Jogo e protagonismo da criança na educação infantil
Introdução
Historicamente, a escola tem lançado sobre as crianças um olhar que as concebe
como seres incompletos e incapazes, que precisam ser 'preenchidos'
pelo adulto, para que possam alcançar a sua maturidade (Dahlberg, Moss, &
Pence, 2003). Nessa perspectiva, elas são sempre um 'vir a ser',
constituindo-se como "(...) alvo do tratamento, da orientação ou da acção
pedagógica dos mais velhos" (Sarmento, 2008, p. 19). As crianças são
representadas pela sua negatividade, ou seja, por um conjunto de procedimentos
que negam as suas ações, capacidades e autoria, sob o argumento de que não têm
condições de tomar decisões e pensar por si mesmas.
Nesse sentido, as práticas pedagógicas são apropriadas pelas escolas de forma
utilitarista, para sanar as faltas e ausências que as crianças supostamente
apresentam. Orientadas por outros pressupostos, em especial pelos preconizados
pela Sociologia da Infância (Sarmento, 2008), instituições de Educação Infantil
têm buscado ressignificar essa racionalidade 'adultocêntrica',
colocando "(...) as crianças como actores sociais nos seus mundos de vida,
e a infância como categoria social do tipo geracional, socialmente
construída" (Sarmento, 2008, p. 22). Essa perspectiva atribui protagonismo
às crianças, considerando-as como coprodutoras de cultura e de conhecimento,
substituindo a visão que as concebe como seres passivos por uma representação
de praticante (Certeau, 1994), que possui interesses, expectativas e
necessidades específicas de sua geração. O desafio para a efetivação dessa
perspectiva pedagógica é de natureza didático-metodológica, ou seja, está
circunscrito nas possibilidades de materialização de uma práxis docente que dê
voz e vez às crianças nos processos de ensino-aprendizagem.
Ao considerarmos que o brincar é uma das principais linguagens que a criança
utiliza na sua relação com o meio e com os outros (Mello et al., 2012; Neira,
2008; Sayão, 2002), o jogo se constitui em uma forma privilegiada para superar
a lógica adultocêntrica que prevalece na escola, principalmente aquela
destinada a escolarização das crianças de zero a cinco anos de idade. Contudo,
para que isso ocorra, é preciso conceber o jogo não apenas como um meio para
aquisição de conteúdos, mas como um espaço-tempo que potencialize as produções
culturais das crianças nas relações sociais que estabelecem entre si e com os
adultos.
Referenciado em experiências pedagógicas concretas, vivenciadas por duas turmas
de crianças na faixa etária entre cinco e seis anos de idade (Grupo 5 e Grupo
6, respectivamente), de um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) de
Vitória/Espírito Santo/Brasil, este estudo objetiva analisar os usos e as
apropriações que as crianças fazem do jogo no cotidiano escolar. Busca, ainda,
compreender os pontos de convergência e os de divergência entre as expectativas
do professor e as das crianças na apropriação do jogo, focalizando os desafios
e as possibilidades para que o protagonismo infantil seja considerado na
intervenção pedagógica empreendida pelo professor.
Delineamento teórico-metodológico
Este estudo tem como delineamento teórico-metodológico os Estudos com o
Cotidiano (Alves, 2008; Certeau, 1994; Ferraço, 2008), em que a prática
pedagógica assume a centralidade nos processos interpretativos empreendidos na
compreensão dos saberes produzidos pelos professores e pelas crianças. Ferraço
(2008), destaca a importância da prática nesse tipo de estudo e afirma que
"(...) é na e pela prática cotidiana do homem comum que se produzem as
condições de transformação de impossível em possível" (p. 27). A prática é
o foco das pesquisas com o cotidiano. Por meio dela, é possível perceber as
relações entre o concebido, o percebido e o vivido.
Ao "mergulharmos" no cotidiano escolar, analisamos como o professor e
as crianças lidam com o jogo nos diferentes espaços e tempos escolares. Ao
considerarmos que o jogo é uma manifestação cultural polissêmica, diferentes
sentidos e significados incidem sobre a sua prática na escola. Ancorados pelo
conceito de consumo produtivo, proposto por Certeau (1994), que afirma que os
indivíduos não consomem passivamente os produtos culturais que lhe são
oferecidos, buscamos compreender os usos e as apropriações que o professor e as
crianças fazem do jogo no contexto compartilhado.
As práticas geradas pelo consumo produtivo se referem a maneiras, artes e modos
de fazer de cada pessoa, a partir de uma situação vivenciada. Com isso,
compreendemos, por meio das manifestações (usos e apropriações) observadas das
crianças nos jogos, que esses momentos se consolidam como indícios para
perceber o protagonismo infantil, já que cada criança, ao jogar, se manifesta
de uma maneira particular.
Esses usos e apropriações são geradores do consumo produtivo, que é originário
das maneiras e das artes de fazer que os praticantes fazem do lugar de poder.
Sabendo que existem relações de poder no cotidiano escolar, utilizamos os
conceitos de estratégia e tática, também propostos por Certeau (1994). A
estratégia se refere ao "lugar da autoridade", é aquilo que está
instituído nas relações assimétricas de poder. Já a tática se reporta às
maneiras de fazer, nos tempos e espaços instituídos pelo lugar de poder, pois,
nas palavras do próprio Certeau (1994):
(...) a tática depende do campo do outro. Joga lance a lance, na
busca de auferir ganho. Pode-se dizer que a tática está em movimento
permanente (capta no voo) para conferir legitimidade no campo do
outro, o que lhe garante um não-lugar estratégico (pp. 46-47).
Consideramos como táticas os usos e as apropriações que as crianças fazem do
jogo nas aulas de Educação Física e em outros espaços e tempos da Educação
Infantil, os sentidos que elas imprimem a essa manifestação cultural quando
jogam, assim como as ações criativas que produzem. Almejamos, com isso,
evidenciar as táticas utilizadas pelas crianças, para que, na perspectiva do
protagonismo infantil (Sarmento, 2008), elas possam se constituir em novas
estratégias de intervenção no contexto compartilhado.
Para alcançar os objetivos propostos, mergulhámos, durante quatro meses
(setembro a dezembro de 2011), no cotidiano de um CMEI de Vitória/Espírito
Santo/Brasil. Participámos dos planejamentos do professor dinamizador de
Educação Física e de suas aulas, destinadas aos Grupos 5 e 6, e também de
momentos caracterizados como os de não-aula, como recreio, atividades do
parquinho, dentre outros. Optamos por dar visibilidade aos Grupos 5 e 6 por
possuírem uma linguagem verbal mais articulada, facilitando, assim, a
interpretação das suas narrativas.
Focalizamos outras linguagens, especialmente a corporal, pois, por meio dela, a
criança se expressa e produz conhecimentos. De acordo com Gomes e Baumel
(2009), "O movimento expressivo marca a experiência vivida, em ação, e nos
possibilita criar sentidos e significados (...)" (p. 4). Considerando que
este estudo concebe as crianças como sujeitos de direitos e que um dos
objetivos da pesquisa é evidenciar as produções infantis materializadas no
jogo, buscando subsídios para orientar os processos de intervenção mediados por
essa manifestação cultural, faz-se necessário compreender os modos de
'dizer' da criança, para incluí-la como protagonista de suas
práticas pedagógicas.
Privilegiamos as narrativas produzidas pelas crianças e pelo professor. Em
relação às crianças, entendemos que nem todas as narrativas são textualizadas e
verbalizadas, elas também estão presentes no corpo: "(...) nuestro corpo
tambiem cuenta história y las narrativas tambiem estám corporeizadas
(...)" (Samaniego, Devis-Devis, Smith, & Sparkes, 2011, p. 24). Em
relação ao professor, a narrativa proporcionou o diálogo entre ele e nós,
pesquisadores. Buscamos compreender os sentidos que ele atribui à sua prática
pedagógica. De acordo com Silva e Maia (2010), "(...) a narração de si
revela muito mais que os acontecimentos circunscritos, informando também as
implicações da pessoa com a sua experiência, isto é, a forma como ela vê,
sente, avalia, julga, compreende e representa sua história de vida" (p.
7).
As narrativas das crianças, do professor de Educação Física e da observação
participante foram sistematizadas em diário de campo e portfólios. No processo
interpretativo, aproximamos as narrativas advindas dessas diferentes fontes,
considerando o contexto sociointeracional em que foram produzidas e as matrizes
teórico-epistemológicas que deram suporte a este estudo: Sociologia da
Infância, Psicologia Sócio-Histórica e os Estudos com o Cotidiano.
Ao articularmos o campo da Sociologia da Infância com a Psicologia Sócio-
Histórica e os Estudos com o Cotidiano, compreendemos, assim como Sarmento
(2013), que esse campo, isoladamente, não conseguirá "(...) cumprir o seu
programa se não se abrir determinantemente a um trabalho teórico
interdisciplinar, que contribua para impedir uma visão fragmentária de criança
(...)" (p. 20). Dentre as contribuições de outras disciplinas científicas
para a compreensão da infância, este autor destaca os postulados da Psicologia
Sócio-Histórica, de Lev Semyonovitch Vygotsky, especialmente no que concerne ao
processo sociocultural de desenvolvimento humano, em que o papel do
"outro", da cultura, se configura como pressuposto fundamental. Nas
análises empreendidas neste estudo, constatamos que as produções culturais
relativas ao jogo aconteceram nas interações sociais, especialmente entre a
"cultura de pares", denotando que o protagonismo infantil se
manifesta, sobretudo, na ação coletiva. O papel do "outro" também se
revela na zona de desenvolvimento proximal, em que as mediações promovidas
pelos sujeitos mais experientes, em especial pelo professor, contribuem para
que as crianças no jogo ajam de maneira mais avançada em relação ao seu nível
de desenvolvimento real.
Já os Estudos com o Cotidiano contribuíram para perceber a prática como
espaçotempo de manifestação do protagonismo infantil. Para Certau (1994), as
práticas cotidianas apresentam duas dimensões que denotam o protagonismo das
crianças: a ética e a estética. A primeira explicita a vontade histórica de
existir das crianças, a recusa à identificação com a ordem ou a lei imposta
pelos adultos. Nesse sentido, as práticas cotidianas são defesas para a vida,
em que os infantis agem astuciosamente para fazer valer os seus interesses,
necessidades e expectativas. Já a segunda revela uma estética da recepção, pois
as crianças não absorvem passivamente os bens culturais que lhes são ofertados.
Como consumidoras produtivas, elas imputam as suas marcas e criações a esses
bens.
O diálogo entre essas perspectivas teóricas, aparentemente conflitantes,
demarca o esforço em compreender a infância na sua complexidade e pluralidade.
Para Sarmento (2013), "(...) é possível realizar pesquisa
pluriparadigmática sem se cair em incongruência" (p. 27) e sinalizar para
a possibilidade de convergência de teorias de orientações críticas e
interpretativas, como as utilizadas nesta pesquisa. A confluência de diferentes
matrizes teóricas e epistemológicas potencializa a formulação de sínteses
integradoras, geradas a partir de um quadro interpretativo mais amplo,
favorecendo a construção de metateorias que buscam romper com a visão
fragmentada e reduzida da infância.
Do consumo produtivo ao protagonismo infantil: o jogo como possibilidade
Analisamos os usos e apropriações que as crianças e o professor de Educação
Física fazem do jogo no cotidiano de um CMEI. Optamos por dar visibilidade ao
CMEI Alegria, pois, nessa instituição, o jogo é um conteúdo privilegiado na
intervenção pedagógica do professor nas aulas de Educação Física. O CMEI, que
foi inaugurado no ano de 1996, conta com um amplo espaço e com uma boa
infraestrutura. O Centro Municipal recebe crianças de Santa Marta e Andorinhas,
bairros periféricos da grande Vitória/Espírito Santo/Brasil.
Os dados produzidos evidenciam que o jogo foi vivenciado em duas dimensões: em
momentos espontâneos, em que há a presença do adulto, entretanto ele não
intervém na organização das atividades realizadas pelas crianças; e em momentos
de aula de Educação Física, em que há a presença e o direcionamento do
professor.
Quando as atividades são realizadas em momentos espontâneos, como na hora do
parquinho e do recreio, é possível perceber a predominância dos jogos
simbólicos. De acordo com a classificação proposta por Caillois (1990), os
jogos caracterizados pelo predomínio da fantasia e da imaginação são
denominados de mimicry. Neles, os jogadores internalizam papéis sociais e
situações que diferem da realidade imediata em que estão inseridos.
A denominação proposta por Caillois (1990) está associada ao jogo de faz-de-
conta, discutido por Vygotsky (1994). Para esse autor, mais do que uma fonte de
prazer, o jogo de faz-de-conta contribui para o desenvolvimento da capacidade
de representar simbolicamente a realidade. Crianças que estão na Educação
Infantil se encontram em uma fase do desenvolvimento em que "(...) a
imaginação é um processo psicológico novo (...) representa uma forma
especificamente humana de atividade consciente, não estando presente na
consciência de crianças muito pequenas" (Vygotsky, 1994, p. 122).
Para Vygotsky (1994), essas brincadeiras contribuem para o desenvolvimento da
criança, pois separam objeto de significado e impulsionam o alargamento da zona
de desenvolvimento proximal. No início do processo de desenvolvimento infantil,
o comportamento da criança é determinado pelas condições do ambiente, ou seja,
por aquilo que está no seu campo perceptual. Dessa forma, os objetos ditam o
que ela tem que fazer, pois possuem uma força motivadora. Já nas crianças com
idade verbal, o pensamento está separado dos objetos e a ação é mediada por
representações e não pelas "coisas em si". Nessa fase, elas passam
por um período de transição e aprendem a agir numa esfera simbólica (Vygotsky,
1994). Esse percurso de transição ocorre por um longo período, pois é difícil
para a criança separar o significado do objeto, ou seja, operar com signos.
Durante o desenvolvimento do processo de operar com signos, é comum
observarmos, nos jogos, a utilização de objetos semelhantes ao real. Os
registros abaixo, extraídos do diário de campo, demonstram situações em que os
significados dos objetos foram substituídos por representações formuladas no
jogo:
(...) observamos algumas crianças sobre a borda do brinquedo (barco
de plástico) e perguntamos: 'De que vocês estão
brincando?'. Uma criança respondeu: 'Estamos surfando na
prancha'(...) (Diário de Campo (DC), 7-11-2011 - Grupo
5).
(...) naquele momento, estava acontecendo uma festa. Participamos da
festa, quando a pesquisadora comentou: 'Quero comer um
bolo'. Uma criança pegou umas folhas redondas e falou: 'É
de mentirinha, tia' (...) (DC, 4-11-2011 - Grupo 5).
Segundo Freire (2002), o caráter subjetivo predomina no jogo, porém essa
subjetividade estabelece relação com a realidade. Normalmente, o objeto
apresenta alguma relação com aquilo que é representado, por exemplo, as folhas
redondas com o bolo. Durante os jogos, as crianças transitam por situações
imaginárias; entretanto permanecem ligadas à realidade ao escolherem para
brincar objetos que se assemelham, seja na forma, seja na função, ao que está
sendo representado.
Além de separar objeto de significado, os jogos simbólicos também se
caracterizaram pela imitação de papéis sociais, como demonstram as seguintes
narrativas:
(...) observamos quatro crianças brincando, uma menina representava a
mãe, um menino o pai, outro menino o filho e uma menina era uma
gatinha (...) (DC, 3-10-2011 - Grupo 6).
(...) uma criança chegou próximo à pesquisadora e falou: 'Você
quer suco de quê?'. Ela respondeu: 'De manga'. Ele
saiu correndo, foi ao seu restaurante, que ficava localizando na
parte superior do escorregador, preparou o suco e o trouxe para a
pesquisadora (...) (DC, 7-11-2011 - Grupo 5).
As ações das crianças, nessas brincadeiras, geralmente se submetem às condutas/
regras típicas das situações representadas. São justamente as regras implícitas
nas brincadeiras que fazem com que elas se comportem de forma mais avançada do
que aquela habitual para sua idade. Elas internalizam papéis sociais que estão
além do seu nível de desenvolvimento real, operando em uma zona que Vygostky
(1994) denominou de "desenvolvimento proximal":
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se
costuma determinar através da solução independente de problemas, e o
nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de
problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes (p. 112).
Na incorporação de papéis sociais, mediada pelo jogo simbólico, não há apenas
uma reprodução mecânica do que acontece na vida social. Ocorre um processo de
apropriação, tornando o momento da brincadeira como um espaço em que a
realidade é pensada, transformada e reinventada, sob os seus próprios modos de
ser (Borba, 2009).
Nos tempos e espaços espontâneos, observamos que as crianças ressignificam os
jogos e também os brinquedos dispostos no pátio. De acordo com Certeau (1994),
os indivíduos não consomem passivamente os produtos culturais que lhe são
oferecidos, pois há maneiras e artes de se apropriar que produzem diversos
sentidos e significados. O fragmento a seguir, extraído dos registros da
observação participante, evidencia os diferentes usos e apropriações do jogo
"pega-pega", realizado pelas crianças:
(...) eles estavam brincando de Chapeuzinho Vermelho. No começo, a
brincadeira estava bem bagunçada, até que uma aluna pediu para todo
mundo sentar que ela iria organizar os personagens. Algumas crianças
não queriam sentar, mas ela falou: 'Quem não sentar não vai
brincar' e todas sentaram. Cada criança representou algum
personagem. O personagem que fosse o lobo seria o pegador, tendo em
vista que, na história infantil, o lobo come a vovó e depois se veste
de vovozinha. Esse lobo, então, seria a vovozinha disfarçada, que
ficaria deitada dentro de casa. O espaço onde aconteceu esse jogo
dispõe de vários brinquedos, sendo um deles uma casa. Todos os
personagens entravam na casa. A vovó (lobo) permanecia deitada no
chão; ao sinal de uma criança, neste caso da aluna que organizou os
personagens, todos saíam correndo e o lobo corria atrás. Depois que
todos fossem pegos pelo lobo, eles sentavam e organizavam novamente
os personagens (...) (DC, 7-11-2011 - Grupo 6).
Evidenciamos que as crianças relacionaram um conto infantil (Chapeuzinho
Vermelho) com o jogo tradicional "pega-pega". Elas propuseram um novo
sentido à brincadeira que, de acordo com Vygotsky (1994), converge com as
peculiaridades do desenvolvimento infantil, já que a imaginação emerge durante
o jogo. Por meio desse fragmento, também analisamos as relações de poder que
atravessam os diálogos estabelecidos pelas crianças. Institucionalmente, elas
estão em um mesmo nível, todas são iguais; entretanto, durante a brincadeira, a
criança que havia dado a ideia daquela atividade se colocou como autoridade, ao
falar: "Quem não sentar, não vai brincar".
Ancorados em Certeau (1994), percebemos que, nesse momento, ela usou da
autoridade concedida pelos pares e agiu de maneira estratégica, consolidando-se
como aquela que detinha poder para determinar como seria o jogo. Normalmente, a
invenção de novas brincadeiras parte das mesmas crianças, que possuem alguma
forma de ascensão sobre as outras. No caso do jogo relatado, observamos que a
menina que coordenava as ações possuía uma linguagem verbal articulada, que a
qualificava para organizar os colegas e estabelecer regras para que o jogo
acontecesse. A estratégia não se aprisiona a um lugar fixo, mas se configura de
acordo com o contexto de produção e a relação que mantém com o poder. Apesar de
as crianças pertencerem à mesma categoria geracional, a infância, as relações
que estabelecem se configuram em relações de poder.
Muitos brinquedos são fabricados com o intuito de serem utilizados de uma
determinada maneira. O espaço do CMEI possui uma série de brinquedos que,
intencionalmente, já ditam o modo como a criança deve se comportar, mas o
fragmento apresentado a seguir evidencia a criatividade das crianças frente aos
usos do escorregador:
(...) neste dia, por exemplo, o escorregador, na parte superior,
representou o restaurante para o Felipe. Para os meninos, que estavam
com as peças de dinheiro, a parte inferior do brinquedo serviu como
esconderijo da brincadeira de polícia e ladrão. Eles subiam e desciam
de diferentes maneiras e por diversos lugares do brinquedo (...) (DC,
7-11-2011 - Grupo 5).
Apreendemos que a criança assina/ demarca a sua existência como autora, ao
utilizar maneiras e artes de fazer, em que atribui diferentes sentidos e
significados a suas práticas lúdicas. Entretanto, essa é uma ação tática, que
não confere à criança, em relação à escola, um lugar de autoria, pois a ação de
produzir diferentes sentidos e significados nas brincadeiras não é registrada.
Não existe um local, um espaço em que se possa demarcar aquilo que ela faz/cria
nos momentos espontâneos. Como aponta Certeau (1994):
A 'fabricação' que se quer detectar é uma produção, uma
poética - mas escondida, porque ela se dissemina nas regiões
definidas e ocupadas pelos sistemas da produção (televisiva,
urbanística, comercial, etc.) e porque a extensão sempre mais
totalitária desses sistemas não deixa aos 'consumidores'
um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos. A uma
produção racionalizada, expansionista além de centralizada,
barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de
'consumo': esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo
tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois
não se faz notar com produtos impostos por uma ordem econômica
dominante (p. 39).
Observamos que a produção e criação das crianças nesses momentos espontâneos
traz uma dimensão potencializadora para a prática pedagógica. No entanto, esses
produtos criados por elas se perdem, na medida em que não há lugares onde se
possa demarcar essa produção. Com isso, destacamos a necessidade de criar um
lugar de autoria, e que essas experiências sejam registradas, para, então, dar
visibilidade ao modo como as crianças produzem diferentes formas de vivenciar o
que é ser criança, sendo colocadas como protagonistas da sua própria formação e
produtoras de cultura. Por meio do ato de registrar, apontamos uma
possibilidade para o professor de Educação Física conduzir a sua ação docente,
pois esses fazeres infantis, que geralmente passam no anonimato, podem se
constituir em subsídios para orientar as suas práticas pedagógicas.
Nas práticas experienciadas pelas crianças em momentos espontâneos, percebemos
que o jogo simbólico promove as relações sociais entre os pares, cria regras de
convivência e medeia a produção cultural.
A seguir, analisaremos os jogos no contexto das aulas, em que há presença do
professor de Educação Física. Nesse espaço, o jogo foi trabalhado, segundo
classificação proposta por Caillois (1990), em dois polos: paideia e ludus.
Caillois (1990) afirma que os jogos se situam entre dois polos de um mesmo
continuum: em uma extremidade, há a paideia, em que predomina a diversão, o
improviso, a turbulência e a fantasia; no outro extremo, o ludus, caracterizado
por ações subordinadas às regras e aos obstáculos propostos pelo jogo, bem como
pela organização, disciplina e controle.
Avaliamos, por meio das narrativas, que o professor privilegia jogos que
transitam entre esses dois polos e que a rotina escolar influencia a sua
definição. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (Brasil,
1998) evidencia a importância que se atribui à rotina no cotidiano escolar. Ela
deve ser orientadora da organização e do planejamento das práticas pedagógicas,
dos processos de ensino-aprendizagem e dos cuidados higiênicos e físicos
necessários ao atendimento das crianças. A rotina configura-se como espaço e
tempo escolar, ou seja, as ações dos praticantes escolares são reguladas por
meio da configuração da rotina, que deve ser planejada a partir das
peculiaridades da infância e ser flexível de acordo com as diferenças
individuais e com o tempo que a criança permanece na escola.
Como podemos observar, a rotina se constitui como suporte para a construção dos
planejamentos de aula e para a sua materialização. Percebemos que algumas aulas
de Educação Física foram influenciadas pela rotina das crianças, que pode ser o
horário do jantar, do pátio, da higienização e do descanso, e que o professor
construiu seus planejamentos e suas ações de acordo com o tempo que ele
dispunha.
Nos momentos em que a rotina reduz o tempo da aula, o professor planeja jogos
com regras menos complexas e diretivas, que privilegiam características da
paideia. Fragmentos extraídos do portfólio exemplificam a afirmação:
A atividade consistia em fazer bolhas de sabão. Os alunos
demonstraram muita alegria em fazer as bolhas. Eles falaram que era
legal e divertido. Naquele momento, observamos: crianças que faziam
as bolhas e as estouravam, crianças que faziam as bolhas e queriam
que elas fossem para o céu; e outras disputavam quem fazia a bolha
maior (...) (DC, 18-11-2011 - Grupo 6).
A atividade consistia em descer a rampa do pátio, sentado, de skate.
No início, todas as crianças fizeram a mesma coisa: pegaram o skate,
sentaram e desceram a rampa. Depois, observamos algumas crianças
descendo de diferentes maneiras no skate: de barriga para baixo, com
os pés no chão, parando durante a descida (...) (DC, 28-11-2011
- Grupo 5).
O professor planeja atividades em que todas as crianças têm a oportunidade de
participar simultaneamente. Por meio das análises, compreendemos que as
expectativas das crianças foram ao encontro dos objetivos do professor. Elas
compreenderam e aceitaram as regras e os sentidos dos jogos. Ao entender o que
estava acontecendo, e devido ao fato de as tarefas não serem tão diretivas, as
crianças passaram a ter oportunidades de participar com mais efetividade.
Vivenciaram as práticas com prazer e alegria e contribuíram para a organização
e direcionamento das brincadeiras, o que oportunizou ações criativas dos
participantes.
Como estratégia de pesquisa, foi comum, após as aulas, nós brincarmos de
entrevista para sabermos o que as crianças achavam das atividades. Pelas
respostas das crianças nas entrevistas e pelas ações corporais observadas
durante as aulas, percebemos que os modos de apropriação durante as atividades
variam de usuário a usuário, e que os praticantes não são consumidores
passivos, pois eles criam e recriam ao seu próprio modo o que lhes é
apresentado (Certeau, 1994).
Retomando a discussão da rotina, a pesquisa com o cotidiano nos fez repensar
acerca do sentido negativo atribuído à configuração desse espaço e tempo
escolar, que há no interior das instituições de Educação Infantil. A princípio,
existe a crença de que as aulas interrompidas pela rotina são desfavorecidas,
pois o tempo do planejamento e o das ações são reduzidos, havendo uma
diminuição de práticas sistematizadas. Mas, ao compartilhar o cotidiano,
percebemos, em meio às complexas redes das práticas educacionais, que, nos
momentos em que a rotina influenciou os planejamentos de Educação Física, as
aulas foram ao encontro das expectativas das crianças. Foi oportunizado um
tempo em que todas brincaram juntas e estabeleceram uma relação social entre
pares e com o professor. As atividades oportunizaram espaços onde a
criatividade emergisse, promovendo novas criações feitas pelas crianças,
tornando-as sujeitos de direitos, que produzem cultura, o que favoreceu o seu
protagonismo.
As apreciações realizadas com o cotidiano sobre as estruturações das aulas
evidenciou o desafio de planejar a atuação em tempo reduzido e que, ao mesmo
tempo, atendesse às expectativas dos alunos e do professor. As análises desse
desafio se configuraram como possibilidades de materialização de uma práxis
pedagógica que deu voz e vez às crianças nos processos de ensino-aprendizagem.
Contudo, quando a aula tem seu tempo integral, o professor planeja jogos mais
complexos, que vão ao encontro do ludus, em que as regras explícitas delimitam
o espaço de ações dos participantes (Piccolo, 2009), como pode ser observado
nos fragmentos abaixo:
(...) o professor desenhou em um TNT um campo de futebol. No local
dos gols, fez uma circunferência vazia. No momento em que a bola
passasse pela circunferência e caísse ao chão, o gol seria marcado.
As crianças, ao redor do TNT, foram dispostas seis para cada time,
segurando o TNT pelas mãos. Elas teriam que fazer movimentos com os
braços para a bola seguir em direção ao gol do seu time. No início do
jogo, o professor frisou: 'O time de cá faz gol lá do outro
lado; o time de lá faz gol aqui'. Iniciada a partida, as
crianças balançavam euforicamente o TNT. Saiu o primeiro e o segundo
gol e todas as crianças comemoraram (DC, 24-10-2011 - Grupo 5).
(...) explicação da atividade: o professor delimitou um espaço do
pátio e colocou duas traves. Os alunos foram divididos em times com
três pessoas cada. Cada criança do time ficou com um bastão e, com o
auxílio dele, eles teriam que fazer gol no campo do adversário. A
cada dois gols, trocavam os times. O professor iniciou relembrando as
crianças que elas já haviam jogado este jogo. Perguntou se eles
lembravam quais eram as regras. Algumas crianças falaram: 'Não
pode pegar a bola com a mão'; 'Só pode jogar com este pau
(...)'. O professor colocou três crianças para cada time. Na
hora da execução da atividade, algumas crianças lembravam para que
lado teriam que jogar a bola, já outras não, e o que importava para
essas era o fato de encostar o taco na bola e a direcionar para o
gol. Quando acontecia o gol era recorrente ver mais de três crianças
em campo comemorando (DC, 25-11-2011 - Grupo 6).
Com base nas narrativas, foi possível estabelecer três eixos de análises em
relação à organização pedagógica do professor: número de alunos por atividade,
adequação das regras aos jogos e tempo de vivência.
Na forma como a aula foi organizada, percebemos que o número de crianças por
atividade era reduzido. Com isso, algumas crianças participavam mais e outras
menos dos jogos. Apesar de o tempo da aula ser integral, os infantis eram
divididos em pequenos grupos, tendo assim um tempo de vivência de jogo menor do
que quando a aula era influenciada pela rotina.
O motivo de o professor organizar as crianças em pequenos grupos está
relacionado com a complexidade das regras, já que a maioria dos infantis não as
compreendiam. Mediante essa dificuldade as crianças adequavam as atividades às
suas necessidades. A realização da atividade não perpassava pelas regras em si,
mas priorizava sua finalidade, como fazer o gol, e o prazer e a alegria em
participar das aulas. Destaque deve ser dado à sensibilidade do professor em
não interromper o jogo pelo fato de as crianças não estarem compreendendo as
suas regras.
Mais uma vez, observamos os consumos produtivos operados pelas crianças em
relação ao que é estrategicamente proposto nas aulas. As crianças modificavam
as atividades adequando-as às suas necessidades, ou seja, elas agiam
taticamente sobre as estratégias, criando, nos espaços astuciosos, outras
possibilidades de viver o que foi orientado pelo professor. Entretanto, é
preciso não apenas ter sensibilidade para deixar as crianças agirem sobre o que
é ensinado, mas transformar as táticas produzidas pelos alunos em novas
estratégias orientadoras para a prática docente em Educação Física.
Diante desse contexto, é preciso observar que "(...) o estudo das táticas
cotidianas presentes não deve, no entanto, esquecer o horizonte de onde vem,
nem tampouco, o horizonte para onde deveriam ir" (Certeau, 1994, p. 105).
Nesse ponto, Carvalho (2009) salienta a necessidade de considerarmos a
importância das táticas para possibilidade de implementar ou implodir a
estratégia. Essa autora nos ajudou a entender que é nas operações táticas
efetuadas dentro das estratégias que os praticantes vão criando outros lugares
próprios, ou seja, transformando as táticas em novas estratégias. Assim, as
táticas devem ser vistas como:
(...) campos de possibilidade de professores e alunos transcenderem a
trajetória, transcenderem o lugar próprio de autoria individualizada
rumo a um projeto estratégico/tático de criação coletiva
contextualizada e problematizada, enfim, enraizada no princípio da
comunidade (Carvalho, 2009, p. 169).
Quando concebemos as crianças como "sujeitos de direitos" e autoras
de suas práticas sociais, o tempo do jogo é outro aspecto importante a ser
considerado, ele ganha outra conotação. Deixa de ser cronos (relógio) e passa a
ser kairos, ou seja, um tempo relacionado com o prazer, a satisfação que a
pessoa tem em se relacionar com a atividade a que está submetida (Mello &
Damasceno, 2011). Dessa forma, a permanência ou a mudança de atividade não é
mais determinada pelo tempo cronos, mas pelo envolvimento e pelo interesse que
as crianças demonstram pelo jogo. Assim, um jogo pode durar uma aula ou, em uma
aula, podem acontecer vários jogos.
Sarmento (2008) sinaliza que o protagonismo infantil deve ser fonte emergente
na relação social escolar. De acordo com o autor, as "culturas
infantis" - capacidade das crianças de construírem de forma
sistematizada modos de significação do mundo - servem de referenciais
para compreender a categoria geracional infantil, ou seja: para colocar a
criança como participante nas complexas redes do cotidiano escolar, é
necessário entender a cultura infantil, para integrá-las como protagonistas das
atividades.
A cultura infantil é criada e recriada a partir da condição social, do contexto
histórico em que a criança está inserida; entretanto, o jogo e as construções
imaginárias são elementos que marcam essa cultura. Nesse sentido, os jogos e as
brincadeiras, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º
9394, de 20 de dezembro de 1996), devem ser privilegiados nos espaços escolares
da primeira infância.
Na perspectiva do protagonismo infantil, atribui-se ao jogo a conotação de
mediar as relações sociais. Para isso, deve valorizar as formas espontâneas e
voluntárias de jogo, assim como focalizar os diferentes jogos que elas trazem
dos seus variados contextos de inserção social. Ao assumir essa postura, não se
está negando a intencionalidade pedagógica da escola e nem a função de
intervenção do professor, mas sinalizando que ambos (aluno e professor), de uma
maneira diferenciada, fazem parte do processo ensino-aprendizagem.
Com base nos dados analisados neste estudo, compreendemos que uma prática
pedagógica em educação da infância que se pretende mais respeitadora da criança
precisa converter as 'pistas', nem sempre explícitas, dadas pelos
infantis nas práticas cotidianas em procedimentos de ensino que valorizem as
suas produções culturais. Para isso, as táticas empreendidas pelas crianças,
ante as estratégias estabelecidas nas relações assimétricas de poder, precisam
vir à tona e ganhar visibilidade, rompendo com uma cultura escolar
adultocêntrica.
As 'pistas' encontradas neste estudo convergem com alguns
pressupostos identificados por Sarmento (2004) para consolidar práticas
pedagógicas que valorizam o protagonismo infantil. O primeiro deles é a
interatividade. As produções infantis, tanto nas situações espontâneas, como
nas aulas de Educação Física, aconteceram, sobretudo, na "cultura de
pares", denotando que o protagonismo infantil se manifesta com mais
intensidade na ação coletiva. Uma pedagogia centrada no protagonismo das
crianças deve compreender e valorizar o que se passa entre elas. Essas
interações são potencializadas por meio de jogos e de brincadeiras que não
sejam tão diretivos, permitindo que as crianças ajam com autonomia e
criatividade, compartilhando experiências em suas produções culturais.
Outro pressuposto é a ludicidade. O protagonismo infantil se manifestou com
maior frequência nos contextos em que as crianças transitam com mais
competência, ou seja, nos ambientes lúdicos dos jogos e das brincadeiras.
Dificilmente esse protagonismo ocorrerá em locais onde predomina a
racionalidade do adulto. Entretanto, a ludicidade não é uma característica
natural, intrínseca aos jogos e às brincadeiras, ela depende da relação
subjetiva que as crianças estabelecem com essas atividades. Daí a necessidade
de auscultar as crianças, ouvir os seus interesses, necessidades e expectativas
em relação a essas manifestações da cultura lúdica infantil. Para isso, é
preciso que os professores mobilizem diferentes linguagens, em especial a
corporal, no trato com crianças que ainda não possuem uma linguagem verbal
articulada.
A "fantasia do real" é outro pressuposto pedagógico que potencializa
o protagonismo infantil e está relacionado à forma como as crianças pequenas
representam simbolicamente o seu mundo, interagindo, simultaneamente, realidade
e fantasia. Nos jogos de faz-de-conta, percebemos que as crianças atribuem
outros significados aos objetos, não limitando a sua relação com o mundo à
literalidade dos fatos. Elas internalizam e ressignificam papéis sociais,
gerando reproduções interpretativas da cultura (Corsaro, 2011). Dentre as
diferentes possibilidades de vivência dos jogos de faz-de-conta no contexto da
Educação Infantil, destacamos as brincadeiras historiadas, em que, a partir de
um roteiro, a brincadeira se desenvolve incorporando as impressões e criações
das crianças.
Por fim, ressaltamos o tempo do jogo como pressuposto a ser observado na
proposição de práticas pedagógicas centradas no protagonismo da criança. Dessa
forma, o tempo de permanência ou de alteração em um jogo deve ser determinado
pelo prazer, envolvimento e interesse da criança, e não pelo tempo cronos,
previamente determinado para realização da atividade. Embora todos esses
pressupostos apresentados focalizem o protagonismo infantil, eles só se
materializarão a partir da mediação do professor, denotando o seu papel
decisivo na condução de processos pedagógicos centrados nas crianças.
Considerações finais
O estudo analisou os usos e apropriações que crianças (cinco a seis anos) e
professor fazem do jogo, em um CMEI de Vitória/Espírito Santo/Brasil. Para
tanto, focalizou os pontos de convergência e divergência entre as expectativas
dos praticantes, destacando o protagonismo infantil como princípio pedagógico.
A apreciação contemplou duas dimensões em que o jogo se manifesta: em situações
espontâneas e nas aulas de Educação Física.
Verificamos que as situações espontâneas se configuraram como tempos e espaços
de criação dos alunos, em que há possibilidade de dar visibilidade às práticas
desenvolvidas pelas crianças para, então, transformá-las em ações pedagógicas
desenvolvidas pelos professores. Ao observar esses momentos de não aula,
entendemos que o trato pedagógico do jogo deve acontecer pelo viés sócio-
histórico (Vygotsky, 1994), pois vê o processo de mediação como produtor de
interação social. Por meio dessa perspectiva, o professor, em sua prática, pode
promover mediações que potencializem as competências argumentativas das
crianças, possibilitando que elas se expressem sobre os jogos que preferem,
sobre as formas que julgam mais interessantes para vivenciá-los, sobre as
alterações e criações que desejam introduzir nos jogos para torná-los mais
agradáveis. O professor deve ensinar novos jogos, não com a intenção de suprir
as 'ausências' dos alunos, mas com o objetivo de ampliar as
oportunidades de novas relações sociais e culturais para que as crianças tenham
a possibilidade de materialização de uma atividade lúdica potencializada.
Ao mergulhar no cotidiano, observamos que o professor apresenta dois tipos de
estruturas de planejamentos e de intervenção, que se distinguem pela influência
que a rotina causa no tempo da aula. Quando os planejamentos e a intervenção
não sofrem redução do tempo, a perspectiva que define as práticas parece não
condizer com as necessidades da criança, fazendo com que as expectativas de
alunos e professor se tornem divergentes. Contudo, as análises realizadas sobre
as práticas vivenciadas quando o planejamento sofre redução do tempo mostraram-
nos potencialidades que até então eram obscuras. Percebemos que as expectativas
das crianças foram ao encontro da perspectiva do planejamento proposto pelo
professor. À medida que as expectativas se tornaram convergentes, as crianças
foram colocadas como protagonistas e sujeitos de direitos. A redução do tempo
das aulas, provocada pela rotina, apresentou-se como um dispositivo positivo,
caracterizando-se como possibilidade de uma práxis pedagógica que vai ao
encontro dos interesses das crianças.
As análises empreendidas neste estudo reforçam a necessidade de construir novos
instrumentos de pesquisas com as crianças, uma vez que elas podem ajudar a
projetar outras práticas pedagógicas que atendam aos interesses e necessidades
básicos da infância.