As sociedades periféricas na recontextualização da economia mundial
Da internacionalização à mundialização da vida económica e ao surgimento de
vários pólos hegemónicos
O capitalismo como sistema mundial desenvolveu-se associado à economia
industrial, e a Inglaterra assumiu-se, até à Primeira Guerra Mundial, como país
dominante ao nível da produção industrial e do volume do comércio mundial,
hegemonizando, mesmo, todo o processo (Murteira, 1979, 63). A seguir à crise da
década de 20, período em que se verificou uma diminuição do comércio
internacional, são os EUA a assumirem a posição dominante da vida económica
internacional (Murteira, 1979, 66). Esta passagem é acompanhada da
transnacionalização do capital através da exportação das filiais de grandes
empresas para países onde as condições de rendibilidade do capital fossem
superiores.1A hegemonização da economia pelos EUA teve o seu apogeu na década
de 60, fase da maturidade do capitalismo internacional, que se caracterizou
pelo domínio dos monopólios, por um certo autoritarismo e pela criação de
estados de dependência (Sunkel et al., 1970; Santos, 1970: 48), assumindo mesmo
a forma do que viria a ser designado por "imperialismo económico"
(Roxborough, 1981: 60-72).2
Esta situação ocorreu marcada pelo "uniformismo dicotómico" (Masine,
1993: 390) entre uma economia planificada a leste e uma economia de mercado a
ocidente, a que correspondeu um sistema político centralizado, no primeiro
caso, e parlamentar no segundo. A internacionalização da vida económica,
política, ideológica e social processou-se, neste período, condicionada por
estas posições diferenciadas e contraditórias, mas ambas de forma hegemónica.
O período a partir da década de 70 foi marcado, de acordo com John Naisbitt
(1988: 69-78), por um conjunto de alterações com enorme significado:
enfraquecimento da posição hegemónica dos EUA e a emergência de novas potências
económicas que configuram uma tripolarização (EUA, Japão e Europa); o surgir de
novos países industrializados (Singapura, Hong Kong, Taiwan, Formosa, Coreia do
Sul, Brasil ( );3modificações na política económica chinesa quer pela adopção
das regras da economia capitalista, quer pela sua abertura ao mercado
internacional; tendência para a diluição do sistema dicotómico entre o Leste e
o Ocidente (Bertrand, 1992: 63; Mateus et al., 1995: 29).
Na tripolarização a que nos referimos, e de acordo com análise prospectiva
feita por Gérard Lafay em Industrie mondiale: trois scènarios pour l´an
2000,tanto os EUA como a Europa irão perder peso em todos os sectores
industriais a favor da Ásia desenvolvida, liderada pelo Japão. Este, apesar de
alguns limites no campo militar e dos recursos naturais e das relações
conflituosas com os EUA (Ishara, 1991), apresenta enormes potencialidades no
campo económico e tecnológico e orientado para a globalização.
Não é apenas ao nível macroeconómico que as alterações se processaram. Ao nível
microeconómico têm ocorrido modificações de redimensionamento das empresas e da
forma como são controladas e geridas.4A economia internacional tem vindo,
assim, a assumir novas configurações no sentido da unidade/universalidade5 e da
diversidade (Masine, 1993: 390). Diversidade que resulta de factores
históricos, culturais, das aspirações dos povos ou que é a própria natureza do
capitalismo que engendra: "A flexibilidade do próprio sistema reconhece às
perspectivas mais particularizantes uma autonomia de acção ( ) cujos contornos
são de extrema importância para o entendimento da dinâmica sistémica de
transformação" (Fortuna, 1987: 165).
Não obstante estas diferenciações criadoras de heterogeneidades, o sistema
económico capitalista expande-se e intensifica-se. É o que Riccardo Petrella
(1990: 29-43) designa por "mundialização da economia": "A
mundialização da economia é um novo fenómeno nascente que representa uma nova
fase na organização do capitalismo industrial e financeiro avançado em relação
aos processos já em vias de internacionalização e de multinacionalização".
Neste sentido, a economia mundial tende cada vez mais a configurar-se como um
sistema caracterizado pela(o): expansão-universalização; aumento da integração
entre as partes; diluição de impedimentos, normativos ou geográficos; alteração
das suas estruturas e das suas regras de funcionamento. A par destas
alterações, os centros reguladores da vida económica tendem a deslocar-se para
estruturas supranacionais, com o consequente enfraquecimento do estado-nação.
Mundialização e novas formas de competição e de dependência
As alterações que estão a ocorrer na mundialização da economia não são apenas
de quantidade, ligadas à ocupação de novos espaços pelo efeito da globalização,
mas também de alterações qualitativas ao nível da estrutura, das regras de
funcionamento e dos suportes normativos. Se as relações internacionais,
características da sociedade industrial, foram relações de dependência ou de
interdependência, hoje, as tendências vão no sentido da integração da economia
mundial, facto que se apresenta como um processo "irreversível"
(Bertrand, 1992: 63). Assiste-se a um crescimento contínuo do comércio externo,
total e de todos os países, liberaliza-se a circulação de bens, mercadorias e
capitais, intra e entre blocos económicos.6Estes blocos emergentes tendem não
só para o intensificar da integração económica, mas também para a unificação:
monetária, política e social, como é o caso da União Europeia. A integração
económica caracteriza-se, pois, pelo desenvolvimento de interconexões entre
redes de produção, de informação e financiamento, e pelo aumento da velocidade
de circulação de saberes, tecnologias e capitais em redor de pólos cada vez
mais diversificados (Smouts, 1993: 517).
Estas mudanças imprimem alterações não só ao nível macroeconómico, no que
interferem na estrutura do capitalismo internacional (Smouts, 1993: 523), como
ao nível das estratégias de concorrência, da organização da produção, do
trabalho, das novas tecnologias e dos requisitos em conhecimentos detidos pela
força do trabalho.
Na mesma linha dos sectores produtivo e comercial, também o capital financeiro
está a mundializar-se, isto é, a deixar de conhecer fronteiras e de ter
"pátria"7 e de ser controlado pelos bancos centrais:"( ) o
dinheiro ( ) tornou-se transnacional e deixou de poder ser controlado pelos
estados-nação ou mesmo através das suas actuações conjuntas" (Drucker,
1993: 143).
Na senda da maximização dos lucros, o capital financeiro desloca-se intra e
entre mercados financeiros, provocando alterações nas economias e na
estabilidade das próprias moedas (Toffler, 1984: 226). Esta situação é agravada
pela passagem da moeda tradicional à moeda electrónica, possibilitando uma
enorme mobilidade e quase inexistência de tempos na sua circulação. Dá-se uma
certa emancipação do capital financeiro relativamente ao sector produtivo e
comercial, passando ele a ser a própria essência do "jogo" e a gerar,
por si só, mais lucros ou prejuízos do que o sistema produtivo (Toffler, 1984:
228; Amaro, 1990: 12).
Ao nível da informação, o processo de mundialização é ainda mais acentuado não
apenas na ainda dominante comunicação de massas, ligada ao marketing
publicitário e de propaganda, mas também pela sua diversificação, para atender
a grupos específicos, e, ainda, pela sua selectividade com base nas escolhas
dos sujeitos utilizadores: "( ) a informação, no bom e no mau sentido,
tornou-se verdadeiramente transnacional e ficou totalmente fora do controlo de
qualquer nação" (Drucker, 1993: 144).
Mundializam-se também as disfuncionalidades ligadas ao consumo de drogas, às
doenças contagiosas, à poluição do meio ambiente, ao terrorismo internacional,
condicionando a criação de estruturas supranacionais não sujeitas ao controlo
por parte de qualquer estado-nação (Bertrand, 1992: 65; Drucker, 1993: 146). A
mundialização dos diferentes aspectos referidos apresenta-se com capacidades
destrutivas de identidades nacionais e, sobretudo, culturais.
A utilização do conceito de mundialização da economia e o aparente fim dos
dualismos clássicos ao nível económico, político e ideológico não alteram as
dicotomias aos diferentes níveis que desde sempre estiveram presentes na vida
das sociedades.
Como temos vindo a referir, a economia capitalista, nas suas diferentes
componentes, está em processo de mundialização e de ocupação de todos os
espaços no seu interior. Esta dinâmica realiza-se através de elementos
dissemelhantes (quer ao nível das realidades "macro", quer
"micro"), configurando a realidade emergente novas dicotomias, de que
resulta a transfiguração das realidades existentes.
A nível macroeconómico, pode detectar-se a formação de grandes blocos
económicos que virão a aglutinar conjuntos de países limítrofes hegemonizando
um dado espaço económico e geográfico (Drucker, 1993: 149). Neste contexto, são
previsíveis duas lógicas: uma, regionalizada, onde a circulação de mercadorias
e de capitais tenderá a liberalizar-se; outra, global, na qual a circulação de
mercadorias e capitais, apesar de se intensificar, vai estar cada vez mais
dependente da reciprocidade. Isto pelo facto de não ser previsível a formação
de apenas um bloco que consiga impor as suas regras aos outros estados, como
tem sido prática na fase de maturidade do capitalismo internacional:
"Jamais um único país dominará o mundo da mesma maneira que os EUA o
fizeram após a Segunda Guerra Mundial" (Naisbitt, 1988: 71).
Resta saber em que sentido evoluirá o princípio da dependência e da existência
de países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Pela exposição que temos vindo a
fazer, pode parecer que caminhamos no sentido do esbater destas dicotomias que
têm polarizado os países sob diferentes formas. Contudo, se retomarmos os
princípios essenciais referidos, essa evidência não se verifica porque, por um
lado, não foi dito que a lógica capitalista e da sua reprodução tenha sido
substituída e, por outro, foi reafirmado que esta passagem está a ocorrer
sobretudo nos países onde o capitalismo se desenvolveu e que têm condicionado e
continuam a condicionar a economia mundial. Neste sentido, é previsível que se
processem alterações de fundo na lógica de funcionamento da economia
capitalista, sendo difícil, todavia, que elas alterem, de forma substantiva, as
relações de dependência. Neste momento, as actividades que caracterizaram a
sociedade industrial estão a desenvolver-se nos países do Sul (dependentes e
subdesenvolvidos), enquanto os do Norte desenvolvem o saber, a informação e as
tecnologias de ponta: "É demasiadamente tarde para retomar a nossa
supremacia na indústria, porque deixámos de ser uma economia industrial. ( )
Devemos abdicar das nossas antigas tarefas na indústria e empreender as tarefas
do futuro" (Naisbitt, 1988: 70, 72). A passagem da sociedade industrial
para a sociedade da informação permitiu aos EUA retomar o domínio económico nos
anos 90 que estava a perder nos anos 80 para o Japão.
O que parece estar a verificar-se é a emergência de uma nova divisão
internacional do trabalho, na qual os países, de acordo com o seu
posicionamento em blocos, irão ocupar novas posições e alterar a sua estrutura
de produção quer pela mudança de actividades, quer pela modernização
tecnológica e dos processos de trabalho e de funcionamento. Este facto pode não
implicar que a sua posição relativa, quanto a indicadores de bem-estar, se
altere substancialmente.
Na actual fase de transição da sociedade moderna, muitas das actividades
desenvolvidas pelos países centrais estão a ser substituídas por novas
actividades características da sociedade da informação e do saber, e a
deslocar-se para outros países, em especial para os que possuem melhores
condições em recursos técnicos e humanos e onde o custo da mão-de-obra é mais
atractivo. Torna-se, por conseguinte, difícil definir se uma actividade é
central ou periférica: "Uma actividade que é central num dado momento pode
tornar-se periférica no momento seguinte e vice-versa" (Fortuna, 1993:
62). A tendência é para que a criação e evolução de um produto ocorra nos
países do centro e se desloque para as periferias logo que alcance a maturidade
e a sua produção dependa de mão-de-obra intensiva. Este processo é
condicionador de dependências técnicas e de recursos humanos e implica, regra
geral, a criação de problemas, particularmente ambientais.
Tendências para a criação de órgãos supranacionais: enfraquecimento do estado-
nação
A sociedade industrial desenvolveu-se sob a égide de uma superestrutura
configurada no estado, a que correspondia, ou se fazia corresponder,8uma nação
circunscrita a um território bem delimitado (Baechler, 1995: 87-91). As
finalidades atribuídas ao estado-nação, nas sociedades modernas, são
essencialmente as de garantir a soberania, manter a ordem e promover o bem-
estar dos cidadãos. Estas atribuições, e o seu desempenho, têm dado origem a
outras designações de estado,9 com as quais não nos ocuparemos aqui.
A evolução do estado-nação que hoje conhecemos processou-se em articulação
estreita com o modo de produção capitalista, permitindo que este se
desenvolvesse de forma articulada dentro de fronteiras estáveis e em ambientes
sistémicos normalizados. Em paralelo com esta evolução e fortalecimento mútuo,
o mercado desenvolveu-se e surgiram ideologias nacionalistas, enfatizou-se a
nação e desenvolveram-se símbolos ligados à arte, à música, à literatura e à
cultura (Toffler, 1984: 7). Neste contexto, o controlo interno e das relações
internacionais passava pelas definições exclusivas dos estados-nação, sendo
diminuto o exercício do poder por outras organizações, mesmo das organizações
internacionais (Romão, 1989: 235).
Do ponto de vista histórico, o estado-nação desencadeou ou foi suporte de
acções conducentes à sua expansão quer sob a forma de megaestados, quer sob a
forma de impérios, sem que, em ambos os casos, se tenha conseguido a criação de
homogeneidades políticas, económicas e sociais coerentes, e desde logo sem
transcenderem de forma duradoura o estado-nação.
Decorrente da articulação dos elementos referidos, o estado-nação apresentou-se
como o agente aglutinador das práticas económicas, político-ideológicas e
administrativas, jurídicas, sociais e culturais que se territorializaram10num
dado espaço geográfico delimitado por fronteiras, das quais o estado era o
garante. As alterações que se têm vindo a operar, aos diferentes níveis, no
interior de um dado espaço territorial e no seu exterior apresentam-se com
força suficiente para provocar alterações no estado-nação quer através da
transferência de poderes para instituições supranacionais, quer porque as
dimensões que lhe deram consistência deixaram de se confinar a esses mesmos
espaços e tendem, como temos vindo a referir, a mundializar-se: "A
história da humanidade conhece já múltiplas formas territoriais (as cidades-
estado, ( ) os feudos, ( ) as tribos, o chão ( ), mas a mais recente, como se
sabe, é o estado-nação. Não há razão nenhuma para pensar que, ao contrário das
outras, ele tenha vida eterna"(Amaro, 1990: 11).
A lógica da globalização das economias nacionais, bem assim como das
tecnologias, do saber, da informação e da cultura, e ainda das
disfuncionalidades ligadas ao ambiente, ao terrorismo internacional, ao não
cumprimento dos direitos humanos, às doenças infecto-contagiosas, etc., são os
elementos que mais se evidenciam no desgaste e enfraquecimento do estado-nação
(Reich, 1993; Kennedy, 1993). Por conseguinte, o estado-nação deixa de ser
capaz de dar respostas às necessidades evidenciadas pelo processo descrito quer
como regulador das relações internacionais, particularmente ao nível da criação
de regras que normalizam as relações comerciais e de garantia da sua aplicação,
quer porque as disfuncionalidades, ao ultrapassarem as barreiras nacionais,
implicam políticas globais e de aplicação rápida, quer ainda como forma de
normalizar as práticas sociais e culturais no interior do seu espaço
territorial (Santos, 1994: 130): "De facto o estado-nação vai perdendo
progressivamente controlo sobre variáveis tão importantes como: a moeda, a
inflação,as taxas de câmbio, os movimentos de capitais, as taxas de juro, as
formas culturais, as identidades regionais e locais, os meios de comunicação, a
produção de informação, etc." (Amaro, 1990: 15).
A poluição, tanto como o dinheiro ou a informação, não tem fronteiras ( ), as
florestas na Escandinávia, ( ) estão a ser destruídas pela poluição produzida
na Escócia, na Bélgica e na Alemanha ( ). Assim a economia do saber exige
unidades económicas substancialmente maiores do que as de um estado-nação,
razoavelmente grande (Drucker, 1993: 146-151).
Assiste-se, assim, a uma desterritorialização da vida económica, política,
jurídica, cultural da informação e a uma consequente diluição das fronteiras
nacionais, que se tornarão cada vez mais artificiais. Ao mesmo tempo, é de
esperar que o papel das organizações internacionais (BM, FMI, ONU, GATT, OMS,
OTAN, por exemplo) aumente11e possa vir a dar origem a megaorganizações (com
poderes reforçados) ou até mesmo a estados-transnacionais (Murteira, 1989: 28).
Manutenção de lógicas económicas duais de forma articulada
O processo até aqui descrito aponta, por um lado, para uma universalização da
economia capitalista e, por outro, para a emancipação de espaços regionais, com
assinalável poder nas relações internacionais. Nestes espaços, a
homogeneização, a perda de poder pelas diferentes unidades políticas e a livre
circulação de recursos materiais e humanos tenderão a ser incrementados. A
estas duas lógicas poderemos acrescentar ainda uma terceira de carácter local
que reputamos de grande importância, especialmente nas formações sociais
periféricas e mais dependentes.
Estas lógicas locais são resultantes quer das necessidades clássicas de
reprodução das forças produtivas utilizadas pelo capitalismo a baixo custo,
quer da manifestação de formas de produção ou formas culturais localizadas,
quer ainda da manutenção de sistemas produtivos e socioculturais estáveis com
capacidade para proporcionar estabilidade política e social e interferir
positivamente nos períodos de crise da economia mundial ou regional, sempre
possíveis dada a sua natureza e a forte interdependência que se verifica entre
as partes: "O local é assim, em certo sentido, o outro lado da
mundialização das estratégias produtivas no quadro da divisão internacional do
trabalho, mas não é, atente-se, uma entidade desprovida de qualidade ( )"
(Reis, 1992: 62).
Rogério Roque Amaro (1990: 14) refere que estas lógicas locais se têm
evidenciado devido a vários factores: à crise do estado-nação e à necessidade
de dar soluções a várias disfuncionalidades; ao surgimento de pequenas
empresas; à tendência para a regionalização do poder político; ao
enfraquecimento do modo de produção fordista; ao surgir de novas estratégias
das empresas transnacionais; e, por último, o evidenciar da emancipação de
culturas localizadas: "Podemos, portanto, dizer que os últimos anos viram
emergir ou ressurgir lógicas territoriais de vários sentidos transnacionais,
supranacionais e infranacionais" ( ) (Amaro, 1990: 15).
No mesmo sentido que os autores anteriormente referidos, Peter Drucker (1993:
147-156) afirma que estamos a ser marcados por três dimensões:
transnacionalização, regionalização e diluição de homogeneidades culturais e o
evidenciar da diversidade cultural e do individualismo, ambos libertos de
comportamentos sociais normalizados e padronizados de acordo com regras
preestabelecidas e ou condicionados pelos centros de decisão.
Temos, assim, um conjunto de processos que permitem o surgir e o
desenvolvimento de lógicas locais que em muitos casos se encontravam em estado
latente.
A possibilidade do desenvolvimento das lógicas locais para lá dos aspectos já
referidos resulta, em nosso entender da mundialização da economia capitalista
sem necessidade de desenvolver lutas localizadas pela ocupação de espaços; da
transferência do poder político e de decisão aos diferentes níveis,
particularmente económico, para órgãos supranacionais; do evidenciar de novas
formas de organização política distinta daquelas que definiram o estado-nação;
da existência de culturas, modos de organização das actividades sociais e
económicas milenares anuladas pela imposição do centro nas relações
internacionais especialmente durante toda a sociedade industrial e moderna.
Em nosso entender, a existência destas duas lógicas (local com a regional-
universal) de forma articulada apresenta-se como bastante positiva para a
manutenção de equilíbrios sociais, particularmente em períodos de crise, quer
como produtor de bens primários para o mercado interno, quer, e sobretudo, como
amortecedor das disfuncionalidades geradas pelas crises que afectam a economia
capitalista. A manutenção da economia camponesa assume um enorme significado
porque permite a produção de bens em regime familiar e a baixos custos de
produção. São os próprios operários da indústria (operários camponeses ou
semiproletariado) e os funcionários dos serviços que desenvolvem a produção
desses bens em regime de acumulação de funções. O Japão apresentou-se como um
caso paradigmático ao conseguir articular com sucesso as formas mais modernas
de produzir utilizadas no mundo ocidental com os métodos de gestão típicos do
Japão tradicional. Consegue, igualmente, manter intactas as formas tradicionais
de produzir, típicas da economia camponesa, é o que Michio Morishima (1988:
520) designa de economia japonesa a duas velocidades.
O desenvolvimento social, económico e humano a partir do local seria obtido por
um conjunto de aspectos que importa referir: recuperação dos padrões culturais
tradicionais existentes que garantam o equilíbrio dos indivíduos e dos grupos
primários, mas numa perspectiva dinâmica; desenvolvimento das formas
tradicionais de produção e organização social, aceitando-se a inovação e as
tecnologias exteriores desde que se integrem nos processos existentes;
incremento das trocas com o exterior desde que inseridas num processo que
garanta o equilíbrio local e a paridade nesse sistema de trocas.
Um processo de desenvolvimento auto-sustentado, em que os elementos antes
descritos terão de estar presentes, permitirá a existência de equilíbrios
pessoais, económicos e sociais mesmo em tempo de crise da economia mundial,
regional e sobretudo nacional; a coesão social e política; e, sobretudo,
permitirá criar os alicerces para um desenvolvimento integrado do ponto de
vista económico, social e humano.
Notas
1 Referimo-nos às condições clássicas: existência de matérias-primas,
proximidade dos consumidores, existência de capital financeiro e, sobretudo, da
existência de força de trabalho dócil e barata.
2 Caracterizava-se pelo domínio de monopólios, pelo domínio do capital
financeiro, pela exportação de capital e não de mercadorias, pela formação de
monopólios internacionais e pela divisão do mundo entre várias potencias
económicas (Roxborough, 1981: 61).
3 Segundo Boaventura de Sousa Santos (1994: 250), está a assistir-se a uma
deslocação da economia mundial para a Ásia centrada no Japão e na semiperiferia
(Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura).
4 A situação de transnacionalização em que grandes empresas, sediadas num dado
país, instalam as suas filiais noutros países, controlando todo o processo, tem
vindo a dar lugar ao surgimento de novas empresas multinacionais, de capitais
mistos, e com autonomia crescente, relativamente à empresa-mãe.
5 "Universalidade", no sentido geográfico e da destruição de outras
formas económicas; "unidade", porque, não obstante terem ocorrido
profundas alterações nos vários sistemas, a economia capitalista tem-se
redimensionado e adaptado às novas condições, mantendo a sua coerência no
essencial.
6 Referimo-nos a realidades em diferentes fases de concretização: UE; Nafta,
Mercosul; Asean, "Singapura, Tailândia, Malásia, Indonésia e
Filipinas", e APEC (cooperação económica Ásia Pacífico), que compreenderá,
num futuro não distante, os "EUA, Canadá, China, Tailândia, Malásia,
Singapura, Indonésia, Austrália, Nova Zelândia, Japão, Coreia do Sul, Taiwan,
Hong Kong, Filipinas, Brunei e Nova Guiné" e que formarão uma zona de
comércio livre de grandes dimensões.
7 Não obstante existir o ditado, já antigo, de que o "dinheiro não tem
pátria", é um facto que sempre existiu um forte controlo monetário,
associando-se a moeda e o seu valor a questões de soberania nacional, sendo
mesmo vista como objecto legitimador do estado-nação.
8 Quando esta correspondência não se verificava de facto, o processo político,
económico, social e cultural era hegemonizado por um grupo, não sendo permitido
às minorias o desempenho de qualquer acção contrária ao que previamente estava
definido.
9 Referimo-nos, principalmente, ao estado-providência. Trata-se de um estado
cuja principal característica é a de intervir ou controlar os mecanismos
reguladores da vida económica e social.
10 O conceito de "territorialização" aqui referido identifica-se com
o conceito de "território", utilizado por Rogério Roque Amaro (1990:
9), e entendido como "espaço apropriado, organizado e reconhecido de um
ponto de vista político, social e ideológico, por uma população que com ele se
identifica e nele pretende exercer a sua autonomia".
11 O que não impede que as influências dos estados-nação, particularmente dos
mais fortes, não se façam sentir, de forma determinante, sobre as políticas
desenvolvidas por estas organizações.