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EuPTHUHu0873-65292001000100006

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variedadeEu
ano2001
fonteScielo

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Habermas e a esfera pública: reconstruindo a história de uma ideia

A esfera pública burguesa: realidade histórica ou ideal normativo? A obra A Mudança Estrutural da Esfera Pública(1962), que marca o início do percurso intelectual de Jürgen Habermas (1929-), partiu de duas premissas metodológicas não negligenciáveis. Habermas começa por dizer-nos que, por um lado, a categoria de esfera pública ou de espaço público (Öffentlichkeit) deve ser submetida a uma análise filosófica de forma a captar a sua evolução ao longo da história das ideias políticas e, por outro, "A outra peculiaridade do nosso método resulta da necessidade de trabalhar ao mesmo tempo sociologicamente e historicamente" (1962: xvii).1 Esta tentativa de operar, a um tempo, com uma concepção ideal normativa e com uma noção historicamente localizada e contingente de esfera pública, de proceder a uma análise simultânea à validade da ideia de espaço público e à facticidade da sua correspondente sociológica, não constitui uma fonte de ambiguidades como também concorre para comprovar a hipótese que pretendemos ver testada neste artigo: a hipótese da continuidade e da evolução do pensamento de Habermas.

Em nossa opinião, em 1962, tal como em 1992,2 Habermas pretende, a diferentes níveis de sofisticação teórica, relacionar factos e normas. A nossa interrogação prende-se justamente com a manutenção, no final deste percurso, da congruência pretendida no seu início. Será que o Habermas de hoje se preocupa tanto em conjugar as duas dimensões da natureza dialéctica da noção de esfera pública, a factual e a normativa, como o Habermas de trinta anos? Esta é uma das questões a que procuraremos dar resposta no final deste artigo.

Um dos nossos objectivos será precisamente demonstrar a evolução do pensamento habermasiano, da historicidade e contingência de 1962 ao universalismo a- histórico da teoria da acção comunicativa, da pragmática formal e da ética da discussão, a partir dos anos 70, altura em que a "viragem linguística" (ou "viragem para a linguagem") do seu próprio pensamento reflectiu a crescente importância que o estudo filosófico dos fenómenos ligados à linguagem e à comunicação humana foi assumindo no pensamento social contemporâneo. Em nosso entender, no contexto deste processo de evolução do edifício teórico de Habermas, o próprio estatuto teórico do conceito de esfera pública foi-se transformando.

Pretendemos, agora, e em consequência do que acima foi exposto, apresentar uma hipótese de leitura/interpretação dos primeiros capítulos da obra de 1962, à luz dos mais de trinta anos de produção intelectual subsequente. De acordo com Habermas, "As tendências que apontam para o colapso da esfera pública são indesmentíveis, na medida em que, se o seu âmbito está a expandir-se de forma impressionante, a sua função está a tornar-se insignificante", o que significa que, através de uma análise à noção de esfera pública, podemos esperar alcançar " não apenas a clarificação sociológica do conceito, mas uma compreensão sistemática da nossa própria sociedade do ponto de vista de uma das suas categorias centrais" (1962: 5). Esta é a intenção fundamental e declarada por detrás desta obra.

Esta "categoria central" das sociedades ocidentais é definida como se reportando a uma realidade histórica concreta e, simultaneamente, representando um ideal normativo: A esfera pública burguesa pode ser concebida, antes de mais, como a esfera em que pessoas privadas se juntam enquanto um público; bem cedo, reclamaram que essa esfera pública fosse regulada como se estivesse acima das próprias autoridades públicas; de forma a incluí-las num debate sobre as regras gerais que governam as relações da esfera da troca de bens e de trabalho social basicamente privatizada, mas publicamente relevante. [Para concluir que] O meio deste confronto político era peculiar e não tinha precedente histórico: o uso público da razão pelos intervenientes(öffentliches Råsonnement) (Habermas, 1962: 27).

Desde logo, surge a questão do carácter de classe desta esfera pública. Por que razão se fala de uma esfera pública especificamente burguesa? Para compreendermos esta questão devemos perceber as razões por detrás da exclusão de outras manifestações de natureza semelhante, mas de carácter classista e ideológico diferente. Razões, aliás, também relacionadas com uma selecção/ exclusão com base noutros critérios, nomeadamente sexuais.

Como o próprio Habermas nos diz, a principal razão por detrás desta escolha/ exclusão foi a predominância alcançada pela variante burguesa da esfera pública: uma predominância que " excluiu a esfera pública plebeia como uma variante que, em certo sentido, foi suprimida no curso do processo histórico. " Ainda mais significativo é o comentário onde se expressa a subordinação desta esfera pública plebeia relativamente à variante burguesa: " esta esfera pública plebeia, cuja existência continuada mas submergida se manifestou no movimento cartista e em especial nas tradições anarquistas do movimento operário do continente, continua orientada segundo as intenções da esfera pública burguesa. " (Habermas, 1962: xviii).

Esta é uma questão que afasta decisivamente Habermas de Marx. Este último, ao contrário daquele, elabora uma proposta para uma esfera pública pós-burguesa como resultado da crítica à esfera pública burguesa existente. A crítica marxiana à esfera pública burguesa decorre da sua crítica à economia política, em que assentava o sistema económico capitalista e o processo de valorização do capital que lhe subjaz. Desta forma, Marx identifica algumas contradições no seio da ideia de esfera pública da sociedade civil burguesa do século XIX: · não existe igualdade de oportunidades de acesso a qualquer dos critérios de admissão à esfera pública; · logo, a acessibilidade universal é uma ficção, com um propósito objectivo: a legitimação do interesse de classe burguês enquanto interesse universal, porque generalizável; · os proprietários privados não são, por si sós, seres humanos.

Ou seja, a identificação entre bourgeoise homme é uma outra ficção legitimadora: daí que o controlo sobre a propriedade privada não pudesse ser identificado com a liberdade de seres humanos autónomos; · finalmente, não se pode identificar, tal como Hegel havia assinalado, opinião pública e razão.

Em suma, tanto o estado de direito burguês como a esfera pública, enquanto seu princípio constitutivo, são meros artifícios ideológicos - aquilo que esta última promete não pode ser conseguido enquanto subsistir a separação entre a sociedade civil e o estado.

A relação entre o alargamento da base social de apoio da esfera pública a sectores não burgueses e a concepção de uma alternativa pós-burguesa era nítida em Marx. Para este, a tendência para o sufrágio universal implicaria necessariamente uma transformação funcional da esfera pública burguesa. Por outras palavras, o argumento marxiano pode ser descrito da seguinte forma.

Em primeiro lugar, no contexto da separação entre sociedade e estado, a esfera pública viu a sua função política definida: a defesa pública do carácter privado da sociedade. Em segundo lugar, Marx previa que em meados do século XIX, com a inclusão de classes não burguesas no espaço público, este deveria ser, dada a sua dialéctica interna, transformado radicalmente: as classes sociais que agora controlavam a esfera pública tinham um interesse de classe próprio e, portanto, diferente do interesse de classe burguês.

Consequentemente, e dado que estas classes não eram, por definição, proprietárias, não tinham qualquer interesse em manter uma sociedade civil enquanto esfera privada, o que culminaria necessariamente numa transformação estrutural da esfera pública burguesa. Esta passaria a tematizar a própria forma de reprodução social, e não apenas a sua forma de apropriação privada, como até acontecia. Uma esfera pública radicalmente democrática como esta, tornar-se-ia, em princípio, uma esfera de deliberação pública sobre a forma de administração de todos os aspectos da vida social necessários à sua reprodução: a condição para que tal acontecesse era a socialização dos meios de produção.

Uma vez atingido tal objectivo, a esfera pública seria, então, capaz de cumprir aquilo que sempre prometera: a racionalização da dominação política, a dissolução do poder político em poder público.

Habermas, ao decidir privilegiar a esfera pública burguesa, dado o papel predominante por ela desempenhado durante os séculos XVIII, XIX e XX,3 parece não ter em consideração o facto de esta predominância ter sido alcançada precisamente através da violação dos seus próprios princípios constitutivos e legitimadores. Ou seja, o estabelecimento de uma esfera pública burguesa nas sociedades inglesa, francesa e alemã dos séculos XVIII e XIX foi acompanhado por um duplo processo de legitimação: por um lado, perante o poder do estado, por outro, relativamente às restantes classes sociais. Ora, em nosso entender, se a inclusão universal e a igualdade de oportunidades de participação eram as bases dessa ideia definidora e legitimadora, não deixou de ser a sua não observância uma das razões por detrás da exclusão de outras formas de aparecer publicamente.

A esfera pública literária: da crítica de arte à crítica política e social Na origem da esfera pública burguesa, na sua forma política, encontra-se uma antecessora apolítica e não distintamente burguesa: a esfera pública literária (literarische Öffentlichkeit) constituía " um campo de treino para uma reflexão pública crítica ainda preocupada consigo própria ". Em termos sociológicos, observa Habermas, esta esfera pública literária " não era, de facto, especificamente burguesa, uma vez que preservava uma certa continuidade com a publicidade envolvida na representação desempenhada na corte do príncipe" (1962: 29). É na cidade, centro da actividade económica e cultural da sociedade civil, que surge esta variante literária da esfera pública burguesa, cujas principais instituições são os salões, os cafés e as sociedades culturais. A esfera pública burguesa, na sua forma política, surgiu do encontro entre os herdeiros da sociedade aristocrata e humanista, em que se baseava a esfera pública literária, e a camada intelectual da burguesia, na altura em ascensão.

A esfera pública política surgiu, pois, do confronto entre dois tipos conflituantes de publicidade. Por um lado, a publicidade própria das cortes feudais, a publicidade representativa, e, por outro, a publicidade crítica e democrática, nascida com o iluminismo setecentista. Em rigor, esta última é definida por oposição àquela: não se pode pensar em publicidade crítica sem se conceber a noção de publicidade representativa, ancorada num contexto medieval, pré-moderno e sem a distinção estruturante entre público e privado. Isto significa que Habermas, recorrendo a uma argumentação dialéctica, constrói uma concepção de publicidade cujo processo de evolução compreende três fases distintas. Uma primeira de cariz feudal ou representativo, caracterizada pela sua neutralidade em relação aos critérios de público e privado; uma segunda, nascida com a modernidade e assente na distinção entre público e privado; e uma terceira, que emerge a partir de meados do século XIX com a interpenetração entre estado e sociedade, o mesmo é dizer, entre público e privado, justamente acompanhada por um processo de "refeudalização da esfera pública". Observa Habermas (1962: 158): À medida que as pessoas privadas se tornavam públicas, a própria esfera pública assumia formas de fechamento privado ( ) O debate crítico e racional do público também se tornou uma vítima desta "refeudalização". A discussão como forma de sociabilidade deu lugar ao fetichismo do envolvimento na comunidade por si Esta tese da refeudalização da esfera pública é um dos pontos centrais da argumentação habermasiana. De facto, o declínio da esfera pública liberal é identificado com este processo de refeudalização. Uma das principais características "feudais" diz respeito à linguagem veiculada pelos meios de comunicação social. Uma linguagem destituída de carácter crítico-racional e dominada pela lógica manipulativa das relações públicas. A legitimidade do poder é garantida através desta linguagem, que evita a exposição pública da natureza daquele. Por outras palavras, e remetendo para o pressuposto teórico aqui em questão (a transparência), podemos afirmar que a opacidade do poder instituído assegura-se através da acção de uma linguagem refeudalizada.

Neste sentido, a publicidade representativa, ao contrário da sua sucessora, caracterizada pelo uso público da razão e, portanto, por princípios de crítica, de transparência e de igualdade, não se constituiu enquanto uma esfera social autónoma. Pelo contrário, "era algo como um atributo de estatuto social" (1962: 7): o senhor feudal representava-se (no sentido teatral do termo), apresentava- se enquanto a personificação de um poder transcendente. Podemos, pois, antever a diferença essencial entre este tipo de publicidade representativa e a publicidade crítica da esfera pública burguesa do século XVIII. Na medida em que os representantes da autoridade feudal ou monárquica "representavam a sua natureza nobiliárquica não para, mas ‘perante' o povo" (1962: 8), esta publicidade de representação era inseparável da existência concreta do representado, tal como uma "aura" que transmitia a sua autoridade. Foi do confronto entre este tipo de publicidade, feudalmente representativa, e a publicidade crítica da Aufklårung, que emergiu a esfera pública socialmente burguesa e tematicamente política.

Um dos traços mais originais e distintivos desta concepção de esfera pública é a sua localização no domínio privado: "Incluída no domínio privado encontrava- se a autêntica esfera pública, dado que era uma esfera pública constituída por pessoas privadas" (Habermas, 1962: 30). Esta mesma noção de esfera pública burguesa, formada por indivíduos privados que, em conjunto, debatem publicamente assuntos de interesse geral e que funciona enquanto uma instância de controlo e de legitimação do poder político exercido pelo estado administrativo, remonta a Kant, que em "O que é o iluminismo", afirmava: por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz perante o grande público do mundo letrado. Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele confiado (Kant, 1784: 13).

É justamente esta noção kantiana de uso público da razão por indivíduos privados que Habermas pensa ter encontrado na esfera pública burguesa dos séculos XVIII e XIX.

Apesar de a esfera pública burguesa (em todas as suas variantes) ser institucionalmente multiforme e internamente muito diferenciada, Habermas pensa poder distinguir um conjunto de critérios institucionais de funcionamento comuns à generalidade dos cafés, salões e sociedades culturais. Em primeiro lugar, e dada a desigualdade social dos participantes nessas tertúlias, o estatuto económico e social era "esquecido". Por outras palavras, na esfera pública burguesa apenas a força do melhor argumento poderia decidir o resultado dos debates: quaisquer outros recursos (económicos ou sociais) não deveriam, em princípio, ser tidos em consideração. Este ponto da argumentação aduzida por Habermas, em 1962, suscita-nos algumas dúvidas: será possível encetar uma discussão racional sem ter em conta o estatuto social e económico dos contendores em confronto, como se este fosse algo distinto e separável da identidade pessoal? Será possível através de um mero acto da vontade desactivar parte substancial da nossa identidade, como é o caso dos recursos simbólicos associados ao estatuto social? Note-se que este critério constitui, não por acaso, um dos pontos mais criticados pelas comentadoras feministas, para quem este "esquecimento" não nunca foi respeitado, como também, e sobretudo, serviu de justificação para a exclusão continuada de grupos sociais étnica, sexual ou economicamente diferentes do grupo social de referência - masculino, educado e europeu ocidental. Neste sentido, é interessante notar como, na interpretação de Joan Landes,4 a "esfera pública republicana" francesa e jacobina foi construída a partir de uma exclusão fundamental e de uma distinção definidora: a exclusão das mulheres e a distinção entre o salon, predominantemente feminino, e o espaço público republicano, que se distinguia do anterior precisamente por criticar naquele o seu carácter "efeminado" e "aristocrático" e promover, como salienta Nancy Fraser (1992, 1996: 114), "um estilo tido como ‘racional', ‘virtuoso' e ‘masculinista'. Desta forma, as concepções masculinistas do género foram incorporadas na própria concepção da esfera pública republicana". Aliás, e de forma bastante sugestiva, Fraser, seguindo o argumento de Landes, salienta a ligação etimológica entre público e púbico para tentar comprovar que a necessidade de se possuir um pénis para se poder falar em público5 possui raízes que se estendem à própria origem do instrumento que utilizamos para pensar e discutir estes mesmos assuntos - a língua. A linguagem utilizada assume-se, assim, enquanto um elemento essencial de exclusão. Daí a necessidade de se criarem linguagens alternativas para se poder discutir e pensar problemáticas excluídas porque diferentes.6 Em segundo lugar, as discussões que decorriam nesses palcos de discursividade dialógica problematizavam tópicos até então inquestionados. Desta forma, a esfera pública burguesa, através das várias instituições que a compõem, constitui uma instância de crítica a temas considerados de interesse geral, até então monopolizados pela igreja e pelo estado. Em suma, através desta função de problematização, a publicidade crítica da esfera pública burguesa como que seculariza a publicidade de representação da corte e do púlpito: o interesse geral passa a ser acessível e passível de discussão, pelo menos em princípio, por parte de todos quantos sejam por ele afectados.

Em terceiro lugar, e resultante do processo que transforma a cultura numa forma de mercadoria, a possibilidade de participação e acesso universal constitui um outro critério institucional da esfera pública burguesa. Ou seja, o público assume-se como, em princípio, inclusivo, aberto a todos quantos pretendam nele participar. Neste sentido, os assuntos discutidos nos cafés, salões e sociedades culturais assumiam um carácter geral ou universal, não particular, em dois sentidos: não no seu significado e validade, mas também na sua acessibilidade.7

A crítica enquanto instrumento da modernidade: o caso da imprensa de opinião A relação entre a variante literária e artística da esfera pública e a sua variante política constitui um bom exemplo de como a crítica ao poder político teve a sua origem na crítica de arte.8 De acordo com Habermas, o princípio de que qualquer leigo tem o direito de julgar uma pintura numa exposição, um livro publicado ou uma representação de uma peça num teatro, resultou numa concepção de crítica de arte enquanto uma troca racional de argumentos. Noutros termos, o princípio de discussão racional enquanto forma de apropriação de manifestações culturais e artísticas teve como consequência a democratização da cultura - no sentido de universalidade de acesso e igualdade de participação - e a auto- ilustração.9 A crítica assume-se, kantianamente, como o princípio do iluminismo: uma crítica sustentada pela razão, uma crítica da própria razão.

Habermas sublinha a importância crucial desta crítica para as artes e cultura do século XVIII europeu ocidental. No contexto do iluminismo, por um lado, não a filosofia se institui enquanto uma filosofia crítica, como a literatura e a arte necessitam de uma legitimação através da crítica literária ou artística; por outro lado, é através desta apropriação crítica que se processa a auto- ilustração de cada um. Por detrás da relação entre esta apropriação crítica e democrática da produção cultural e o processo societal da Aufklårung encontra- se uma criação do século XVIII: a imprensa de opinião, o "jornalismo de convicção",10 instrumento da crítica de arte institucionalizada. Portanto, a imprensa literária relaciona-se com o iluminismo na medida em que é precisamente com o assumir de funções críticas que aquela passa de uma mera publicação de notícias, para um jornalismo literário. É desta forma que, argumenta Habermas, a imprensa de opinião emerge a partir de uma "discussão crítica convivial" (1962: 259). Devemos, no entanto, salientar que a identificação de um "jornalismo de convicção" como a forma original da imprensa (ainda que não a sua primeira manifestação) constitui uma decisão estratégica e selectiva por parte de Habermas: estratégica, porque é um tipo de prática jornalística que se coaduna com o ideal de racionalidade e de diálogo crítico habermasiano; selectiva, porque exclui todas as formas prévias de jornalismo (séculos XVI e XVII), caracterizadas sobretudo pelo sensacionalismo, frivolidades e objectivos primordialmente comerciais, e da existência das quais Habermas, ao contrário do que alguns críticos afirmam, está consciente.

Desta forma, parece-nos razoável concluir que o assumir de funções críticas por parte do "jornalismo de convicção" implica e pressupõe um ideal de comunicação dialógica, racional e face-a-face. De facto, e segundo Habermas, os artigos de jornal eram objecto de discussão nas várias instituições da esfera pública burguesa, nomeadamente nos cafés. Aliás, os artigos publicados nos jornais constituíam uma parte integrante destes espaços de sociabilidade na medida em que, dado o elevado número de cartas de leitores publicadas, o público não e discute aquilo que é escrito pelos jornalistas, como se e discute-se a si próprio. Esta circularidade - própria da lógica comunicacional dialógica - é enfatizada por Habermas (1962: 42) quando afirma: também a forma de diálogo, usada em muitos dos artigos, comprova a sua proximidade à palavra dita. Uma e a mesma discussão, transposta para um meio diferente, era retomada de modo a reentrar, através da leitura, no meio original do diálogo Ou seja, um processo de esclarecimento recíproco através de um meio que exclui a necessidade de partilha de um tempo e de um espaço, mas que mantém intactas as características próprias da discursividade dialógica face-a-face.

Habermas considera que esta experiência, em que um público se tematiza a si próprio e procura alcançar entendimento (Verstand) e esclarecimento através de discussões públicas, críticas e racionais, teve origem na emergência de um tipo específico de subjectividade. Em seu entender, esta teve origem na esfera da família conjugal patriarcal, cujo carácter é distintamente burguês. Tanto a nobreza (cuja genealogia familiar era garantida apenas pelo nome, não exigindo sequer a coabitação), como as classes populares (para as quais não existia a distinção entre público e privado, em termos da sua organização familiar e habitacional), não partilham aquele tipo familiar.

Esta subjectividade própria da família patriarcal burguesa implica uma consciência de independência perante o social que se processa em três momentos distintos (o livre-arbítrio, a comunhão de afecto e a formação - para Habermas, todos eles aparentes e ilusórios), e que se conjugam na noção de humanidade.

Estas ideias que sustentam e caracterizam a família patriarcal burguesa - liberdade, amor e formação -, são, simultaneamente, ideológicas e reais, com um sentido objectivo. É a partir desta noção de humanidade que a ideologia burguesa concebe e promete a superação da coacção da ordem vigente, sem cair no transcendental. Desta forma, a burguesia, que constituía o público que se havia formado nos salões, cafés e sociedades culturais da esfera pública, e que agora, em meados do século XVIII, era mantida unida através da acção do "jornalismo de convicção" e da crítica profissional, assume-se gradualmente como a principal categoria social que mantém uma esfera pública de debate crítico e racional no mundo das letras, no seio do qual a subjectividade oriunda da família conjugal, ao encetar processos de comunicação no seu interior, alcançava um nível superior de autoconhecimento. O passo teórico seguinte do nosso autor é a demonstração de como desta esfera pública literária emergiu uma esfera pública política (politische Öffentlichkeit).

Esfera pública política: o princípio de publicidade crítica e a lei fundamental A esfera pública burguesa, na sua variante política, resultou de um processo de conversão funcional da esfera pública literária, que compreendia fóruns de discussão institucionalizados, no sentido de se apropriar da esfera pública controlada pelo poder do estado e de a transformar numa esfera de crítica à própria autoridade pública (leia-se estatal) (Habermas, 1962). Isto significa que a experiência de uma privacidade orientada para um público, nascida no seio da família burguesa patriarcal, foi essencial para a constituição de uma esfera pública política. No entanto, foi a controvérsia, em termos de direito constitucional, sobre o princípio da soberania absoluta, durante o século XVIII, que esteve na origem da tematização, pela primeira vez, por parte da esfera pública, de assuntos de carácter estritamente político. Portanto, e atente-se neste pormenor não de somenos importância, a esfera pública política emergiu, historicamente, a partir de um debate ao nível mais abstracto, inclusivo e universal da comunidade política, a lei fundamental.

Assim, e apesar de tanto as tradições aristotélica-escolástica, como a cartesiana conceberem a categoria de leis universais, foi apenas com Hobbes que estas foram introduzidas no domínio da filosofia política, e explicitamente definidas por Montesquieu. Aliás, este último foi um dos principais responsáveis pela inversão do princípio hobbesiano da soberania absoluta - veritas non auctoritas facit legem (a verdade, não a autoridade, faz a lei) (Habermas, 1962). Distinguindo, agora, entre os aspectos normativos e sociológicos desta controvérsia, podemos verificar que, em relação a estes últimos, se a "política do segredo de estado" sustentava a soberania baseada na vontade(acto volitivo), o princípio de publicidade crítica, característico da esfera pública burguesa, promovia uma legislação baseada na razão(acto cognitivo). em relação à dimensão normativa desta questão, e remetendo para a dicotomia entre justo (universal) e bom (particular), Habermas (antecipando um dos principais temas/objectivos da sua actual proposta em termos de filosofia moral, a ética da discussão) afirmava: intrínseca à ideia de uma opinião pública nascida do melhor argumento encontrava-se a pretensão a uma racionalidade moralmente ambiciosa que procurava descobrir o que era simultaneamente justo e bom (Habermas, 1962: 54).

O papel da esfera pública burguesa em todo este processo é, pois, fundamental.

É nela que se desenvolve uma consciência política que, contra o absolutismo monárquico, pretende não conceber e exigir leis de carácter genérico e abstracto, como também ambiciona afirmar-se enquanto a única fonte de legitimação das leis. Podemos, assim, constatar que esta generalização e abstracção das normas legais se encontra em perfeita conjugação com a experiência acumulada no seio da esfera pública burguesa. Os princípios de universalidade de acesso, de paridade da participação e de racionalidade da argumentação constituem-se, por conseguinte, enquanto a configuração da legislação de carácter universal e geral, que surge no século XVIII europeu ocidental. Em suma, a categoria de norma legal demonstra a consciência reflexiva possuída pela esfera pública política; que esta consciência é intermediada pela consciência institucional da esfera pública literária; e que estas duas variantes da esfera pública burguesa encontram-se interligadas, na medida em que em ambas existe um público de pessoas privadas cuja autonomia, baseada na propriedade privada, é sustentada pela família patriarcal burguesa e pela noção de humanidade, que desta última brota (idem).

Uma outra importante conexão entre estas duas variantes da esfera pública burguesa, cuja distinção teórica remete para o tipo de temas debatidos, diz respeito à sua composição sociológica. De acordo com Habermas, não existia uma coincidência entre a esfera pública literária, na qual as mulheres participavam mais frequentemente do que os proprietários privados e os próprios homens adultos, e a esfera pública política, da qual as mulheres e os homens não- proprietários estavam excluídos, tanto de facto como de direito. Esta é uma das questões fulcrais para o pensamento feminista. Por detrás da distinção entre público e privado, entre aquilo que pode ser discutido na esfera pública política e aquilo que deve ser relegado para a esfera íntima da família, está uma construção social com um objectivo bem definido: a exclusão de todos os grupos que, por razões de ordem sexual, étnica ou económica, diferem do grupo social de referência.

Uma forma de explicar o princípio constitutivo da esfera pública burguesa, o princípio de publicidade crítica, é através da discussão da inscrição da função política da esfera pública na Constituição dos países europeus continentais, durante o século XVIII. Habermas destaca três grandes tipos de direitos, em que a definição da esfera pública, bem como das suas funções, seria garantida constitucionalmente.11 Em primeiro lugar, são destacados os direitos relativos à esfera de pessoas privadas juntas, enquanto um público em debate crítico e racional (liberdade de opinião e de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de associação e de reunião), e à sua função política (direito de petição, direito de voto). Em segundo lugar, são referidos os direitos básicos que dizem respeito ao estatuto de cada indivíduo, enquanto ser humano livre, ancorado na esfera íntima da família patriarcal burguesa (liberdade individual, inviolabilidade do local de residência). Em terceiro e último lugar, são apontados os direitos básicos que se referem às transações que ocorrem entre os proprietários de propriedade privada (igualdade perante a lei, protecção da propriedade privada). Todos estes direitos básicos garantem várias coisas: · asseguram a distinção entre a esfera pública e a esfera privada, que inclui a esfera íntima; · garantem igualmente quer as instituições, quer os instrumentos da esfera pública (imprensa e partidos políticos), tal como a base da autonomia privada, a propriedade; · confirmam, por fim, as funções das pessoas privadas: quer as de cariz político (cidadão), quer as de carácter económico (proprietário), mas também as funções dos indivíduos enquanto seres humanos (como é o caso da inviolabilidade da correspondência privada).

Após estas considerações sobre a configuração jurídica da esfera pública, dos seus instrumentos e instituições, bem como das pessoas privadas que a constituem, individualmente consideradas, Habermas fala-nos do princípio de publicidade, verdadeiro eixo conceptual da sua argumentação sobre a esfera pública burguesa: Como consequência da definição constitucional da esfera pública e das suas funções, a publicidade tornou-se o princípio organizacional dos procedimentos dos próprios órgãos do estado; neste sentido, fala-se na sua "publicidade"; [por outro lado, a relação entre esta noção de publicidade (transparência) e a prática parlamentar e judicial é enfatizada: ] O carácter público das deliberações parlamentares garantia à opinião pública a sua influência; assegurava a relação entre representantes e eleitores como partes do mesmo público. E, por volta da mesma altura, também os procedimentos legais nos tribunais começaram a ser tornados públicos (Habermas, 1962: 83).

Nesta altura, Habermas identifica na burocracia do aparelho do estado a principal fonte de resistência a este princípio de publicidade (a este respeito ver Habermas, idem: 84). Ou seja, em 1962, tal como acontece em A Teoria da Acção Comunicativa (1981), mas ao contrário do que acontece em Entre Factos e Normas (1992), o poder administrativo do estado moderno constitui um obstáculo ao poder comunicativo que emerge dos palcos de discursividade dialógica e que institucionaliza o princípio de publicidade crítica enquanto forma de legitimação da actuação política. Por outras palavras, a burocracia e o poder do capital que, desde a origem histórica da esfera pública burguesa, constituíam, para o Habermas de 1962, os principais entraves à acção da publicidade crítica e racional, desempenham, hoje, no actual contexto da teoria democrática deliberativa, um papel bem diferente daquele que lhes foi atribuído por Habermas três décadas atrás e reafirmado em 1981.

De facto, Habermas defende agora que o estado é influenciado, de modo indirecto (legitimação) pela esfera pública, sendo , não um produtor de opacidade, mas um potencial produtor de transparência. Basta, para tanto, que o seu funcionamento interno seja regulado por uma lógica procedural, dotada de legitimidade racional-discursiva. Isto constitui, indubitavelmente, uma importante inversão perante a argumentação apresentada em 1962 e em 1981.12 Como afirmámos no início, pensamos ser necessário conjugar uma análise a este nível mais superficial dos elos teóricos entre os vários conceitos com uma análise ao nível mais profundo dos pressupostos em que aqueles se fundam. Neste sentido, o pressuposto aqui em jogo, a transparência (por contraste com a opacidade), constitui um elemento essencial da nossa estratégia teórica, que pretende demonstrar que as relações interconceptuais na argumentação habermasiana sobre a esfera pública ganham inteligibilidade caso as confrontemos com as premissas com que Habermas opera.

Em rigor, se existe um ideal de comunicação dialógica, racional e face-a-face, originalmente conceptualizado enquanto um argumento histórico e sociológico, e que tem vindo a ser desenvolvido a partir de instrumentos progressivamente mais teóricos e abstractos, ligados à filosofia da linguagem e à filosofia moral, não será incontornável questionar a premissa de partida caso a sua base original seja refutada empiricamente?

Entre os factos de ontem e as normas de hoje A minha própria teoria ( ) também mudou, embora menos nos seus traços fundamentais do que no seu grau de complexidade. (Habermas, 1986) A concepção habermasiana de política democrática deliberativa baseia-se num modelo teórico dual, relacionado não apenas com a formação da vontade, institucionalizada no "complexo parlamentar",13 mas também com uma noção de esfera pública que reenvia a um conjunto espontaneamente gerado de arenas políticas informais, dialogicamente discursivas e democráticas e aos respectivos contexto cultural e base social. Democracia deliberativa é um conceito que remete, em Habermas, para uma tensão definidora: uma oposição binária entre o plano formal e institucionalizado da democracia e os domínios informais e anárquicos de formação da opinião. Habermas é muito claro neste ponto fundamental da teoria política democrática: Uma prática deliberativa de autolegislação se pode desenvolver na interacção entre, por um lado, a formação da vontade parlamentar institucionalizada nos procedimentos legais e programada para tomar decisões e, por outro, a formação da opinião política através de canais informais de comunicação política (Habermas, 1992: 275).

Esta noção de política democrática deliberativa assenta na teoria da discussão habermasiana, cujo ideal regulador é um modelo de prática discursiva dialógica, face-a-face e orientada para o entendimento mútuo através exclusivamente da força do melhor argumento. Este modelo de comunicação tem por objectivo descrever e interpretar, por um lado, a inscrição do indivíduo num contexto intersubjectivo concreto e, por outro, a referência a uma audiência idealmente universal que incentiva os participantes a adoptar posições "sim" ou "não", que transcendem os jogos de linguagem contingentes e as formas de vida particulares em que foram socializados.

De acordo com Habermas, as investigações empíricas que concebem a política como um domínio em que imperam jogos de poder e que a analisam, quer em termos de interacções estratégicas reguladas por interesses, quer em termos sistémicos, cometem um erro essencial. Pretendem separar ideal e real, teoria e prática, normas e factos. Em seu entender, esta separação não faz sentido, dado que constituem termos de uma mesma oposição definidora.14 Neste sentido, aquilo que Habermas designa por "sociologia reconstrutiva da democracia", constrói o seu aparelho conceptual a partir de "partículas e fragmentos de uma ‘razão existente' incorporada nas práticas políticas, por mais distorcidas que estas possam ser" (Habermas, 1992: 287). A premissa em que assenta esta perspectiva é a de que a análise a um sistema político organizado num estado de direito, mesmo a nível empírico, não pode deixar de referir-se à dimensão de validade da lei e à força legitimadora da génese democrática do direito. Assim, a relação entre o empírico e o normativo deve estar sempre presente em qualquer análise à democracia, não enquanto planos que devem ser analiticamente separados, mas como duas faces da mesma moeda.

O argumento habermasiano é desenvolvido em torno da tentativa de análise comparada de uma polaridade teórica - republicanismo cívico vs. liberalismo -, em relação à qual a sua própria posição vai sendo definida, enquanto uma terceira via superadora, porque reconciliadora. De qualquer forma, e antes de discutirmos os méritos e dificuldades desta estratégia teórica, devemos analisar a forma como Habermas a desenvolve. Deste modo, o nosso autor diz-nos algo fundamental para entendermos as suas subsequentes argumentações: As nossas reflexões do ponto de vista da teoria do direito revelaram que o elemento central do processo democrático reside no procedimento da política deliberativa (Habermas, 1992: 296).

Daí a expressão "democracia procedural", que remete para uma interpretação da vida política que difere tanto da perspectiva liberal do estado enquanto garante de uma sociedade regulada pelo mecanismo do mercado e pelas liberdades privadas, e que concebe o processo democrático como o resultado de compromissos entre interesses privados concorrentes, o que implica que as regras deste processo político sejam responsáveis pela sua transparência e honestidade e sejam justificadas através dos direitos individuais básicos, como da concepção republicana de uma comunidade ética institucionalizada no estado, em que a deliberação democrática assenta num contexto cultural que garante uma certa comunhão de valores.

A estratégia de Habermas consiste em polarizar estas duas posições teóricas por si definidas, para, em seguida, construir uma síntese a partir de alguns elementos de cada posição. Esta estratégia teórica é reconhecida pelo próprio, quando afirma: A teoria da discussão retira elementos de ambos os lados e integra-os no conceito de um procedimento ideal para a deliberação e tomada de decisão (Habermas, 1992: 296).

O mesmo é dizer que a razão prática - entenda-se razão prática comunicativamente reconstruída - não reside nem nos direitos humanos, tal como é defendido pelas teses liberais, nem na noção de soberania popular, enquanto a substância ética de uma determinada comunidade política, tal como o republicanismo argumenta. Pelo contrário, a razão prática comunicativamente reconstruída remete para as regras da discussão e formas de argumentação que derivam o seu conteúdo normativo da base de validade da acção orientada para o entendimento (Habermas, 1992: 297).

Este é um ponto importante. Falando de um "trilema" em que a razão moderna se encontraria, Habermas introduz-nos o seu projecto de reconstrução da filosofia do direito contemporânea. Rejeitando quer uma filosofia da história teleológica, quer uma antropologia filosófica, bem como uma crítica da razão à la Nietszche, Habermas adopta uma outra perspectiva com a sua teoria da acção comunicativa, substituindo a razão prática (kantiana) por uma razão comunicativa. Como ele próprio nos explica: A razão comunicativa difere da razão prática antes de mais por não estar ligada ao actor individual ou a um sujeito colectivo como o estado ou toda a sociedade (Habermas, 1992: 3).

De facto, a razão comunicativa remete, não para o nível do agente social individual nem para o plano do actor social colectivo, mas para o domínio da linguagem corrente quotidiana que estrutura as formas de vida social e possibilita a interacção simbólica entre os diversos actores sociais. Neste sentido, a razão comunicativa, ao contrário da razão prática kantiana, não constitui uma fonte de prescrições normativas. O conteúdo normativo da razão comunicativa consiste no facto de os indivíduos terem de se comprometer com um conjunto de pressupostos pragmáticos e formais, de forma a garantir o sucesso de uma interacção linguística orientada para um acordo universal ideal.

Introduzindo a problemática da dicotomia entre estado e sociedade, Habermas distingue novamente duas diferentes concepções teóricas, cuja oposição define, em seu entender, os termos desta discussão. Assim, por um lado, a concepção liberal possui conotações normativas relativamente fracas, na medida em que remete para um entendimento da política centrado no estado, ficando a formação da vontade democrática a cargo de cidadãos apenas preocupados com os seus interesses particulares, e, por outro, a concepção republicana posuui uma dimensão normativa muito mais evidente, uma vez que, interpretando a sociedade enquanto uma entidade originalmente prática, a democracia diz respeito à auto- organização política da sociedade. Este aspecto da concepção republicana do processo democrático é partilhado pela teoria da discussão habermasiana, ainda que esta integre uma outra noção defendida pelo paradigma liberal, a primacialidade do império da lei. Deste modo, Habermas entende que uma política deliberativa bem sucedida depende, ao contrário do pretendido pelas posições cívico-republicanas, não de um corpo de cidadãos colectivamente actuante, mas da institucionalização dos correspondentes procedimentos e condições de comunicação, bem como da relação entre os processos deliberativos institucionalizados e as opiniões públicas informalmente desenvolvidas (Habermas, 1992: 298).

Desta forma, a teoria da discussão habermasiana pressupõe uma rede de processos comunicativos, tanto dentro como fora do complexo parlamentar e dos seus corpos deliberativos, que sustenta a existência de palcos dialogicamente discursivos em que ocorre a formação da vontade e da opinião democráticas. A noção de que a comunicação linguística origina e legitima práticas democráticas é, pensamos, aqui evidente. Com efeito, é precisamente o fluxo de comunicação que evolui desde o plano da formação da opinião pública, através de discussões racionais orientadas para o entendimento mútuo, passando pelas eleições democráticas, reguladas por procedimentos que garantem a sua validade e legitimidade democráticas, até ao nível das decisões políticas em forma de lei, que assegura que a "influência" (Parsons) e o poder comunicativo sejam convertidos em poder administrativo, através, justamente, do direito.

Neste contexto, Habermas concebe o sistema político de forma diferente da proposta por Niklas Luhmann (1992), uma das suas principais influências na actual formulação habermasiana do conceito de esfera pública. De facto, apesar de Habermas rejeitar muito do contributo luhmanniano, não deixa, no entanto, de considerá-lo um importante oponente. Neste sentido, compreende-se a opção de Habermas em recorrer à teoria dos sistemas para explicar determinados pontos da própria Teoria da Acção Comunicativa, nomeadamente o processo de racionalização do direito. Assim, se, por um lado, Habermas acusa Luhmann de incorrer numa "fraqueza metodológica de um funcionalismo sistémico absolutizado" (Habermas, 1986b: 312), na medida em que um mundo totalmente burocratizado é aceite como um facto adquirido, por outro lado, Habermas não deixa de defender a necessidade de, no contexto de uma teoria da competência comunicativa influenciada por Durkheim e Mead e de uma distinção entre sistema e mundo da vida em larga medida tributária do estrutural-funcionalismo parsoniano, passar de uma teoria da acção a uma análise aos subsistemas de acção racional teleológica, de forma a "ter em conta os efeitos laterais patológicos de uma estrutura de classes que não podem ser compreendidos apenas por recurso a uma teoria da acção" (Habermas, 1986b: 303).

No caso específico da noção de sistema político, e de acordo com a teoria dos sistemas na versão luhmanniana, a relação entre aquele e a opinião pública é bastante próxima, na medida em que esta constitui para o domínio político "um dos mais importantes sensores cuja observação substitui a observação directa do ambiente"(Luhmann, 1992: 85).15 Isto significa que o sistema político, enquanto um "sistema social", utiliza a opinião pública para se observar a si mesmo: [a opinião pública] não serve para estabelecer contactos externos. Serve a clausura auto-referencial do sistema político, o círculo fechado da política (Luhmann, 1992: 87).

Uma proposta inaceitável aos olhos de Habermas, para quem todos os sistemas sociais - política incluída - interagem com os restantes. A sociedade é, assim, constituída por um conjunto alargado de subsistemas especializados de natureza diversa, mas linguisticamente unidos. O sistema político habermasiano, ao contrário do sistema político fechado proposto por Luhmann, é um sistema aberto a influências de outros sistemas sociais. Deste modo, o sistema político deve ser entendido como um subsistema especializado na tomada de decisões que a todos obrigam, enquanto a esfera pública constitui uma extensa rede de "sensores que reagem à pressão dos problemas sociais e que estimulam os líderes de opinião" (Habermas, 1992: 300), o que implica que a opinião pública, resultante das estruturas comunicativas desta última, detém (apenas) um poder de influência sobre a administração burocrática do estado.

Ora, e recuperando a nossa hipótese de que os pressupostos teóricos com que Habermas opera constituem elementos fundamentais para uma análise crítica à sua estratégia teórica, pensamos que é nítida a inversão da tese da colonização interna do mundo da vida, apresentada em A Teoria da Acção Comunicativa. De facto, se, em 1981, Habermas concebia o sistema político enquanto um produtor de opacidade que invadia ou "colonizava" os domínios da vida social comunicativamente regulados, em 1992, opta por inverter o sentido deste processo. O sistema político é, agora, concebido como podendo ser indirectamente influenciado por um mundo da vida e uma esfera pública produtoras de transparência (poder comunicativo), como se pode verificar na figura_1.

Uma das principais influências por detrás desta concepção deuma política democrática deliberativa foi o pensamento de John Dewey. De facto, foi este último quem, em The Public and Its Problems (1927), argumentou que a regra da maioria, enquanto mera regra da maioria, não tem grande significado. O que é realmente importante, para Dewey como para Habermas, são os meios, é a forma, são os procedimentos através dos quais a maioria se torna maioria. Segundo o pragmatismo americano clássico, a essência normativa e legitimadora da regra da maioria democrática encontra-se nos debates que a configuram e que são igualmente responsáveis pela modificação das opiniões de forma a que, por exemplo, os contributos das minorias sejam respeitados. Ora, e na medida em que a política democrática deliberativa "adquire a sua força legitimadora da estrutura discursiva de uma formação da opinião e da vontade", que consegue desempenhar uma função de integração social porque os cidadãos esperam que os seus resultados tenham uma qualidade razoável,16 Habermas defende aquela que, em nosso entender, constitui a sua principal tese empírico-metodológica: "Assim, o nível discursivo dos debates públicos constitui a variável mais importante (Habermas, 1992: 304).

Analisando, agora, com maior pormenor, o conceito habermasiano de "política deliberativa", que tem em Joshua Cohen uma das suas principais influências, podemos salientar que o procedimento formal de tomada de decisão política - e que confere legitimidade a todas as decisões proceduralmente correctas - pode ser caracterizado através dos seguintes postulados: · os processos de deliberação assumem uma forma argumentativa, isto é, são caracterizados pelo intercâmbio regulado de informações e argumentos entre as partes em discussão; · destes processos de deliberação ninguém pode ser excluído legitimamente, para o que contribui o seu carácter público ou transparente; · estas deliberações são, portanto, livres de quaisquer coerções externas, dado que os participantes respondem apenas perante os pressupostos de comunicação e regras de argumentação; de igual forma: · estas deliberações não permitem a existência de qualquer coerção interna que comprometa a igualdade dos participantes, que se traduz na capacidade de todos poderem ser ouvidos, introduzir temas de debate, produzir contribuições próprias e criticar propostas de terceiros. A única coerção interna admissível é a força do melhor argumento.

O carácter político destes processos deliberativos é salientado por Habermas, através de algumas condições complementares, novamente tributárias do pensamento de Cohen. Em termos genéricos, e comprovando o carácter cognitivista desta proposta, verifica-se que as deliberações têm como objectivo a obtenção de um acordo racionalmente motivado. No caso específico das deliberações políticas: · este acordo deverá ser alcançado através de uma decisão maioritária que pode ser revogada a qualquer momento, desde que a minoria convença a maioria a adoptar um seu ponto de vista; · as deliberações de cariz político dizem respeito a todos os assuntos desde que os interesses que lhes subjazem possam ser generalizáveis; · este tipo particular de deliberações inclui igualmente a interpretação de necessidades e desejos, bem como a transformação de atitudes e preferências pré-políticas (Habermas, 1992).

A definição desta concepção de política deliberativa reenvia-nos a duas noções essenciais do pensamento de Habermas. Por um lado, a língua assume-se como o elemento primordial, em termos da sustentação teórica desta concepção política; por outro lado, esta proposta para uma política democrática deliberativa pressupõe a existência de dois planos de acção política, um dos quais constituído pelo nosso fio condutor neste artigo, a ideia de esfera pública.

Assim, segundo esta concepção de política deliberativa, qualquer associação da sociedade civil que institucionalize estes procedimentos, de forma a regular as condições da sua vida colectiva, constitui um corpo de cidadãos específico e uma comunidade legal particular. No entanto, o que mantém um conjunto de cidadãos unido enquanto uma comunidade política de cidadãos é a comunhão de uma língua.

No entanto, e relativamente às condições e postulados propostos por Cohen e adoptados por Habermas, devemos salientar que este último considera serem insuficientes para que consigam captar a natureza bidimensional que uma concepção de política deliberativa deve possuir. Por um lado, existem deliberações orientadas para a formação da vontade e tomada de decisão, que são reguladas por procedimentos formais democráticos, e, por outro, existem processos informais de formação da opinião, que têm lugar na esfera pública. Se a dimensão formal da política democrática deliberativa remete para a justificação da selecção de um dado problema e da escolha, entre diferentes alternativas, de uma forma de resolução, a dimensão informal e proceduralmente desregulada reenvia para a descoberta e identificação de problemas politicamente relevantes. Esta esfera pública, informal e desregulada constitui o veículo da opinião pública.17 Em nosso entender, quando Habermas salienta este aspecto informal e desorganizado da concepção de democracia deliberativa, descreve-nos não apenas uma das dimensões desta proposta, mas também, e sobretudo, o plano da vida política democrática donde emerge o seu ideal normativo de participação democrática, discursivamente racional e com pretensões de universalidade. É, pois, particularmente significativo que esta dimensão informal da política democrática deliberativa, como é salientado em Entre Factos e Normas, seja garantida por uma estrutura de direitos constitucionais. a lei fundamental assegura a espontaneidade da esfera pública, na medida em que somente ela possui a capacidade de generalidade, abstracção e inclusão necessária e suficiente para defender e promover um domínio comunicativamente racional e anarquicamente organizado, como é o caso da esfera pública.

Estamos, agora, em condições de explorar as consequências lógicas desta hipótese de interpretação, que entrelaça o nível dos pressupostos e o nível das relações interconceptuais. Pensamos que a questão de fundo por detrás deste artigo pode ser sintetizada em breves palavras. Em nossa opinião, o ideal em que Habermas baseia todo o seu pensamento é um ideal irredutivelmente ancorado numa conjuntura histórica muito bem delimitada. Tanto na hoje clássica Mudança Estrutural da Esfera Pública, como no recente Entre Factos e Normas, Habermas defende a mesma ideia - existe um período histórico ideal, o iluminismo ocidental do século XVIII, donde brotaram as noções de razão, universalismo, transparência, harmonia, para além da tríade da revolução francesa.

Daqui decorreu a sua análise histórico-normativa sobre uma das categorias centrais das modernas sociedades ocidentais - a esfera pública burguesa, a um tempo, realidade histórica irrepetível e ideal normativo regulador. Daqui decorre a sua tese da modernidade enquanto projecto inacabado, no sentido de uma utopia cujo potencial emancipatório, longe de esgotado, tem de ser corrigido, explorado e desenvolvido. Daqui decorre ainda a sua mais recente proposta para uma teoria da democracia, em que a formação da vontade e a formação da opinião, em que a dimensão formal e a dimensão informal se entrelaçam constitutivamente.

Ontem e hoje, a ideia de um entendimento intersubjectivo (Verståndigung), discursivamente alcançado, dialogicamente partilhado, comunicativamente racional, "com um " na história dos factos e outro na história das ideias.

Mas, hoje mais do que ontem, as ideias comandam os factos. Elas como que ganharam vida própria, autonomizaram-se e constituem, hoje, a essência da obra de Habermas. Mas, e se lermos esta como uma longa narrativa, marcada pela congruência, continuidade e evolução, não será que o vínculo entre "factos e normas" vai um tudo nada mais longe do que concede Habermas? Não terão as ideias uma história própria, ao longo da qual foram concebidas, desenvolvidas e articuladas com outras? E não será que, no caso concreto do aparelho conceptual habermasiano, a origem destas noções teóricas é inseparável de uma dada análise histórica, de um determinado conjunto de pressupostos historicamente contingentes, concebidos no início dos anos sessenta e que o acompanharam desde então? E, se assim for, não terá o vínculo entre "factos e normas", tese última de Habermas, não apenas um carácter teórico, mas também, e decisivamente, histórico(nos dois sentidos de que falámos)? Acompanhe-nos, o leitor, uma última vez. Repare no seu actual ideal de democracia deliberativa. Se, por um lado, assenta no seu ideal de comunicação sem restrições, motivado exclusivamente pelo interesse da compreensão mútua através da força do melhor argumento, por outro, a noção de esfera pública, sustentáculo último da formação da opinião, não teve uma origem empiricamente verificável, como é suposto, hoje em dia, ter "implicações empíricas". Eis a nossa dúvida. A esfera pública define-se pela tensão entre a validade das normas e a facticidade da realidade social. Se Habermas pretende manter esta relação constitutiva entre estes dois planos não pode deixar de ter em consideração alguns recentes estudos históricos que sugerem uma leitura muito menos abonatória da esfera pública liberal dos séculos XVIII e XIX do que a apresentada em A Mudança Estrutural da Esfera Pública. Mas como reconstruir, do princípio, todo um edifício erigido através de sucessivas reconstruções teóricas, que compreende hoje uma sofisticada justificação teórica das premissas de partida (o paradigma da teoria da acção comunicativa, a pragmática formal e a ética da discussão), mas cujas fundações remontam a essa primeira reconstrução histórica?

Notas 1    Öffentlichkeit,a categoria de esfera pública ou de espaço público, expressões por nós utilizadas indiferenciadamente neste artigo. No entanto, entendemos que, no limite, o rigor conceptual poderá levar-nos a defender a utilização da noção de "esfera pública" para designar a concepção habermasiana, em que o ideal normativo de uma discussão racional, dialógica e face-a-face é a substância teórica, e do conceito de "espaço público" para designar uma realidade sociológica em que os meios de comunicação social se assumem enquanto elemento estruturante e constitutivo (a este respeito veja-se a proposta de Dominique Wolton (1995: 167): " o espaço público contemporâneo pode ser designado por ‘espaço público mediatizado', no sentido em que é funcional e normativamente indissociável do papel dos média." 2    Data de publicação da mais recente obra habermasiana, Entre Factos e Normas.

3    A que correspondem três momentos de evolução: surgimento, expansão e declínio ou descaracterização.

4    Cuja obra (1988), Women and the Public Sphere in the Age of the French Revolution, Ithaca, Cornell University Press, é utilizada por Nancy Fraser (1992).

5    Seguindo a sugestão de Fraser, podemos constatar que, de acordo com o dicionário Oxford Reference English, o termo do inglês moderno public teve origem na expressão do francês antigo (antes de 1400) public ou na expressão do latim publicus, que deriva da expressão pubes. Na medida em que a palavra portuguesa "público" tem a mesma origem latina, o mesmo raciocínio pode ser aplicado no nosso contexto semântico.

6    São por demais conhecidos, no entanto, alguns dos excessos cometidos em nome deste princípio: referimo-nos concretamente ao chamado "politicamente correcto", que atingiu, sobretudo nos Estados Unidos, uma significativa importância.

7    Este duplo sentido do conceito de universal é também enfatizado por Maeve Cooke (1994, 1997), quando esta analisa o carácter de universalidade da racionalidade comunicativa, no quadro da teoria da acção comunicativa habermasiana.

8    A distinção entre estas duas variantes da esfera pública burguesa é definida, em 1964, por Habermas, da seguinte forma: "Nós falamos em esfera pública política em contraste, por exemplo, com a literária, dado que naquele caso as discussões públicas referem-se a temas relacionados com a actividade do estado" (Habermas, 1964: 49).

9    Uma vez mais, Kant constitui uma importante referência para esta concepção de esfera pública burguesa: " para esta ilustração, nada mais se exige do que a liberdade; ( ) a de fazer um uso público da sua razão em todos os seus elementos" (Kant, 1784: 13).

10    Esta é uma expressão do próprio autor: veja-se, por exemplo, Habermas, 1964: 53.

11    A principal diferença entre este conjunto de direitos fundamentais e a proposta habermasiana actual de um "sistema de direitos", desenvolvida na sua última obra Entre Factos e Normas(1992), diz respeito a um tipo de direitos básicos nascidos com o pós-guerra e o welfare state: os direitos sociais.

12    Yves Sintomer (1999: 230) sugere que Habermas terá procedido a uma tripla redefinição filosófica, sociológica e empírica do seu conceito de esfera pública em Entre Factos e Normas.

13    Expressão do próprio Habermas.

14    Aliás, esta posição constitui um dos traços distintivos do pensamento habermasiano e comprova a sua unidade. A noção de racionalidade comunicativa, por exemplo, constitui uma tentativa de resposta à análise nietzscheana ao extraquotidiano, ao pretender demonstrar a relação interna entre a práxis comunicativa do quotidiano e o conteúdo normativo orientado para a transcendência dos contextos linguísticos concretos. Veja-se, a este respeito, por exemplo, O Discurso Filosófico da Modernidade(1990b), pp. 311 e ss.

15    Luhmann (1992: 69, 70, 74) define este conceito de opinião pública como uma "espécie de rede de comunicação" que "se refere ao sistema social da sociedade", e que "renuncia a quaisquer implicações de racionalidade", o que lhe valeu a seguinte crítica por parte de Habermas (1990b: 325): "Uma vez que, ao mesmo tempo que abandona o conceito de razão, também abandona a intenção de crítica à razão ( ) Luhmann conduz ao extremo a afirmação neoconservadora da modernidade".

16    Este pressuposto afasta Habermas quer de Hegel, quer de teóricos liberais como Mill e Tocqueville, que tinham grandes dúvidas quanto à capacidade de produção de racionalidade por parte da esfera pública.

17    Esfera pública, informal e desregulada que Habermas (1992: 307) apelida de, parafraseando Fraser, "público fraco", ou seja, um público sem poder de tomada de decisão (por contraste, um "público forte" é responsável pela formação democrática da opinião e da vontade).


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