Programa de intervenção em contexto educativo: dispositivo electrónico de
avaliação da descodificação fonética de aprendentes de Português Língua Segunda
I. Introdução
O sujeito criança, no desenvolvimento da sua faculdade de linguagem, alterna
entre comportamentos com base na imitação e comportamentos com base na operação
autónoma de desvios ' desempenho emergente e generalização (Skinner, 1978).
Este processo é inconscientemente controlado pelas práticas (operantes verbais)
da comunidade linguística do sujeito, que determinam a sua aprendizagem. O ser
humano nas primeiras semanas de vida começa a ensaiar sons: os primeiros são
meramente biológicos (fase pré-fonemática), que posteriormente são substituídos
pela emissão de sons próximos da fonética do seu meio linguístico (Jusczyk,
1994). Contudo, os sons da língua não são mais difíceis do que os biológicos,
ambos os tipos exigindo esforço de apropriação da criança face ao meio em que
se insere, no qual ambas as fontes de estímulos se encontram.
O sujeito, ao desenvolver linguagem, desenvolve conhecimento que, por si só, é
social (o comportamento é sempre uma operação social); logo, o ser humano,
desde que começa a discriminar sons da fala, está a iniciar o desenvolvimento
da "linguagem socializada". A gramática que o sujeito adquire gradualmente é um
instrumento de verbalização das suas intenções de comunicação, bem como
reflecte a sua projecção, pois as categorias gramaticais não existem na
natureza (Postman & Weingartner, 1971), são convenções do Homem e que
apenas têm significado na relação que individualmente estabelecemos com os
referentes pretendidos. O significado aprendido dos conceitos varia de acordo
com o contexto em que um mesmo conceito é aplicado, daí que o condicionamento
operado pelas comunidades verbais é parcial, na medida em que os significados
da linguagem variam de acordo com a percepção do indivíduo ' o sistema de
símbolos (representado numa Língua) é, na verdade, um ponto de vista (Postman
& Weingartner, 1971).
Para os processos de codificação e descodificação linguística, os padrões de
activação neuronal no cérebro estão em constante fluxo perceptual', sendo que
a assimilação de nova informação fonética implica a acomodação e reestruturação
ao nível essencialmente neuronal, no decurso da aprendizagem. Esse fluxo pode
ser mais fortemente activado quando determinados desafios se colocam (como, por
exemplo, o efeito das palavras homófonas), sendo que a percepção se torna mais
refinada com o conhecimento da pronúncia e da sua ortografia. Assim, quanto
maior é a frequência de léxico, mais eficiente se torna a activação porque é
interiorizado o esquema de identificação pelas vias ortográfica e fonológica
(ver Gillon, 2004). Por outro lado, teremos de considerar que a percepção dos
segmentos sonoros tem uma base neurológica, isto é, são criados traços
específicos fonéticos, associados a uma determinada representação neuronal (no
córtex auditivo do hemisfério esquerdo, em princípio), desenvolvidos nos
primeiros tempos de vida, no contexto de aquisição de linguagem materna
(Lenneberg, 1967). Essa representação poderá ser acrescentada/alterada em
contexto de nova aprendizagem linguística.
A percepção do discurso, enquanto apenas conjunto de traços fonéticos que, por
sua vez, constituem o reconhecimento precoce do princípio da propriedade
definidora de código linguístico, varia ao longo do primeiro ano de vida do ser
humano (início mais evidente aos quatro meses de vida); contudo é pelos doze
meses que as crianças já discriminam os sons de dois sistemas, quando se
encontram expostas a um sistema bilingue (Bosch & Sebastián-Gallés, 2003).
Ainda que na fase de consciência em formação, percebem dois sistemas fonéticos
e fonológicos, sendo que a discriminação visual é predominante (a criança imita
predominantemente os movimentos orofaciais dos outros) e começa a ser fácil
distinguir, pelos movimentos faciais dos interlocutores, qual a língua que está
a ser emitida. Quanto à produção, esta competência vai sendo desenvolvida
sobretudo até aos quatro anos de idade ' ensaio fonético articulatório.
No caso dos monolingues, a percepção do discurso é conseguida durante a
primeira metade do primeiro ano de vida, sendo que reagem face aos sons
familiares e não familiares, captando mais eficazmente os traços fonéticos
salientes quanto à evidência das suas propriedades (Jusczyk & Bertoncini,
1988). Contudo, durante a segunda metade do primeiro ano, essa capacidade entra
em "latência", indicando um declínio natural no processo, cuja capacidade é
recuperada aos 12 meses (Floccia, Nazzi, Austin, Arreckx, & Goslin, 2010).
No caso dos sujeitos bilingues, esse processo é menos linear, na medida em que
ocorrem mais fases de declínio e recuperação na competência discriminatória,
contribuindo para o aperfeiçoamento da mesma relativamente aos dois sistemas
fonéticos.
Pelos 17 meses (fase da emergência fonemática), o ser humano possui a
informação fonética para a discriminação em contexto, mas ainda não sabe usar o
comportamento, porque ainda não se identificam suficientes detalhes fonéticos
para justificar o processo discriminatório (Bruck & Genesee, 1995). Com a
entrada na etapa fonemática, a compreensão do léxico passa a ter sentido
(descodificação e codificação) fonológico, e não apenas fonético. A atenção da
criança bilingue é maior relativamente à assimilação de novo léxico; contudo,
demora mais tempo na decisão lexical, pois envolve maior selecção e consulta'
das categorias fonéticas que conhece. A performance dos bilingues poderá estar
mais implicada neste momento do processo de descodificação, em relação aos
monolingues, mas desenvolvem mais rapidamente a consciência metafonológica.
Um importante factor na explicação do processo de descodificação de fones e
fonemas em contexto de Língua Segunda (L2) ou Estrangeira (LE) reside no tipo
de ortografia materna do indivíduo. A noção da unidade mínima (fonema) ou maior
(sílaba) varia enquanto forte ou fraco preditor nas competências de
descodificação de escrita e leitura, sendo que os sujeitos que dominam línguas
com ortografias consistentes (e transparentes) línguas que apresentam um
código ortográfico e fonológico com mais correspondência entre si do que
noutros casos de idiomas em que a correspondência entre grafema e fonema é
quase ausente (línguas opacas) beneficiam do conhecimento das unidades
mínimas, ao passo que os indivíduos com ortografias maternas mais
inconsistentes (opacas) beneficiam da consciência das unidades maiores
(Ziegler, Jacobs, & Braun, 2001). Os mesmos itens, em linguagem verbal,
podem ser, assim, processados de forma diferente para atingir o mesmo sucesso.
Este tipo de diferenças ortográficas e, portanto, alfabéticas, constitui a
contingência que determina o plano das relações entre os componentes (o
estímulo que se concretiza no enunciado verbal em L2, a acção do sujeito, a
resposta e consequência pode ser positiva ou negativa de acordo com o resultado
esperado após processamento de uma mensagem linguística) cuja acção dinâmica
define o comportamento.
O mesmo alfabeto pode ser diferente para duas línguas ou duas línguas podem
exibir diferentes alfabetos (o que determina maior incidência de erro na
transferência entre línguas). Contudo, línguas com o mesmo tipo de alfabeto
contêm na sua matriz fonológica unidades mínimas diferentes em natureza
articulatória (as características articulatórias como critério de
categorização) e em número. O aprendente de L2, ao aprender a nova matriz
fonológica, aplica sempre a sua versão idiossincrática e formula uma matriz
fonológica com variantes livres (uma variação que depende do próprio locutor e
não do contexto fonológico) que, por sua vez, caracterizam o seu sotaque
(Schütz, 2005).
Diferentes sistemas de escrita representam unidades diferentes de significação
(sílabas, fonemas ou morfemas) e exibem diferentes propriedades. A aprendizagem
de L2 implica novos conhecimentos das unidades linguísticas, novas regras,
convenções ortográficas, e mesmo novas adequações ao nível de movimentos
manuais e oculares. Assim, o sujeito aprendente de L2 encontra-se a mudar para
"biliterate and biscriptal" (Bassetti, 2005, p. 1), com aquisição de nova
consciência fonémica e grafológica.
Este tipo de diferenças enunciadas, quer internas (estruturas neurobiológicas
inatas e em maturação) ou externas (o exemplo dos alfabetos e diferentes
sistemas fonológicos), explica os processos de mudança, no seio do
desenvolvimento, e de aquisição de novos conhecimentos, essencialmente
fonológicos e ortográficos. No entanto, esses processos necessitam de uma
observação e descrição rigorosas que só é possível com uma avaliação científica
organizada. Este estudo vai ao encontro desta necessidade, centrando a sua
metodologia na análise e explicação de desempenhos e comportamentos de
aprendentes de Português (Europeu) como Língua Segunda, em níveis e contextos
particulares de língua.
Metodologia
O presente estudo insere-se no contexto de uma investigação que se organizou em
duas importantes fases de avaliação de comportamentos dos sujeitos em condição
de aprendizagem de L2: motivação (i) e desempenho (ii). No que respeita ao
segundo ponto, foi desenvolvida uma bateria de 12 testes em formato
electrónico, com o objectivo de avaliação de níveis específicos de língua:
silábico, intrassilábico e fonémico, observando o desempenho de indivíduos com
experiência migratória em diferentes tarefas. Os dados auto-reportados e o
tempo despendido em cada teste foram registados numa base de dados categorizada
de acordo com as variáveis (o perfil de cada teste da bateria) definidas para o
estudo.
Participantes
Amostra dos casos: 61 sujeitos (aprendentes de Português L2, com experiência
migratória) com uma média de idades de 16,1 e desvio-padrão de 6,3, sendo que
19 (31,1%) são crianças (idades entre 7 e 12 anos), 22 (36,1%) são adolescentes
(idades compreendidas entre os 13 e os 18 anos) e 20 (32,8%) são adultos
(idades entre 19 e 30 anos), que se encontram distribuídos pelos níveis do
Ensino Básico, Secundário e Superior. Os participantes deste estudo apresentam,
no total, cerca de 26 nacionalidades distintas (ver figura 1: 31 nacionalidades
reportadas na fase I do estudo de Doutoramento; na fase II, encontramos a
amostra reduzida e 26 nacionalidades, após selecção para a aplicação da bateria
de testes), sendo que a variedade de nacionalidades, bem como de línguas
faladas, é intencional não pretendemos especificar grupos de nacionalidades
ou de locutores, como perspectiva habitual de estudos nesta área.
Figura 1
Identificação dos países de origem e das línguas maternas da amostra portuguesa
Instrumentos
A heterogeneidade da amostra é um critério explicado pelo objectivo geral do
estudo de avaliar as efectivas diferenças dos aprendentes de acordo com os seus
perfis, essencialmente visando a observação da predisposição cognitiva ao longo
dos diferentes grupos de idades, percebendo os graus de dificuldades
hipoteticamente decorrentes da interferência de específicas línguas maternas
dos aprendentes e avaliando o impacto da experiência migratória (data de
chegada a Portugal) na performance reportada.
Ainda, a selecção de toda a amostra pautou-se por dois importantes parâmetros,
enquanto definidores específicos da experiência migratória pretendida: data de
chegada a Portugal e nível de proficiência no Português. A indicação da
proficiência de cada elemento da amostra baseou-se nas avaliações diagnósticas
específicas levadas a cabo pelos próprios estabelecimentos de ensino. Os níveis
de proficiência visados para este estudo são A2 e B1 (Comissão Europeia, 2001).
Não foi considerado o nível A1, pois o aluno não poderia compreender as
questões colocadas na bateria de testes. Destacamos o facto de serem estes os
níveis (incluindo o A1) considerados para o requisito de apoio ao Português
Língua não Materna, visados nos documentos orientadores (Leiria, 1999;
Ministério da Educação, 2005) e na legislação para a aplicação de medidas
curriculares, nas escolas respectivas. Por outro lado, foram considerados os
sujeitos que tivessem chegado a Portugal pela primeira vez, sem anteriores
conhecimentos do Português, há não mais de quatro anos, com relevância para a
data de 2006.
Constatámos que, no que respeita especificamente à amostra, existem cerca de
vinte e duas línguas, no total, em que os sujeitos são locutores activos. No
que respeita a apoio que recebem no âmbito da disciplina de Português, 42
(68,9%) encontram-se em programas de apoio ao Português enquanto disciplina
curricular, sobretudo. Este tipo de apoio encontra-se em fase de iniciação, na
medida em que os alunos não chegaram, em grande parte, há mais de um ano. Os
restantes 19 (31,1%) não recebem qualquer apoio (os que se encontram há mais
tempo em Portugal).
Bateria de testes de avaliação de comportamentos verbais em contexto de Língua
Segunda: o objectivo desta bateria de doze testes, preparada como instrumento
de investigação, consiste essencialmente na avaliação de diversos níveis da
consciência fonológica (silábico, intrassilábico e fonémico) no contexto do
idioma Português (Língua Segunda). A bateria foi desenvolvida pelos autores do
presente estudo, em forma original e reunindo características de provas
utilizadas em determinadas avaliações de comportamentos verbais. Foi decidido o
suporte electrónico com o objectivo de garantir maior efectividade, validade e
organização dos dados, bem como para apresentar estruturadamente as tarefas em
estilo dinâmico e atractivo.
O teste apresenta simultaneamente a folha de respostas, de resultados e de
cotações, com um manual em suporte papel. A sua disponibilização será feita on-
line com divulgação prévia das normas de acesso e utilização. Todos os dados
(respostas dos sujeitos e tempo despendido, contabilizado em segundos, em cada
teste) encontram-se registados seguramente na base de dados construída para o
efeito. Foi elaborada uma versão em inglês do mesmo teste. O trabalho de
programação do teste (em Active Server Pages, dependente da instalação do
servidor Internet Information Server, num único computador portátil) decorreu
entre Outubro de 2006 e Janeiro de 2007. Esta bateria, no contexto de aplicação
à amostra dos casos, revela boa consistência interna com alfa de Cronbach de
.75 (N de itens=52).
Os dados aqui reportados referem-se apenas a dois testes seleccionados para
discussão: o teste de soletração (segmentação dos fones de quatro palavras e,
em actividade invertida, o registo escrito de palavras soletradas) e o teste de
identificação de pares mínimos (dois pares mínimos com diferentes estruturas
fonémicas). Os estímulos apresentados em cada teste (as palavras testadas)
encontram-se informados nas imagens das tarefas apresentadas na secção
"resultados". A segmentação foi solicitada em registo oral, sendo que a
identificação dos pares mínimos implicou o registo escrito. Todos os dados
foram automaticamente registados na base de dados. A audição dos segmentos e o
registo oral das respostas são assegurados com base nos dispositivos básicos
que o software apresenta para exibição e gravação de informação áudio. O
registo das respostas escritas depende da submissão que cada sujeito tem de
fazer após a realização de cada tarefa (todos os testes exibiam um comando
"submeter"; deste modo, as respostas eram guardadas na base de dados inerente à
bateria).
Os testes aqui enunciados dirigem-se à avaliação do conhecimento fonológico,
mas também ortográfico, sobretudo na tarefa de identificação dos pares mínimos,
em que têm de aplicar o código escrito para indicar as palavras ouvidas
previamente.
Procedimentos
Cumprida a fase do estudo exploratório, o teste foi aplicado aos alunos nas
suas próprias escolas, num computador portátil preparado para o efeito, sendo
que o preenchimento do teste demorou cerca de 50 minutos. Este processo, que
seguiu várias etapas (pedido de autorização, levantamento de dados pelos
estabelecimentos, selecção dos sujeitos, formalização dos consentimentos,
recepção dos consentimentos e autorização por parte da entidade), foi iniciado
em Setembro de 2006, de modo que a aplicação da bateria, por sua vez, teve
início em Janeiro de 2007 (término: Dezembro de 2007).
Os sujeitos mais jovens foram mais auxiliados na compreensão dos enunciados
propostos em cada teste. A investigadora leu e explicou todas as questões aos
aprendentes com menos de 12 anos de idade. Além do suporte oral, os cenários
das questões da bateria encontram-se numa linguagem visivelmente facilitada e
preparada para não comprometer a execução das tarefas (por exemplo, não se
recorre, no enunciado da tarefa de soletração/segmentação, a "soletra", mas sim
a "diz letra e letra").
Análise dos dados
Para este estudo, determinámos a avaliação do desempenho com base nos testes de
análise de distribuição (Qui-Quadrado). Para o efeito, recorremos ao programa
SPSS 15.0.
Resultados
Antes da descrição dos resultados, pretende-se legendar as variáveis
independentes e dependentes (nomeadamente, os testes que serão reportados), de
forma a compreender a interacção de factores observados no presente estudo. É
ainda apresentado um printscreen do layout dos testes tais como se encontram na
bateria quando activada na devida plataforma, por meio dos códigos de acesso.
*Variáveis independentes
"Classe Etária" (Grupo I: 7-12 anos; Grupo II: 13-18 anos; Grupo III: 19-30
anos).
*Variáveis dependentes (testes da bateria)
(Teste 3) "Identificação de pares mínimos" (resposta correcta: identificação de
dois pares mínimos ouvidos, através do registo da letra diferenciadora em cada
par);
(Teste 4) "Soletração" (a. segmentação) e "Leitura 1" (resposta correcta:
soletração e leitura integral de quatro palavras); "Reconstrução fonémica" (b.)
(resposta correcta: síntese fonémica de três palavras ouvidas).
I.
Relativamente à distribuição dos participantes em função das variáveis "Classe
etária" e "Identificação de pares mínimos" (teste 3), verifica-se que a
distribuição não se deve ao acaso (χ2=20.728; g.l._10; p_.023; η=.470). Nas
diferenças para a variável "Identificação de Pares mínimos" entre as categorias
de "Classe etária", é o grupo V que apresenta mais acertos (27,3% - 2
registos), seguindo-se o grupo III (25,9% - 1 registo). O grupo que menos
acerta é o grupo I (38,1%). Observe-se a tabela 1.
Tabela_1
Distribuição dos grupos etários de acordo com o seu desempenho no teste de
Identificação de pares mínimos (teste 3) e grupos etários
II
Quanto à distribuição dos participantes em função das variáveis "Classe etária"
(considerando 3 grupos) e "Segmentação" (tarefa 4a), verifica-se que, para
ambas, a distribuição não se deve ao acaso (χ2= 7,039; g.2_10; p_.030; η=.263).
Nas diferenças para a variável "Segmentação" entre as categorias de "Classe
etária", é o grupo II (13-18 anos) que apresenta uma segmentação oral e leitura
mais bem-sucedidas (53,3%), sendo o grupo III o que exibe uma leitura menos
positiva (43,8%). Observe-se a tabela 2.
Tabela 2
Distribuição dos grupos etários (determinados por três classes) de acordo com o
seu desempenho no teste de segmentação (teste 4 a)
Discussão de resultados
Os resultados obtidos e sucintamente descritos na secção anterior permitem-nos
identificar algumas dificuldades de descodificação e codificação de sujeitos
que constituem, neste estudo, uma amostra representativa das populações
discentes migrantes em Portugal. Particularmente, abordamos os testes de
identificação de pares mínimos e de segmentação fonémica, ambos situados ao
nível de avaliação da consciência alfabética ou fonémica.
A identificação de pares mínimos permite ao próprio sujeito avaliar as suas
competências de descodificação fonémica, ao mais alto nível da consciência
fonológica, na medida em que identificar pares mínimos é prova de conhecimento
da matriz fonológica da língua em que opera. Um par mínimo diz respeito a duas
palavras (exemplo de [pat?] e [bat?]) que apenas diferem num determinado
fonema, o que altera não só a fonética das palavras, como também determina os
seus significados. Portanto, esse par mínimo (o exemplo) é uma prova de que os
fonemas /p/ e /b/ são realmente unidades distintivas (efectivamente fonemas),
cujo traço distintivo assenta numa propriedade articulatória: sonoridade (para
/b/ há vibração das cordas vocais, o que não ocorre na produção de /p/).
Considerando o teste apresentado, o par mínimo pinha' e pilha' foi menos
identificado em comparação com o par cão' e pão'. O desempenho mais positivo
em relação ao segundo par mínimo poderá estar relacionado mais fortemente com a
posição das consoantes no primeiro par, ou seja, sugerimos francamente que a
posição medial é mais difícil de identificar. Por outro lado, os fones a serem
distinguidos nesse par constituem, com a letra "h", os dígrafos "lh", "nh", o
que mascara a identidade dos fones. Ainda, alguns locutores dominam sistemas
fonológicos maternos que não têm experiência com as propriedades palatais de
consoantes (sobretudo no que respeita a palatais laterais), sendo que esses
traços são frequentes no português europeu e raros na maioria das línguas
naturais (Freitas, 2001). Mesmo no caso dos aprendentes nativos, durante a sua
alfabetização apresentam uma aquisição naturalmente tardia em relação a tais
consoantes. A forma como os indivíduos identificam os pares mínimos determina a
sua percepção do sistema fonético que, por sua vez, determina a própria
produção articulatória (Flege, 1993).
Por outro lado, os segmentos referidos não são muito frequentes nas línguas
(podem, muito provavelmente, não integrar o sistema fonético da língua materna
do indivíduo), não sendo a posição o único argumento a avançar na explicação do
desempenho medíocre dos sujeitos avaliados. O desempenho revelado nesta tarefa
apresenta-se, de forma geral, pouco positivo, sendo que as estratégias
utilizadas (Flege & Hillenbrand, 1984) pelos sujeitos podem não ser muito
eficazes na detecção dos contrastes fonéticos que determinam a identidade
fonémica de cada par mínimo. Os sujeitos parecem ser facilmente influenciados
pelo obstáculo da "homopheneithy" (Binnie, Montgomery, & Jackson, 1974), ou
seja, similaridade de som (homofonia), na medida em que o sujeito é desafiado,
na sua discriminação auditiva, para detectar qual a unidade distinguível no par
de palavras apresentado. O conjunto de traços distintivos que, por sua vez,
define o fonema poderá estar a sofrer interferência do sistema fonológico
materno do indivíduo. Considera-se que as crianças primam pela atenção
selectiva (Curtis & Kruidenier, 2005); contudo, é o grupo de alunos com
menos idade (menos de 9 anos) que mais erra nesta tarefa (ver tabela_1), não
detectando os detalhes de traços distintivos aquando da audição dos dois pares
mínimos dispostos no teste, o que vai ao encontro do argumento conclusivo de
Flege, Frieda, Walley, e Randazza (1998, p. 157): "Finally, children have more
difficulty than adults in discriminating minimally paired words".
O julgamento de pares mínimos é um tipo de exercício estruturalista (em termos
de análise linguística dos segmentos) e que exige maior processamento ao nível
de áreas do hemisfério direito, o que poderá contribuir para explicitar a
performance dos sujeitos mais jovens, na medida em que é com o avanço da idade
que o envolvimento do hemisfério direito na função da linguagem, sobretudo
segunda, se postula como sendo mais evidente. Especificamente, o par pinha/
pilha' ofereceu maior problema à sua identificação provavelmente porque a
informação distintiva encontra-se em posição medial e não inicial (como em
cão/pão'), logo a criança revelou menor discriminação, uma vez que, segundo
Flege et al. (1998, p. 157), "children need to hear a larger portion from the
beginning of words presented in a gating task in order to identify the words
than do adults". Além disso, essa posição medial é agravada', como já
referido, pela associação de duas letras (um grafema), compondo assim apenas um
significado fonético ([?]) que pode ocorrer com alguma frequência, sobretudo
considerando a presença da aspiração em consoantes (Repp, 1980).
As crianças (7-9 anos de idade) poderão, à semelhança do que acontece nas
primeiras semanas de vida, estar a experienciar fases de menor discriminação
que apenas são temporárias, seguidas por períodos de surto' em performance
verbal. Os bilingues são mais afectados por este tipo de fases do que os
monolingues, dada a exposição a dois sistemas linguísticos. Contudo, isto
determina vias de aquisição diferentes, assim como estratégias distintas que
diferenciam os sujeitos e evidenciam vantagem posterior para o bilingue.
No teste de segmentação fonémica (realizado via soletração), bem como no de
leitura de um grupo de vocábulos dispostos de forma aleatória (passagem',
bagagem', vaso', onda'), as crianças não se destacam também como o grupo
mais bem sucedido, sendo que o grupo de adolescentes (com idades compreendidas
entre os 13 e os 18 anos) é o que evidencia maior sucesso na soletração de
quatro palavras apresentadas. Por outro lado, são os adultos que revelam pior
performance em ambos os testes. Reportando-nos aos resultados dos restantes
testes, percebemos que este é um dos níveis em que raramente os adultos
apresentam fraca performance, posto que é este grupo etário que mais se
evidencia positivamente na resolução de todos os testes da bateria. O facto de
os adolescentes apresentarem uma competência articulatória mais evidenciada
(Andrade & Martins, 2007) favorecida pela maior velocidade no acto de
produção, associada também à "variability in the pathways of articulation"
(Andrade & Martins, 2007, p. 778), poderá justificar o seu positivo e
destacado desempenho no teste de soletração e de leitura das palavras
igualmente soletradas. A sua capacidade aperfeiçoada de percepção articulatória
influencia a sua performance na produção, bem como na avaliação da mesma.
O processo de segmentação, bem como outros já referidos, envolvem o sujeito ao
nível fonémico, logo exigindo um conhecimento mais ou menos sólido da
consciência fonológica na língua em que opera. Considerando que os adultos são
encarados como sendo os aprendentes que parecem iniciar os seus processos de
compreensão de palavra a partir do nível mais complexo como o da unidade mínima
(fonema), neste caso tal não se verifica, especificamente na tarefa de
segmentação, sendo que os adolescentes exibem mais destreza, ao passo que as
crianças se situam a meio caminho, sendo contudo mais bem-sucedidas neste teste
do que os colegas adultos. Estes revelam maior problema no que respeita à
identificação dos sons como [g], sendo que foi observado, aquando da gravação
sonora da resolução oral, que havia mais tempo despendido (provocado pelas
tentativas de aperfeiçoamento articulatório para produção correcta do som) face
a esse tipo de fones, quanto à sua produção e subsequente percepção.
É notória a interferência da Língua Materna (LM) do sujeito na produção dos
sons, em que a produção fonética por analogia (Gillon, 2004) se denota,
parecendo, assim, haver uma tendência aprendida de reconhecimento por analogia.
Há três tipos de situações que podem ocorrer na percepção do discurso em L2:
assimilação a categoria fonética nativa, assimilação do fone como não
categorizado (desconhecido) e, por fim, não assimilação como discurso (Aoyama,
2003). Acreditamos que seja mais frequente a primeira situação, sendo que é
provável a concomitância com a negligência de sons.
É frequente que os locutores produzam e percebam sons, sobretudo as vogais,
como verdadeiros alofones, em Língua Segunda, na perspectiva do fone materno.
Efectivamente, consideramos bastante mais difícil para o locutor/ouvinte
perceber, codificar e, assim, produzir um som que, a priori, apresente
similaridade com determinado fone do seu sistema fonético materno, do que
realizar um som que desconhece inteiramente, podendo iniciar o processo
completo de conhecimento fonético relativo à unidade mínima implicada. Por esta
razão se poderá explicar a dificuldade revelada por alunos que, embora
contactem frequentemente com o Português, oriundos dos Países Africanos de
Língua Oficial Portuguesa (PALOPs) ou do Brasil, manifestam dúvidas ao nível da
percepção e produção de fones que constituem para eles alofones a partir dos
sons que já conhecem (exemplo mais conhecido é o das vogais [e] e [o]). Assim,
estes fones (alofones) podem ser neutralizados de acordo com o contexto (ou
seja, deixarem de constituir oposição face aos fones, respectivamente, [e] e
[?]), o que gera condições de menor percepção fonémica, já que é mais
dificilmente captada a oposição neutralizável do que a contrastiva, ou seja,
uma oposição neutralizável não constitui uma verdadeira oposição que determine,
portanto, a unidade mínima distintiva (Boomershine, Hall, Hume, & Johnson,
2005).
A situação de oposição contrastiva subentende que um determinado fonema em
determinada posição (por exemplo o fonema /R/ será sempre /R/ quando
concretizado em início de palavra; contudo, não se verifica o mesmo em posição
medial, que passa a ser realizado como [r]) manter-se-á sempre no mesmo
segmento, sem adulterar a sua identidade. Por sua vez, o impacto da alofonia e
do contraste fonémico (de que é exemplo o par mínimo') tem efeitos não só ao
nível da percepção fonética e fonológica, mas também ao nível da semântica,
concorrendo, assim, para a compreensão da palavra.
Para efectivar a percepção do discurso e dos seus componentes não bastará
conhecer individualmente cada fone, mas também relacioná-lo no seio do sistema
fonológico, ou seja, detectar a sua identidade a partir do conjunto de
interacções que são susceptíveis de ocorrer numa determinada língua. Daqui é
possível, para o locutor, apreender as oposições neutralizáveis e as
contrastivas. Na perspectiva da compreensão por analogia, esta revela-se uma
estratégia que também, por si mesma, pode ser transferida da língua materna
para a segunda, funcionando não só no reconhecimento de vocábulos globais como
também no de unidades mínimas como o fonema. A eficácia dessa aplicação poderá,
no entanto, não ser tão evidente no contexto de novo código linguístico.
À medida que a experiência com a nova língua aumenta, é natural que a
discriminação também seja ajustada como se fosse recodificada. Os sujeitos,
sobretudo crianças e adolescentes, evidenciaram melhor performance na tarefa de
soletração (segmentação na produção) de palavras portuguesas do que no teste de
identificação de letras soletradas, sem conexão entre eles e individualmente
exibidos (/a/;/R/;/v/;/f/). O ouvinte não nativo depara-se geralmente com
problemas tais como a pseudo-homofonia e a activação de palavra espúria,
baseando-se na informação do seu sistema linguístico materno. Deste modo, tem
tendência a perceber os fones no contexto de determinado vocabulário, não
considerando fácil a descodificação de unidades de som abstractas (ao nível do
fonema) e descontextualizadas (Flege et al., 1998), como é o caso do teste de
identificação de sons anteriormente enunciado. Assim, prevalece o princípio da
familiaridade vocabular que supõe, por sua vez, "surrounding phonetic context"
(Flege et al., 1998, p. 157).
A aprendizagem do novo sistema fonético torna-se difícil porque na primeira
aprendizagem fonética o sujeito pautou-se por uma aquisição da identidade
holística (Flege et al., 1998) do fone, e não de forma particularizada, sendo
que, em situação de transferência para outro código, determinados traços terão
de ser seleccionados e devidamente recuperados no reconhecimento do fone
estrangeiro. É muito comum, portanto, a julgar pela observação dos resultados
anteriores, que os aprendentes de uma nova língua tendam a perceber os sons não
familiares de acordo com o inventário fonético da sua própria língua materna,
sendo que as vogais são os sons mais filtrados (Imsri & Idsardi, 2002;
Flege, Meador, & MacKay, 1999). Na posição dos autores que defendem os
princípios do conexionismo, aplicado à área de aquisição de L2, os padrões '
"linguistic pattern complexes" (Gasser, 1990, p. 12) ' adquiridos na LM são
transferidos para o processamento em contexto de L2:
( ) once a network has learned an association of a pattern P1 with a
pattern P2, when it is presented with a new pattern P3, this will
tend to activate a pattern that is similar to P2 just to the extent
that P3 is similar to P1 (Gasser, 1990, p. 13).
Este tipo de princípios comprova a existência e importância dos universais
linguísticos que se encontram proeminentes no desenvolvimento de linguagem e
línguas ao longo da vida do ser humano. A questão permanece na forma como são
adquiridos e reajustados os padrões de linguagem quando há transferência e
interferência de códigos.
O sistema fonológico materno funciona como próprio filtro dos sons estrangeiros
ao ouvido do locutor, sendo que este considera que no léxico estrangeiro poderá
encontrar palavras cognatas, ou seja, no sentido de partilharem radicais
similares a vocábulos da sua L1, por, aparentemente, partilharem traços
sobretudo fonéticos, o que pode não se revelar vantajoso na decisão fonética e
lexical: "Cognate status has been shown to affect performance in a wide range
of psycholinguistic tasks" (Flege et al., 1998, p. 159). É importante ter em
conta o papel da percepção de palavras cognatas por parte dos locutores, o qual
depende da organização do léxico que, de acordo com quadros teóricos
relacionados com a questão, pode estar numa "common store" (Flege et al., 1998,
p. 158), ou seja, as formas fonológicas são independentes mas estão ligadas a
um mesmo referente (semântica), ou numa "separate store" (Flege et al., 1998,
p. 158), em que as formas fonológicas estão directamente ligadas sem mediação
semântica, sendo que o significado é acedido indirectamente pela forma
fonológica do equivalente na LM.
A forma como o léxico influencia a capacidade particular de segmentação ao
nível da produção oral continua a não estar completamente esclarecida (Flege et
al., 1998). Contudo, será natural que o tipo de léxico, derivado do tipo de
língua que o locutor exibe, determinará a sua capacidade de segmentação e o
tipo de acento e entoação que concretiza aquando da produção fónica.
Considerações finais
Pretendemos, com a bateria desenvolvida e com a discussão dos resultados
obtidos, revelar que "o problema para alguém [na investigação científica da
competência do falante] preocupado com processos operacionais" afinal já não
pode consistir "em desenvolver testes que dêem resultados correctos e façam
distinções relevantes" (Chomsky, 1978, p. 101). O nosso objectivo é identificar
pistas de desempenho e intuição dos sujeitos para poder contribuir futuramente
com um teste que se apresente como oportunidade de nivelar o desempenho dos
sujeitos e informá-los sobre a situação da sua competência, sem catalogar
"resultados correctos".
Naturalmente, os aprendentes de Língua Segunda surgem como alunos de risco no
que respeita ao desenvolvimento das competências literácitas (Snow, Burns,
& Griffin 1998), determinando o desempenho académico geral. Deste modo, a
bateria de testes desenvolvida para esta investigação é um contributo para a
educação, na medida em que se assevera como um instrumento importante de
avaliação diagnóstica e, simultaneamente, enquanto programa de intervenção no
ensino e aprendizagem, dirigido especificamente a alunos que estejam a iniciar
o processo de aprendizagem/aquisição de Português Língua Segunda, podendo
fornecer indicadores que facilitam ao professor/educador o processo de
atribuição de níveis de proficiência (Comissão Europeia, 2001) de acordo com a
performance que os alunos revelem. Por outro lado, determina mais eficazmente
em que níveis da Língua o sujeito revela maior competência, deduzida pelo seu
desempenho que, de forma célere, é captado pelo teste electrónico.
A configuração do teste é pautada pelo princípio da organização de níveis de
tarefas, pela precisão e controlo na audição dos estímulos sonoros e em
situação de tarefas de escrita condicionada, como também pelo dinamismo
proporcionado na interacção do utilizador com os estímulos apresentados no
teste e pela capacidade de controlo e registo do tempo despendido pelo sujeito
em cada tarefa. A aplicação do teste permite traçar o perfil dos comportamentos
verbais, escritos ou orais dos alunos, contribuindo, assim, para a programação
de actividades de aprendizagem, fomentando um percurso escolar com sucesso, em
que o conhecimento da língua é fundamental.