Liberdades condicionais: o conceito de papel sexual revisitado
A ditadura dos papéis sexuais: problematização de um conceito
O conceito de papel sexual tem sido frequentemente utilizado na psicologia
social e na sociologia para caracterizar comportamentos e atitudes consonantes
com o sexo do actor que os realiza, exprimindo assim uma dimensão normativa.
Este conceito tem sofrido uma série de reformulações e tem sido ligado a outros
conceitos, de acordo com as diferentes tradições teóricas que o abordaram. Para
Vivian Burr (1998), o papel corresponde ao conjunto de comportamentos, deveres
e expectativas, ligados a uma posição na hierarquia social. Assim, e aplicando
esta definição aos papéis sexuais, estes corresponderão a esse conjunto de
comportamentos, expectativas e deveres, aplicados à pertença de um determinado
indivíduo a um determinado grupo de sexo (Basow, 1992; Burr, 1998).
Tallcott Parsons (1956) foi dos primeiros a utilizar o conceito de papel
sexual, e concebeu-o de uma forma funcionalista, tanto ao nível da estrutura
familiar como ao nível do processo de socialização. Assim, desde o princípio da
sua vida, a mulher seria socializada para desempenhar um papel de líder
expressivo na família, função que garantiria o bem-estar dessa unidade social;
já o homem seria socializado por forma a exercer uma função de sustento e
garante da satisfação das necessidades da família.1 A função masculina seria a
mais importante, quantitativa e qualitativamente, mas a função feminina ser-
lhe-ia complementar. A teorização de Parsons (1956) sobre os papéis sexuais tem
por base pressupostos androcêntricos e etnocêntricos: o autor analisa a
organização social tendo por base modelos norte-americanos de família,
histórica e culturalmente relativos, tentando homogeneizar as várias realidades
sociais e reduzindo-as ao modelo hegemónico de família nos Estados Unidos da
América. Contudo, esta perspectiva foi largamente utilizada na sociologia (como
mostra Connell, 1987) e na psicologia social norte-americana, como atestam
Spence, Deaux e Helmreich (1985: 152):
Uma caracterização amplamente aceite da divisão do trabalho entre os sexos, na
maioria das sociedades, é a divisão clássica de Parsons, entre o papel
instrumental e o papel expressivo. (tradução nossa)
A dicotomia de Parsons serviu assim para explicar a divisão das tarefas entre
homens e mulheres (a divisão sexual do trabalho), considerada como decorrente
dos papéis sexuais. Mas não serão as próprias necessidades da sociedade e do
seu sistema económico, político e ideológico que criam os papéis sexuais?
Utilizando outra acepção do conceito, Goffman (1993) considera o papel sexual
como uma das partes integrantes do grande teatro que é a sociedade, na
perspectiva do autor. A perspectiva dramatúrgica de Goffman analisa os papéis
como uma série de expectativas que dizem respeito ao uso de determinadas
técnicas de corpo, obrigações sociais, comportamentos, estratégias de auto-
apresentação, etc., consonantes com o papel a desempenhar. Esta concepção
conduz-nos a ver a masculinidade e a feminilidade como o desempenho de um papel
que envolve seguir um script socialmente determinado (Burr, 1998). Mas a
definição de papel sexual de Goffman não traduz a vivência do género, porque
muitas das vezes os actores sociais não se apercebem que estão a desempenhar um
papel, dado que este está fortemente enraizado no self. Esta teorização foi
criticada (Burr, 1998) por não ter em conta o carácter insidioso e difundido
dos papéis sexuais sobre o indivíduo, nem a dimensão normativa do papel. Apesar
destas críticas, Wirkin (1995) reabilita o pensamento deste autor no quadro do
conceito de instituição: as práticas dos actores são diferenciadas em função do
grupo sexual de pertença, sendo esta diferenciação reforçada por disposições
institucionais (Goffman, 1977).
Contudo, o papel não é uma simples indicação ou um guião (script) pelo qual
podemos guiar os nossos comportamentos. O papel sexual constitui-se como uma
norma que proscreve determinados comportamentos e prescreve outros e que é
apreensível ao nível dos estereótipos sexuais (Amâncio 1993a), sendo os actores
sancionados socialmente pela adopção de comportamentos não consonantes com o
seu papel sexual. Mas serão todos os actores sancionados da mesma forma?
Existirá aqui alguma influência das posições relativas de cada grupo dentro do
sistema social?
Anne-Marie Rocheblave-Spenlé (1964) realizou uma série de investigações (na
França e na Alemanha) que nos esclarecem sobre os papéis masculinos e femininos
e, bem ao contrário dos investigadores que tentaram alicerçar as suas teorias
em torno deste conceito, conseguiu estabelecer uma relação entre o papel sexual
e o estereótipo, interligando assim a experiência individual do comportamento
conforme ao papel com a ideologia da sociedade em que esse indivíduo se insere.
De acordo com esta autora, a definição de um papel reside no acordo ou no
consenso relativo às expectativas desse mesmo papel, sendo claramente dirigido
à execução de comportamentos, enquanto o estereótipo corresponde a ideias pré-
concebidas, uma espécie de cliché mental,onde os factos novos ancoram (é
impossível deixar de ver aqui um claro paralelismo entre o conceito de
representação social e o conceito de estereótipo, definido por Rocheblave-
Spenlé, 1964). A autora chegou a algumas conclusões interessantes no que toca
ao estereótipo da mulher: se considerarmos o estereótipo como um conjunto de
expectativas de papel negativas, só a imagem da mulher pode ser considerada
como um estereótipo (ao contrário da imagem do homem). Se, por outro lado,
encararmos os estereótipos como uma atitude depreciativa em relação a um
exogrupo, a imagem negativa das mulheres é evidente nos resultados, mesmo ao
nível da imagem do grupo de pertença. McKee e Sherriffs (1959) chegaram a
resultados semelhantes aos de Rocheblave-Spenlé (1964), aplicando um inquérito
semelhante nos Estados Unidos.
De acordo com Lígia Amâncio (1994: 70), os papéis não constituem uma realidade
independente dos estereótipos, antes constituem uma dimensão da estruturação da
ideologização dos seres masculino e feminino. Se encararmos o papel como a
dimensão comportamental do estereótipo e o entendermos como um constrangimento
normativo, colocando-o como uma variável mediadora entre o universo simbólico
comum, objectivado numa divisão sexual do trabalho que diferencia esferas de
acção pelas categorias sexuais, podemos perceber melhor a questão da assimetria
dos papéis sexuais. Os homens representam-se e são representados em termos de
grupo dominante e em termos de modo de ser dominante, dispondo de recursos
simbólicos para se representar de diversas formas (Amâncio, 1997). As mulheres
representam-se e são representadas em termos de grupo dominado com uma esfera
de acção restrita ao universo da família (Amâncio, 1994). Este argumento
sustenta a ideia de que os papéis sexuais são assimétricos em termos de
conteúdo e de forma, oferecendo ao homem uma multiplicidade de papéis, enquanto
o modo de ser feminino é remetido para um papel restrito, que releva da esfera
privada.
Assim, o poder normativo do papel sexual, como demonstra Amâncio (1994) numa
investigação sobre papéis sexuais em contexto organizacional, só constrange o
grupo dominado, as mulheres, tendo em conta que ao homem se lhe oferecem
recursos simbólicos que derivam quer da sua multiplicidade de papéis, quer do
estatuto (usualmente elevado) associados a esses mesmos papéis. Se
perspectivarmos os estereótipos de sexo como ideologizações que modelam a
conduta colectiva e os papéis sexuais como a dimensão normativa desses mesmos
estereótipos, estamos em condições de ultrapassar as perspectivas
excessivamente limitativas de Parsons e dos autores da psicologia social
americana, pois conseguimos dar conta das profundas implicações que a estrutura
social e o universo simbólico têm na definição dos estereótipos e dos papéis
sexuais. Os estereótipos sexuais passam assim a ser vistos como uma
representação social (Amâncio, 1993c), sendo a identificação de um indivíduo
com um determinado grupo de sexo potenciadora de estratégias antecipatórias,
tendo em conta o carácter informativo que os estereótipos de sexo possuem.
Encontramos, portanto, na psicologia social e na sociologia, um conjunto de
estudos sobre os papéis sexuais que sugerem algumas conclusões importantes para
esta discussão: para os homens, existe uma multiplicidade de papéis, o que
sugere uma certa plasticidade nos comportamentos masculinos e nas
representações sociais do que significa ser homem, enquanto para as mulheres
este universo é restringido. O ser mulher é socialmente pensado por forma a
direccionar todos os comportamentos para uma única esfera de actividade, a
esfera privada, a família (cf. Amâncio, 1994, para uma revisão desta
literatura). Assim, as mulheres acabam por ser representadas como um segundo
sexo (como lhe chama Simone de Beauvoir, 1949-1975), um enorme conjunto de
seres humanos cuja diferenciação se resume às funções sociais de sentir e de
cuidar: A definição de pessoa adulta, subjacente ao estereótipo feminino,
encontra-se assim limitada às funções afectivas e de objecto de desejo, às
quais se associa a ausência de qualidades para o trabalho e para a autonomia
(Amâncio, 1994: 64). Deste modo, é de esperar que mesmo quando as mulheres saem
dessa esfera para trabalhar, as suas actividades sejam socialmente construídas
como uma extensão das actividades domésticas e dos comportamentos a elas
associados para o mundo do trabalho.
Assimetrias e modos de ser: desigualdades simbólicas no plano identitário
A constatação de que os papéis sexuais estão intrinsecamente relacionados com
os estereótipos sexuais, constituindo a sua componente normativa, conduz-nos a
uma outra interrogação: de que modo a definição da identidade feminina pode ser
influenciada pelos papéis sexuais?
Ao perspectivar a identidade social enquanto representação social de uma
pertença a um grupo, enquadrado numa determinada hierarquia, e regulada por um
universo símbólico comum de valores, a escola de Genebra explicita os
mecanismos de essencialização e naturalização das assimetrias e das hierarquias
existentes entre os grupos sociais.2
Para Fabio Lorenzi-Cioldi (1988) existem duas acepções de grupo (agregado ou
colecção) que estão associadas a lugares opostos, mas interdependentes, numa
estrutura social. Os grupos dominados e dominantes distinguem-se nessa
estrutura em função da sua propensão para evocar a indiferenciação e a
intercambialidade ou, em oposição, para evocar a unicidade e especificidade dos
seus membros. Nas sociedades ocidentais, a norma dominante é a do indivíduo
como responsável, autónomo e auto-suficiente em relação aos grupos de pertença.
Assim, o grupo dominanteterá tendência a ser um grupo colecção(uma colecção
de individualidades, cada uma com especificidades próprias), a que corresponde
uma identidade autónoma, interna e diferenciada. Já o grupo dominadotenderá a
ser um grupo agregado(um conjunto de individualidades relativamente
indiferenciadas), a que corresponderá uma identidade heterónoma, externa,
indiferenciada, colectiva, sem especificidade própria. A nível da formação da
identidade os membros do grupo dominante aderirão tendencialmente às qualidades
pessoais (aparentemente extracategoriais) e a propriedades idiossincráticas,
enquanto os membros dos grupos dominados forjarão a sua identidade em torno das
propriedades colectivas que definem o grupo de pertença. A pertença a um grupo
é elaborada na ligação assimétrica que liga esse grupo a outros grupos. O que
faz surgir essa ligação é uma representação da identidade do self em termos da
individualidade singular. Então, a oposição essencial a considerar não será a
oposição entre comportamentos intergrupais versus comportamentos
interindividuais, mas sim a oposição entre o self e o grupo, entre a tendência
para a individuação versus a tendência para a fusão, que depende da própria
relação assimétrica entre os grupos. Os membros de grupos dominantes tendem a
não se apresentarem como grupo, enquanto seres sociais cuja unicidade dependa
de uma pertença colectiva. Na literatura sociológica portuguesa encontramos um
trabalho anterior a estes (Costa, Guerreiro, Freitas e Ferreira, 1984), sobre a
identidade operária, que salienta a importância da dimensão de comparação nas
estratégias identitárias: se em relação à classe dos dirigentes, os operários
se apresentam como um grupo homogéneo utilizando uma estratégia de oposição
proletária, já em relação a outros operários, emergem múltiplas identidades
operárias, evidenciando a heterogeneidade do grupo.
Tendo em conta a proposta de Lorenzi-Cioldi (1988), de acordo com a qual a
representação do selfé definida em termos de indiferenciação relativa face ao
grupo, o autor conclui que, no caso das mulheres, grupo dominado, será
construída uma identidade social colectiva, a que corresponderá uma
representação do self mais ou menos indiferenciada do grupo. Ao passo que os
homens, enquanto grupo dominante, construirão uma representação do
selfrelativamente diferenciada do grupo.
Por via do efeito da homologia, as representações do self e dos outros dependem
em grande medida dos grupos sociais de pertença dos indivíduos, grupos nos
quais forjaram a sua identidade (Lorenzi-Cioldi, 1988). Assim, é de esperar que
as mulheres se vejam como mais intercambiáveis, indiferenciáveis e com uma
identidade mais colectiva do que os homens.
Hurtig e Pichevin (1990) demonstram esta assimetria no recurso aos estereótipos
de sexo nas interacções sociais: a categoria sexo é muito mais utilizada para
descrever as mulheres do que para descrever os homens. Estes resultados podem
ser explicados tendo emconta o modelo da assimetria simbólica. Um dado que pode
auxiliar a compreensão desta assimetria é o facto de o estereótipo de homem ser
coincidente na maioria das suas dimensões com o estereótipo de adulto (Amâncio,
1993c), o que nos sugere de imediato uma equivalência entre o modo de ser
masculino e o modelo de pessoa. Mas, e as mulheres? De acordo com um estudo
realizado por Amâncio (1994: 68) sobre os estereótipos de género em Portugal, a
multiplicidade de competências associadas ao estereótipo masculino corresponde
a um modelo de ser pessoaautónoma e internamente determinada, enquanto o
estereótipo feminino aponta para um modelo de pessoa condicionada a uma função
específica e orientada para contextos de dependência afectiva e sexual.
Seguindo a linha da escola de Genebra, Amâncio (1994) apresenta o modelo da
assimetria simbólica de género que, derivando das hipóteses centrais daquela
escola, tem um papel inovador, pois aborda as relações de género do ponto de
vista da relação entre identidade social e representação da pessoa. De acordo
com a autora (Amâncio, 1993a, 1993c, 1994), os estereótipos sexuais são
amplamente consensuais nas várias culturas e sociedades, o que faz deles um
ponto de ancoragem não só para o suporte simbólico das posições sociais
objectivas dos dois grupos, mas também da construção da representação de si dos
indivíduos de ambos os sexos (Amâncio, 1993b: 305).
Emergindo do estereótipo, a representação do self nas mulheres leva-as a ser,
ou antes, a perceberem-se como sendo sensíveis, (emocionalmente)
dependentes e carinhosas (Amâncio, 1993c, 1994). Já os homens têm um
estereótipo muito semelhante ao estereótipo da pessoa adulta, o que evidencia
um muito maior espaço de manobra no campo da auto-representação. Assim, e para
além da autonomia e distintividade que lhes advêm do facto de pertencerem a um
grupo dominante, o masculino não está associado a uma função, o que permite,
aos homens, uma relativa independência do contexto e do próprio estereótipo
(Amâncio, 1997).
No caso do grupo dominado, a diferenciação está sujeita a um duplo processo: a
norma contextual da representação da pessoa universal, por um lado, e por
outro, no que se refere ao seu modo de ser fusional, indiferenciado (que lhe
advém da pertença a um grupo dominado) do seu grupo (Amâncio, 1994; Lorenzi-
Cioldi, 1988). É neste contexto que se torna irrelevante do ponto de vista
teórico a distinção entre identidade pessoal e identidade social, como
pretendem alguns modelos anglo-saxónicos da psicologia social (e. g., Turner e
outros, 1987).
No quadro da assimetria simbólica, a própria génese dos grupos de sexo tem
subjacente uma concepção ontológica (característica das construções sociais) do
género, que cristaliza a auto-representação dos membros do grupo dominado numa
construção do self unidimensional, que os torna relativamente indiferenciados,
imutáveis, sob o efeito de uma normatividade, travestida de lei da natureza.
São estas concepções ontológicas que o modelo designou de modos de ser,
distinguindo, no entanto, o modo de ser universal dos dominantes do modo de
estar, contextualmente dependente, dos dominados (Amâncio, 1993b).
Em conclusão, o modelo da assimetria simbólica pressupõe que as representações
sociais dos sexos são estruturadas a partir de um universo simbólico comum,
histórica e culturalmente situado e determinante. Esta organização dos
significados associados ao género estabelece uma divisão do mundo entre
sujeitos universais e assexuados e uma comunidade de invisíveis
sobressexuados (Amâncio, 1999a: 19), cujas ancoragens históricas se prendem
com o confinar das mulheres à esfera familiar e doméstica.
No plano dos significados, o masculino emerge como referente simbólico
universal, remetendo as mulheres para uma condição de alteridade (fenómeno já
descrito por Simone de Beauvoir, 1949-1975), onde o sexo constitui um marcador
social em resultado da sobrenormatividade dos estereótipos e papéis sexuais.
Nesta perspectiva, o entendimento dos papéis sexuais segundo uma diferenciação
meramente valorativa ou de funções complementares perde todo o sentido e torna-
se irrelevante.
As mulheres, o trabalho e a análise do marxismo: a contextualização
da diferença na divisão sexual do trabalho
Como afirma Fernandes (1981), a emancipação da mulher através do trabalho,
anunciada por Engels, não passa de um mito, como a recente evolução do
capitalismo veio a confirmar.
De facto, encontramos numerosa evidência recente de que a divisão sexual do
trabalho doméstico não remunerado não sofreu grandes alterações (Castro, 1997;
Torres e Silva, 1998). As mulheres continuam a estar sobrecarregadas, quer com
o trabalho remunerado (a tempo inteiro, muitas vezes), quer com o trabalho
doméstico não remunerado, o que criou, nas mulheres trabalhadoras, a
identidade supermulher (Castro, 1997: 28), ou seja, a pertença a um grande
grupo de mulheres que têm filhos, são casadas e têm uma profissão. A dupla
ligação, com a esfera pública e a esfera privada, teve como consequência a
dupla jornada de trabalho. O fenómeno da supermulher não é um fenómeno de
classe e é extensível a um grande número de mulheres, de várias classes sociais
e vários sectores profissionais.
A valorização dada à entrada das mulheres no mundo do trabalho também não
especifica os limites da importância desta entrada. Será que é igual, em termos
do significado subjectivo do trabalho remunerado, exercer esta ou aquela
ocupação? Será que a divisão horizontal do trabalho (ou seja, a divisão das
pessoas pelas ocupações) não é presidida pelo critério de género (Burr, 1998)?
De acordo com muito do trabalho realizado no âmbito dos women studies,
apercebemo-nos que existe uma clara divisão sexual das ocupações: enquanto as
mulheres tendem a concentrar-se em ocupações que coincidem com o estereótipo
tradicional da feminilidade, os homens podem desempenhar qualquer profissão,
sendo até melhor sucedidos em termos salariais e de mobilidade na carreira em
profissões consideradas tipicamente femininas (Burr, 1998). Virgínia Ferreira
(1993) acrescenta outro tipo de segregação a transversal , que corresponde à
concentração das mulheres nos empregos menos remunerados de cada sector de
actividade, profissão ou nível de qualificação.
De acordo com Teresa Fernandes (1981), o capitalismo aproveitou a força de
trabalho masculino para a economia pública e remeteu as mulheres para as
actividades ligadas à família e à reprodução, como forma de não remunerar as
tarefas ligadas à formação da mão-de-obra do futuro: a prole destas mulheres.
Na concepção de Fernandes (1981), o modelo de família burguês foi reproduzido
pelo proletariado. A divisão sexual do trabalho é condição para a externalidade
da reprodução da mão-de-obra em relação quer ao sistema capitalista, quer ao
estado. Que condições ideológicas foram criadas para que os determinantes
sociais da divisão sexual do trabalho e do sistema capitalista, subjacentes a
estas relações de dominação, se constituíssem como uma relação burguesa de
reprodução? Ou seja, de que forma o sistema capitalista e a divisão sexual do
trabalho criaram um modelo burguês de família?
Para Fernandes (1981), o modelo burguês de família assenta na clara separação
entre a reprodução da força de trabalho, associada à mulher, e a produção,
associada ao homem. Esta divisão, que coloca as mulheres no domínio da esfera
privada e os homens no domínio da esfera pública, exclui as mulheres do acesso
ao trabalho remunerado e restringe-as às tarefas domésticas e aos cuidados com
a família. Para a autora, a teoria marxista exclui uma das principais condições
para o sucesso de qualquer sistema económico-social a reprodução da força de
trabalho , o que por sua vez teve como consequência a exclusão da divisão
sexual do trabalho da concepção histórica do proletariado.
Excluindo-as da relação salarial, o estado e o patronato apropriam-se assim de
um trabalho gratuito, prestado pelas mulheres para a criação da mão-de-obra. A
externalidade da reprodução da mão-de-obra é uma característica do sistema de
salários capitalista, sendo a relação social principal do capitalismo a própria
relação salarial. Assim, ao excluir as mulheres do acesso ao salário, privando-
as do seu reconhecimento como sujeito por parte do estado e do acesso à sua
consciência de exploradas, elas foram excluídas da própria cidadania (Santos,
1998). Este processo histórico explica que o direito ao emprego tenha sido
diferido, no caso das mulheres (Amâncio, 1999b) até aos anos 60 do século XX e,
com ele, muitos outros direitos sociais. O aparecimento histórico da
trabalhadora gratuita e necessária, a progressiva transformação e destruição da
família pré-capitalista enquanto unidade de produção-reprodução e o
aparecimento de um sistema salarial desenvolveram novas formas de divisão
sexual do trabalho (Marshall, 1994), entre as quais se inclui a divisão entre
trabalho doméstico não remunerado e trabalho remunerado (Fernandes, 1981).
Assim, verificamos que a divisão sexual do trabalho não é um fenómeno natural,
é um fenómeno específico de sistemas socioeconómicos e de determinadas
condições históricas e ideológicas (externalidade da reprodução da mão-de-obra;
privatização da família proletária e privatização/feminização do trabalho
doméstico). O próprio trabalho feminino pago é uma situação que não pode ser
abstraída do trabalho doméstico privado. As mulheres tornam-se uma mão-de-obra
de reserva, que pode ser utilizada de forma descartável pelas entidades
empregadoras, o que é claramente diferente das perspectivas de emprego de um
trabalhador (homem) livre: este é a força de trabalho essencial, que recebe um
salário e dispõe da própria força de trabalho do resto da família.
Para Fernandes (1981), a divisão sexual do trabalho deve ser entendida enquanto
condição para externalidade da reprodução de mão-de-obra em relação ao sistema
de produção capitalista e ao estado e, simultaneamente, condição para a
constituição da figura histórica do homem trabalhador livre. A naturalização da
divisão sexual do trabalho correspondeu, assim, à naturalização da subordinação
feminina. Então, não podemos explicar a emancipação das mulheres no capitalismo
apenas com referência à sua entrada no mundo do trabalho, pois não é essa
entrada que determina a desnaturalização da divisão sexual do trabalho. De
facto, no caso das mulheres e no advento do capitalismo, não ocorreu a
separação do trabalhador individual da sua família.
Em suma, não nos é possível compreender a emancipação feminina durante o
capitalismo, sem referência a quatro eixos de análise: separação económica dos
meios de consumo; separação institucional entre lugares de produção económica e
lugares de reprodução social; separação ideológica entre a esfera privada
(subjectividade e relações pessoais) e a esfera pública (relações sociais
mercantis); separação política entre estado e sociedade civil. A concepção
histórica do proletariado foi um entrave à entrada das mulheres no mundo do
trabalho pago, dado que a própria formação sexista da classe determinou a
manutenção do status quo, impediu a entrada da mulher nas profissões associadas
a este grupo social (Fernandes, 1981).3
Como refere Amâncio (1999a) a sociologia francesa produziu, desde os anos 70,
uma reflexão sobre as categorias de sexo que constitui um contributo
fundamental, e actual, para a compreensão da relação produtiva entre a divisão
sexual do trabalho e a construção da feminilidade, através da naturalização das
chamadas características femininas. Colette Guillaumin (1992) analisa a forma
como o discurso da natureza feminina contribuiu para a naturalização de uma
relação social específica que tem orientado as relações entre os sexos, a
sexage e para a divisão sexual do trabalho. Assim, categorias como a raçae
o sexo são categorias específicas nas relações sociais, sendo tratadas como
categorias biológicas. Essas categorias naturais são tratadas como imutáveis e
baseadas em diferenças naturais. Essa naturalização dos grupos dominados conduz
a que os grupos dominantes estabeleçam com eles uma relação de apropriação,
apropriando-se do seu trabalho e do seu corpo. No caso das relações entre
grupos de sexos, a relação de apropriação social correspondente é a sexage, que
pode assumir muitas formas, mas que a autora caracteriza como:
( ) a posse de outros seres humanos( ). Essa utilização pode assumir diversas
formas, desde a livre exploração da força de trabalho físico, mental e
afectivo, até à livre utilização do próprio corpo do outro. Os fenómenos
associados como"diferença", desprezo, a colocação num pedestal,
opressão, exprimem e confirmam a distância entre o grupo dominante e aqueles
que domina (Guillaumin, 1992, 10-11, tradução nossa).
Para a autora, o homem é considerado um ser independente que mais tarde venderá
a sua força de trabalho, mas encarado como um ser únicoe irrepetível, enquanto
a mulher é apenas uma mulher, um membro de um grupo, um objecto
intercambiável,sem outras características que não a sua feminilidade, a base da
sua identidade enquanto objecto social.4 A apropriação da classe das mulheres
pela classe dos homens o processo de sexage é uma relação social em que os
actores são reduzidos ao estado de unidade material apropriada.
A ideia de natureza, derivada de um universo simbólico de valores que opõe
natureza a cultura, justifica a exclusão desses actores da história.
A utilização que os homens fazem das mulheres, enquanto força de trabalho
gratuita para a esfera doméstica, e da reprodução, açambarca a mão-de-obra
destas e impede-as de aceder à condição de sujeitos. Assim, estamos perante uma
apropriação material dos corpos, que se manifesta de muitas maneiras: a
apropriação do tempo (o trabalho doméstico não tem horários, nem tempos de
folga, nem é pago); a apropriação dos produtos do corpo (os filhos e os
cuidados com eles); a existência de um contrato jurídico que inclui obrigações
sexuais (se um dos cônjuges se recusar a cumprir regularmente as suas
obrigações sexuais pode o outro recorrer à anulação do contrato matrimonial,
quer seja este de cariz civil ou religioso); o cuidado físico com os membros do
grupo familiar.
Para Guillaumin (1992), a identidade de classe das mulheres assenta na sua
absorção em outras individualidades (o marido, os filhos, etc.), e torna-as
intercambiáveis, fundindo-as numa identidade homogeneizante e colectivista.5 A
apropriação material é assim criada e criadora da apropriação ideológica que,
fundamentada na divisão sexual do trabalho e no universo simbólico comum,
legitima as relações sociais de sexage que, a nosso ver, manifestam os papéis
sexuais na sua eficácia normativa.
Quais os efeitos fundamentais desta relação de apropriação? A exclusão das
mulheres da cidadania e do contrato social (Santos, 1998), a produção de um
discurso naturalizado e biologizado sobre elas e a própria necessidade de se
autodefinirem enquanto seres colectivos, não autónomos e individualmente
indiferenciados.
Pierre Bourdieu (1998) segue uma linha analítica muito semelhante a Colette
Guillaumin (1992). Para Bourdieu (1998), o masculino exerce uma dominância
simbólica sobre o feminino, que é criada na lógica do discurso da naturalização
do social, e é essa dominância simbólica que divide o mundo em masculino e
feminino. O autor demonstra que as relações de dominação entre os sexos têm
lugar em instituições como o estado e a escola e não se restringem ao espaço
doméstico. A divisão sexuada do mundo está na origem de uma série de esquemas
de pensamento dicotómicos, ontologizantes que, através do processo de
naturalização do social, passam a pertencer à ordem natural das coisas.
A força do masculino reside na visão androcêntrica (imposta como neutra),
através da qual toda uma ordem social funciona como uma imensa máquina
simbólica tendendo a ratificar a dominação masculina em que assenta (Bourdieu,
1998: 9). A própria construção social dos corpos é um repositório dos
princípios de divisão sexuada do mundo, funcionando as diferenças anatómicas
entre os sexos como uma justificação natural das diferenças sociais impostas
pela ideologia e pela divisão sexual do trabalho. O corpo torna-se um lugar da
diferença, inscrevendo-se as diferenças sexuais como um habitus,através da
incorporação dessas mesmas diferenças. A oposição entre os sexos está inscrita
na lógica dos próprios sistemas de classificação simbólica: masculino/feminino;
alto/baixo; sobre/sob; quente/frio; seco/molhado; activo/passivo; móvel/
imóvel.6
As análises do autor levam-no a desocultar um paradoxo subjacente na nossa
ideologia dominante: são as diferenças visíveis entre os corpos masculinos e
femininos, percebidas e construídas segundo um esquema androcêntrico, que se
tornam os garantes indiscutíveis dos significados e dos valores associados a
esta visão androcêntrica. A ideologia do masculino legitima uma relação de
dominação que se inscreve numa natureza biológica, sendo esta uma construção
social naturalizada. A consequência é a própria somatização (no sentido de
incorporação) das relações sociais de dominação. Para Bourdieu (1998), as
divisões simbólicas, que são constituídas a partir das relações sociais de
subordinação/dominação, inscrevem-se em doishabitusdiferentes: o que liga o
homem ao exterior, ao público, e o que liga as mulheres ao interior, ao
invisível. A visão androcêntrica é constantemente legitimada por práticas que
ela determina, como o preconceito desfavorável em relação ao feminino, inscrito
na ordem naturalizada das coisas, acabando as próprias mulheres por confirmar
o ciclo vicioso desse mesmo preconceito, numa lógica da maldição ou de profecia
auto-realizável.
Para além da análise da perpetuação das estruturas simbólicas de dominação, a
análise de Bourdieu (1998: 77) centra-se também na questão da permanência e da
mudança nas relações sociais de género. Para o autor, a principal transformação
é o facto de a dominação masculina já não se impor com a evidência do óbvio.
Os factores que contribuíram para esta alteração na condição das mulheres são,
essencialmente, o acesso à esfera pública (nomeadamente ensino superior,
secundário e trabalho remunerado) e o distanciamento (relativo) das tarefas
domésticas e das funções reprodutivas.
Apesar destas alterações, Bourdieu (1998) encontra permanências na mudança,
particularmente na fraca representação das mulheres nos níveis mais elevados de
estatuto na profissão e na esfera do poder. Para além da persistente
desvalorização das esferas e ocupações que gradualmente se feminizam. É neste
quadro que o autor invoca o conceito de elites discriminadas, para explicar a
situação das mulheres que acederam a posições de poder e sofrem um duplo
constrangimento: se, por um lado, estão separadas dos homens por um coeficiente
simbólico negativo e estigmatizante (a condição feminina), por outro, estão
também separadas das outras mulheres, pelas diferenças económicas e culturais.
São estas posições contraditórias que se reflectem nas contradições dos
próprios discursos das mulheres em posições de elevado poder e estatuto
(Nogueira, 1996). Esta autora analisou os discursos das mulheres em posições de
chefia e distingue dois tipos de discurso: o discurso essencialista/
individualista e o discurso colectivista/resistência. O primeiro caracteriza-se
pela negação da discriminação sexual na trajectória de mobilidade ascendente,
pela assunção da distintividade em relação às outras mulheres e aos homens e
por uma legitimação meritocrática do sucesso profissional, misturando neste
espaço de individualização um discurso que acentua as dificuldades que se
impõem a um indivíduo mulher e os obstáculos que resultam do papel feminino. Já
o discurso colectivista/resistência evidencia uma perspectiva diferente: neste
caso as mulheres assumem a forte discriminação sexual de que foram e são alvo,
vêem-se como membros de um grupo dominado e realçam as dificuldades que
encontram para atingir uma posição de topo, sem que esse discurso afecte a
avaliação das suas capacidades e a sua auto-estima. No que toca às estratégias
de mudança social, este último discurso critica a ideologia dominante e refere
a mudança social como muito importante. O discurso essencialista/individualista
reproduz a ideologia dominante e o modelo tradicional feminino, configurando
uma identidade de supermulher. Esta perspectiva não permite a mudança, a não
ser num quadro (individualista) de mobilidade social. Estas estratégias
discursivas, particularmente o discurso essencialista/individualista, parecem
revelar o esforço de adequação identitária à dupla pressão exercida na situação
de elite discriminada: diferenciam-se dos homens por serem mulheres e das
outras mulheres pela posição social que ocupam, e aderem aos valores
universais para iludirem uma condição colectiva que não deixa de estar
presente.
Este conflito identitário que sofrem as elites discriminadas foi descrito por
Simone de Beauvoir (1975: 514), de uma forma lapidar e com a qual encerramos
esta secção: Ela recusa confinar-se ao seu papel de fêmea porque não quer
mutilar-se, mas repudiar o seu sexo seria também uma mutilação.
Trabalho, uma liberdade condicional
Para testar algumas das propostas avançadas, planeámos uma investigação que,
utilizando um inquérito por questionário, permitiu averiguar a pertinência
deste quadro teórico.7
O objectivo específico do núcleo de antropologia no projecto mencionado na nota
7 prendia-se com a caracterização das variáveis associadas às ocupações, como
forma de entender a importância da identidade socioprofissional nos diferentes
papéis sociais que um indivíduo desempenha. Foi muito claro desde o princípio
que as relações sociais de género seriam centrais neste processo. Foi nesse
sentido que desenvolvemos este estudo, enquanto contribuição da psicologia
social do género.
Tendo em conta as propostas teóricas apresentadas nas secções anteriores,
rejeitamos a hipótese de que o trabalho, só por si, se constitui como uma
libertação para as mulheres. O trabalho, que poderia ser visto como uma fonte
de identidade social positiva e de diferenciação face ao grupo, em determinadas
situações, não o é. No caso das profissões tradicionalmente femininas
(associadas ao cuidar), a construção social do trabalho é tida como um
prolongamento das tarefas que foram simbolicamente atribuídas à condição de
estar da mulher. Daí que o facto de se ter uma profissão, só por si, não
determina que as mulheres profissionais ascendam a uma paridade de estatuto com
os homens.
A nossa investigação (Oliveira, 1999) visou verificar a importância do trabalho
remunerado e do salário para a distintividade e autonomia do self nas mulheres.
Assim, e a partir dos quadros teóricos enunciados, derivámos três hipóteses de
pesquisa:
* hipótese 1: a representação do self ancora no estereótipo feminino;
* hipótese 2: a representação do salário é construída tendo como referência a
normatividade do papel feminino, ou seja, o salário é visto como um ganho de
liberdade e de autonomia;
* hipótese 3: a representação do trabalho é construída de forma consonante com
o estereótipo feminino, ou seja, o trabalho não traz autonomia e
distintividade, é pouco satisfatório per se e necessariamente negociado no
quadro dos limites do papel feminino.
Apresentamos aqui um resumo dos principais resultados que sustentam
empiricamente a nossa proposta teórica.
Escolhemos propositadamente uma amostra de mulheres trabalhadoras com dois
tipos de inserção profissional, de acordo com a Classificação Nacional das
Profissões de 1994: grande grupo 4 (pessoal administrativo e similares) e
grande grupo 5 (pessoal dos serviços e vendedores). As idades eram
compreendidas entre os 25 e os 60 anos (média etária de 35,9 anos, com desvio
padrão de 9,6 anos). Ao nível das habilitações literárias, a mediana era o 9.º
ano de escolaridade. Recolhemos os questionários em populações provenientes de
duas localidades distintas (Barreiro meio urbano; e Vidigueira meio rural),
mas não encontrámos diferenças expressivas nos resultados, relativamente a esta
variável.
Para averiguar da primeira hipótese, utilizámos uma lista de traços (Amâncio,
1994) e pedimos às inquiridas que se posicionassem em relação aos mesmos
utilizando uma escala tipo Likert de 5 pontos (de 1-nada a 5-muito), indicando
em que medida possuíam essas características. Submetemos os nossos dados a uma
análise em componentes principais com rotação ortogonal varimax (ver resultados
completos em Oliveira, 1999). A análise evidencia um primeiro factor (23,1% da
variação explicada), composto pelos traços sensível, carinhosa, honesta e
responsável. Este primeiro factor é revelador da estruturação das imagens do
self a partir do estereótipo feminino. Os traços sensível e carinhosa, que são
aqueles que apresentam loadings mais elevados, são traços do estereótipo
feminino português (Amâncio, 1994) e estruturam o primeiro factor das imagens
do self, mostrando a adequabilidade da proposta da ancoragem das representações
do self no estereótipo feminino.
No que toca à construção social do salário, verifica-se que este é central em
termos da autonomia das mulheres: de facto 65,1% das inquiridas consideram-no
uma forma de comprar aquilo que precisam, mas a maioria das inquiridas recebe
menos que o cônjuge (55,1%). Esta centralidade da relação salarial como forma
de emancipação económica evidencia um aspecto fundamental na mudança ocorrida
durante o século XX, com a entrada das mulheres no mundo do trabalho. O facto
de se dispor de um salário e de o gerir permite autonomia face ao marido e é um
dos aspectos fundamentais na caracterização da condição feminina. Contudo esta
autonomia não se verifica no plano simbólico e na representação do self, o que
evidencia uma emancipação ainda condicional.
É na representação do trabalho que verificamos essa emancipação condicionada.
No que toca ao significado do trabalho, 55,2% vê no seu trabalho uma forma de
ganhar dinheiro (dimensão economicista do trabalho) e apenas 21,4% como uma
forma de satisfação pessoal. O resultado que nos parece mais significativo
nesta questão é que 81% das inquiridas não gostariam que as suas filhas
exercessem a sua profissão, vendo na educação das filhas um meio de mobilidade
social ascendente, que lhes permitirá romper com o destino das mães. Não é,
portanto, o facto de trabalharem que dá às mulheres a possibilidade de se
perceberem como autónomas, independentes ou singulares ou seja como sujeitos
porque, de acordo com o universo simbólico que regula os modos de ser
correspondentes aos sexos, essas dimensões têm um significado masculino cuja
mudança não depende apenas do trabalho das mulheres. A emancipação relativa que
o salário proporciona gera uma representação simétrica e igualitária da relação
entre os sexos, numa dimensão estritamente económica, que oculta uma série de
persistências na mudança, justamente da ordem do simbólico e das múltiplas
segregações no plano do trabalho assalariado (Ferreira, 1993), para além de
justificar a sobrecarga com o trabalho doméstico e a guarda das crianças, numa
situação de dupla jornada (Torres e Silva, 1998). É esta vida de sacrifício
que as mulheres não querem para as suas próprias filhas.
Depois desta breve ilustração empírica das propostas teóricas apresentadas,
passamos a sumariar o contributo teórico que, a nosso ver, pode fazer a ligação
entre as propostas da psicologia social e da sociologia com vista a uma análise
integrada e explicativa da posição das mulheres na estrutura social vigente.
Assim propomos:
a) uma redefinição do conceito de papel sexual, enquanto dimensão normativa e
de orientação para a acção das ideologizações do género;
b) a ligação dos estereótipos sexuais, entendidos enquanto expressão de uma
ordem androcêntrica vigente, ao processo de criação da identidade,
especificamente no caso das mulheres, dado que os estereótipos sexuais são um
ponto de ancoragem e suporte simbólico para a representação do self, e que, no
caso delas, é construída numa posição de alteridade em relação a um modo de ser
referente universal;
c) uma maior atenção, do lado da psicologia social (Amâncio, 2002), às
condições históricas e sociológicas da divisão sexual do trabalho e das
representações sobre os sexos, uma vez que a separação da reprodução da força
de trabalho da esfera da produção criou a diferenciação entre espaço privado e
espaço público, restringindo o feminino ao contexto doméstico e familiar, que
se reflecte nas dimensões afectivas e de objecto de desejo, que ressaltam em
qualquer estudo sobre estereótipos sexuais;
d) a desocultação da naturalização e biologização do género enquanto ideologia
construída social e historicamente, que se constituiu como obstáculo à mudança
social, ao situar o papel das mulheres na família como uma inevitabilidade a-
histórica;
e) a desconstrução da visão androcêntrica do mundo e as classificações sobre os
corpos que dela decorrem, legitimam a ordem social, pois são perpetuadas nos
discursos e comportamentos quotidianos.
Esta integração teórica salienta assim: (1) a insuficiência quer das abordagens
funcionalistas quer das abordagens interaccionistas dos papéis sexuais; (2) a
eficácia teórica da articulação entre a sociologia e a psicologia social ao
nível dos processos simbólicos e de construção social da diferença; (3) a
inserção das categorias de sexo num sistema de hierarquias sociais, tomando em
consideração outras posições sociais, permitindo a complexificação da condição
feminina.
Por fim e depois deste percurso de reflexão, voltamos à questão da emancipação
feminina graças à entrada no mundo do trabalho. Apesar de ser inegável a
mudança em termos do acesso a novas oportunidades e dos esforços para atingir a
igualdade de direitos entre os sexos e o acesso à cidadania, esta emancipação é
relativa. As disposições institucionais e ideológicas e a própria auto-
representação ainda colocam as mulheres numa situação de alteridade, que é
patente nos conteúdos do estereótipo feminino e na construção ideológica de um
papel que as remete para uma situação de dependência simbólica do contexto
(desvalorizado) da família e do privado, mesmo quando exercem funções na esfera
pública. A participação activa das mulheres na sociedade permanece, assim,
sujeita a uma série de constrangimentos normativos que poderíamos designar de
liberdades condicionais.
Notas
1 A dicotomização que Parsons utiliza entre líder expressivo e líder
instrumental é baseada na investigação de Bales sobre pequenos grupos, como
mostra Amâncio (1994).
2 Identidade social não é aqui encarada apenas como uma mera diferenciação
categorial, assente em diferenças perceptivas entre classes de estímulos
(Tajfel, Flament, Billig e Bundy, 1971) e motivada pela necessidade da
comparação social (Turner, 1987).
3 Para uma revisão desta literatura no âmbito da sociologia da família ver
Torres (2002).
4 A escola de Genebra que referimos anteriormente foi bastante influenciada
pelo pensamento da sociologia francesa dos anos 70 e 80, e particularmente pelo
pensamento de Colette Guillaumin, como atesta Deschamps (1982).
5 Cf. os conceitos de identidade fusional e grupo agregado de Lorenzi-Cioldi
(1988), revistos na secção anterior.
6 No pensamento de Bourdieu, o conceito de habituscorresponde a um sistema de
estruturas motivacionais e cognitivas, socialmente constituídas, que fornecem à
sociedade indivíduos com modos de se relacionar e categorizar situações
familiares ou estranhas. O habitusforma-se no contexto das pertenças sociais e
é inculcado pela ideologia. Localiza-se no corpo e afecta todos os modos da
incorporação (Schilling, 1993).
7 Esta investigação foi desenvolvida no quadro de um estágio curricular do
primeiro autor no núcleo de antropologia (supervisionado pela professora
doutora Graça Cordeiro) do Projecto para a Análise e Classificação das
Ocupações, com coordenação do professor doutor Nuno Luís Madureira. A segunda
autora foi a orientadora interna desse mesmo estágio.