não está condicionada apenas pela
possibilidade "técnica" de efectuar uma exploração lucrativa neste
sector, mas depende igualmente de outros factores de natureza económica,
política e social, que respeitam às condições de funcionamento da sociedade e
do aparelho produtivo em geral e que se podem agrupar no tema da
"qualidade educativa".
Desde a sua instituição e dando corpo quer às necessidades do capitalismo quer
a reivindicações democráticas das populações, ao "Estado educador"
cabia garantir uma formação cívica e profissional que progressivamente se foi
estendendo a todos os cidadãos e, também de uma forma progressiva,
proporcionar, pelo menos em termos formais, uma igualdade de oportunidades,
quer no acesso quer no sucesso educativos. Numa perspectiva de "custos-
benefícios", esta situação podia ser vantajosa para o capital, na medida
em que permitisse realizar em termos "industriais" e a um preço
relativamente barato a formação básica dos cidadãos, diminuindo
consequentemente o valor da reprodução da força de trabalho da sociedade e
socializando os respectivos custos, e na medida ainda em que pudesse
proporcionar meios de legitimação e controlo social ao sistema no seu conjunto.
Entretanto, o alargamento da escolaridade e a chamada massificação do ensino a
todos os níveis, juntamente com os resultados perversos decorrentes da acção
dos mecanismos de mercado na actividade educativa (designadamente no âmbito do
que é hábito designar por "desvalorização dos diplomas" e da
consequente diminuição da qualidade das aprendizagens), vieram pôr em crise a
mencionada situação vantajosa em termos de "custos/benefícios", no
que respeita à indústria educativa estatal, crise essa que se tornou ainda mais
aguda a partir da altura em que se desencadeou um processo de corte geral e
sistemático das despesas do Estado com os chamados serviços públicos (Collins,
1979). Em termos económicos clássicos, a indústria educativa estatal
"abriu falência" e isso constituiu o sinal que faltava de que tinha
"chegado a hora" de capitalizar essa mesma indústria educativa,
primeiro submetendo-a a uma disciplina empresarial e, depois, tornando-a numa
indústria geradora de lucros. Assim, do ponto de vista das classes dominantes,
o problema da "qualidade educativa" devia doravante passar a ser
dirimido no quadro de relações económicas abertamente capitalistas nos sistemas
educativos (Friedman, op. cit.; 1979).
Sucede que, no quadro estrito da lógica do capitalismo, a qualidade de algo é
inerente ao modo da sua produção e circulação até chegar ao utilizador final e
é um subproduto do mesmo, ou seja, a qualidade reside mais no processo do que
no resultado. Para os defensores do capitalismo educacional é irrelevante a
questão de saber se uma escola pública tradicional é "boa" ou
"má", constituindo-se como uma verdade axiomática a superior
qualidade do "produto" emanado de uma indústria educativa
capitalizada e, consequentemente, a inferior qualidade do "produto"
de uma indústria educativa estatal 8. Com efeito, embora o processo de
capitalização da actividade educativa comece por aparecer revestido de
consignas de "liberdade" e de "democracia" no acesso a um
"produto educativo" e a um modo de produção do mesmo que são
conhecidos, o objectivo real é a criação de um novo produto e de um novo modo
de produção educativa . Nesta perspectiva, os obstáculos hoje existentes à
capitalização da actividade educativa não se colocam tanto do lado da procura
(uma insuficiente "liberdade de escolher"), mas colocam-se antes e
sobretudo do lado da oferta (uma ainda incipiente "liberdade de
empresa"). Para quê promover a "liberdade de escolha" se não
houver depois por onde escolher? As atenções concentram-se assim, por parte dos
agentes e partidários da transformação capitalista da actividade educativa, na
chamada "investigação e desenvolvimento" (I&D), com a maior parte
das experiências a decorrerem actualmente no âmbito dos sistemas públicos de
educação e, dentro destes, nos que albergam os alunos oriundos das classes
pobres e trabalhadoras (Whittle, 2005; Hill, 2006; Hess e Finn Jr., 2007;
Sandler, 2010).
É no contexto atrás definido que a configuração e o papel do Estado na presente
mudança educativa devem ser analisados, nos termos que a seguir se propõem.
Estando em curso um processo de capitalização da actividade educativa com um
carácter global e verificando-se uma notável continuidade e coerência nas
políticas educativas que o materializam, é possível reconhecer por isso a
existência de uma forte e consistente direcção política na presente
transformação educativa. Essa direcção política assume formas organizativas
diversas e tem o seu locus em diferentes instâncias. Num plano supranacional,
este localiza-se em estruturas de governação regional, como a União Europeia,
ou em organizações de regulação global, como o Banco Mundial, a OCDE, a
Organização Mundial do Comércio e outras (Laval e Weber, 2002; Carnoy, 2000;
Robertson, 2006). Num plano nacional, esse locus situa-se nos Estados, nos
governos ou em organizações de diverso tipo identificadas com o referido
processo.
Todas as linhas de força da actual transformação educativa a que antes se fez
referência são assim sistematicamente promovidas e impulsionadas, década após
década, governo após governo, quer num plano legal e organizativo quer através
da chamada "investigação & desenvolvimento" nos processos de
ensino e aprendizagem. Essa acção sistemática gera nos seus protagonistas um
sentimento de "missão" e uma noção de "obra em curso" cada
vez melhor definida na sua fisionomia e no seu resultado final (ver, por
exemplo, Enlow e Ealy, 2006; Hess, 2008; Sandler, 2010). "Educação,
educação, educação", passou a ser um mote recorrentemente usado pelos
governos de um grande número de países, sendo que, na sua concretização
prática, a prioridade educativa vem-se traduzindo invariavelmente, nesses
países, em avanços no sentido da empresarialização dos sistemas escolares. Dir-
se-ia que passou a existir, nas diversas instâncias de governação global e
local, uma espécie de "partido capitalizador" da educação pública,
com um programa, uma ideologia, uma estratégia e uma táctica política próprias.
Deste modo, com expressão mais evidente e radical nos países anglo-saxónicos,
mas um pouco por toda a parte, foi nas últimas décadas desencadeada e promovida
uma acção sistemática de destruição das velhas estruturas do "Estado
educador" e de construção de novas estruturas político-jurídicas que dêem
suporte e garantam a continuidade da transformação educativa em curso 9. Na
verdade, o "partido capitalizador" determina já as políticas públicas
de educação em muitos países, em termos tais que se torna possível falar hoje,
nesses países, de um "Estado capitalizador" da actividade educativa.
Mediante uma intervenção activa por parte das organizações empresariais de cada
país ou região e dos interesses capitalistas de algum modo associados à
indústria educativa, é no quadro desta entidade que são mobilizados e
organizados os apoios políticos, económicos, institucionais, teóricos e
intelectuais necessários ao avanço do presente processo de mudança educativa
(ver a este propósito, e sobre a realidade dos EUA, Emery e Ohanian, 2004;
Bracey, 2003; Poynor e Wolfe, 2005; Coles, 2003).
Neste processo e a partir da acção do "Estado capitalizador", são
promovidas e instituídas formas de regulação mercantil da actividade educativa
que têm um claro sentido pró-capitalista. O que melhor define e caracteriza
estas formas pró-capitalistas de mercado no interior dos sistemas públicos de
educação, parece ser constituído actualmente pelo conjunto de dispositivos e de
medidas englobados no objectivo de "melhoria contínua" dos resultados
escolares, objectivo esse que, nos termos em que é construído e
operacionalizado no quadro do referido "Estado capitalizador",
corresponde ao conceito de "melhoria contínua do produto", próprio de
uma lógica capitalista de produção, e é, como este, destituído de uma relação
directa com a qualidade, em termos de valor de uso, daquilo que é produzido 10.
Nas relações de trabalho nas escolas, o referido objectivo de "melhoria
contínua de resultados" traduz-se na introdução de reformas que façam
depender o salário dos professores e a própria manutenção do seu posto de
trabalho, dos "bons" resultados obtidos pelos alunos (McGuinn, 2010;
Corcoran e outros, 2010; Klein, Rhee e outros, 2010). O trabalho do professor
passa, nestas condições, a ser pautado pela exigência de fazer trabalhar o
aluno até ao limite das suas capacidades (a expressão usada é normalmente a de
"desenvolver todo o potencial" do aluno), sendo que este próprio
limite está também ele sujeito à regra da "melhoria contínua", num
processo que mimetiza o processo clássico de produção capitalista. Isto
implica, por exemplo, que um objectivo como é o do "sucesso para
todos" os alunos, tenha, no contexto do "Estado capitalizador"
da actividade educativa, não mais o significado de um direito, como sucedia (e
sucede) no quadro do "Estado educador", mas sim o conteúdo de uma
obrigação que, tacitamente e até contratualmente, o aluno (e o professor, para
não falar já da família) terá de cumprir em benefício da "empresa
educativa", independentemente dos proveitos pessoais que possam advir de
tal cumprimento.
Procurando impor, nos termos atrás descritos, uma pressão permanente para a
"melhoria contínua" dos resultados escolares, o "Estado
capitalizador" promove programas e dispositivos destinados a mobilizar a
"iniciativa privada" para apoiar a escola pública na prossecução
desse objectivo 11. A própria natureza deste último opera a selecção da dita
"iniciativa privada", marginalizando e tornando crescentemente
impraticáveis os projectos com propósitos pedagógicos avançados, e dando antes
livre curso às empresas de fabricação de competências e de mecanização do
trabalho desenvolvido no meio escolar 12.
A transição para o capitalismo educacional opera-se assim no interior dos
sistemas públicos de escolarização de massas, pretendendo-se que a concessão da
gestão desses sistemas a entidades privadas com fins lucrativos mais ou menos
assumidos ocorra naturalmente e tendo já instituídas relações de trabalho de
tipo capitalista. No caso dos professores, isso vem-se traduzindo em medidas
sucessivas de eliminação de direitos adquiridos, de aumento do número de horas
de trabalho e do número de alunos a seu cargo, de diminuição dos salários e de
desqualificação do trabalho da maioria, ao mesmo tempo que uma minoria é
investida em funções de supervisão do trabalho escolar no âmbito de um chamado
"novo profissionalismo docente" (Moulthrop e outros, 2006; Stevenson,
2007). Assim e no conjunto do processo de trabalho nas escolas, está-se
presentemente numa fase que tem semelhanças com o que K. Marx, referindo-se aos
primórdios da produção capitalista, designou de "produção de mais-valia
absoluta". Esta fase antecede o que se pretende que seja uma revolução na
indústria educativa, assente na produção de "mais-valia relativa" e
da consequente procura de imposição de métodos de produção e de relações
sociais abertamente capitalistas (Marx, 1990, 643-654). Se isto vier a ocorrer
como é provável, e à medida que tal for acontecendo, será possível estudar e
compreender melhor o processo de valorização do capital numa indústria
educativa capitalizada. Da mesma forma, à medida que se desenvolvam, como vem
acontecendo, inevitáveis movimentos sociais de resistência a uma tal
transformação, será possível debater com melhor fundamento o sentido e o
significado das necessárias alternativas à mesma.